PICICA: "Walter Benjamin3,
em um pequeno texto, escreve que “observar com exatidão o que se cumpre
em cada segundo é mais decisivo que saber de antemão o mais distante”
e, intuindo a necessidade de uma utilização dos afetos, acrescenta:
“Signos precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite
nosso organismo como batidas de onda. Interpretá-los ou utilizá-los, eis a questão”.
Parece que de pouco adiantará as tentativas de prever o futuro dessas
movimentações. Não podemos ser inocentes a ponto de negligenciar uma das
poucas, e talvez a principal, característica dessa política do possível
que se afirma: o imprevisível – indeterminado, aberto, suscetível,
contingente. Ainda segundo Benjamin, a covardia e a preguiça aconselham o
primeiro (a interpretação) e a sobriedade e a liberdade o segundo (a
utilização). Devemos, pois, criar estratégias que possam, de fato,
permitir a utilização desses novos desejos que não cessamos de agenciar.
Colocá-los em prática segundo os critérios de nossa própria liberdade."
Por uma política do possível a partir das manifestações
02/07/2013
Por Laio Bispo
Por Laio Bispo
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Por uma política do possível – considerações acerca das manifestações da multidão nas cidades brasileiras
Os
recentes acontecimentos nas cidades brasileiras parecem indicar, dentre
outras coisas, uma espécie de reconversão da sensibilidade política dos
mais variados indivíduos. As grandes manifestações, malgrado algumas
tentativas de significação moral, causaram uma descontinuidade na
experiência política dos brasileiros. Há, sob vários aspectos, nessa
mistura de corpos singulares que impetuosamente tomaram as ruas, uma
nova distribuição de desejos. Essa física da ação abstrata, motivada por
esses acontecimentos, parece indicar um novo “campo de possíveis”.
A
mudança operada pelo acontecimento brasileiro diz respeito, claramente,
à sensibilidade. A transformação das subjetividades, ou mesmo a
possibilidade de efetuação desta, é o que nos parece mais próximo –
possível. É mediante essa transformação que novas possibilidades de vida
podem emergir; formas que podem, sim, embaralhar condutas vigentes –
desterritorializando-as, subvertendo-as e, por fim, abandonando-as.
Estamos, pois, em um processo de experimentação que, ao mesmo tempo, nos
coloca em conflito com as formas existentes e com as possibilidades de
criação. Tal como dissera Maurizio Lazzarato1
“o modo do acontecimento é a problematização. Um acontecimento não é a
solução de problemas, mas a abertura de possíveis”. É, portanto, nesse
limiar que nos encontramos – um limiar, certamente, confuso, porém
oportuno. Aqui, nesse momento, novos enunciados são criados sem que
sejam, necessariamente, organizados por uma unidade representativa. O
acontecimento é problematizado pelo conjunto de singularidades
irrepresentáveis que, a partir de suas diferenças, lançam
indiscriminadamente suas questões. Questões e iniciativas de uma
multidão que escapa ao domínio geográfico dos poderes
institucionalizados e constituem, antes, uma topologia da resistência.
Há,
contudo, aqueles que se dedicam a tentar fixar essas singularidades e
esvaziar, ou desviar, seus intuitos políticos. A grande mídia, como não
poderia deixar de ser, cumpre a tarefa de ordenar o levante dos
revoltosos. O discurso normativo bloqueia os agenciamentos de expressão
desses corpos, ferindo com estúpida moralidade a potência que se
anunciava. No entanto, essa estratégia, ao que parece, não vem contendo
os insubmissos que gritam através de seus cartazes e fazem da rua seu
único campo de experiência possível. A horda de incendiários não parece
se importar com alcunha criada para denegri-los. Eles sabem quem são, de
fato, os verdadeiros vândalos – sabem onde as corujas dormem e fazem
questão de denunciá-las.
O
que se impõe nesse momento é, mais precisamente, “o que fazer com esses
desejos que nos atravessam?”. É preciso dar corpo a transformação
incorporal que se manifesta – arranjar-lhes modos de desenvolvimento
material. Precisamos, nesse sentido, de agenciamentos maquínicos que
correspondam às expressões criadas.
Esse
possível que se abre deverá, em seu tempo, atualizar-se. É importante,
contudo, atentarmos para as armadilhas das formas dadas. O possível que
estamos criando não pode remeter-se às formas estabelecidas que, nesse
momento, modificam-se para nos confundir. Parece que, sob inúmeros
aspectos, não nos interessa mais apenas o deslocamento e a transformação
das questões correntes. Interessa-nos, mais, a real radicalização do
que está aí. A atualização não deve ser a redistribuição de velhos
desejos, mas, sim, a efetuação de novos mundos. Nós, essa multiplicidade
de diferenças singulares, devemos criar – profanar, fazer multidão, devorar
– outras formas de existência que façam da liberdade uma prática. A
identificação com os poderes estabelecidos não garantirá outra coisa
senão a manutenção da totalidade que nos cerceia, por isso o exercício
da liberdade nos é indispensável. Foucault2
atenta para o fato de que “A liberdade dos homens não é jamais
assegurada pelas instituições ou leis que pretendem garanti-la. É por
esta razão que quase todas as leis e instituições podem ser subvertidas”
e, por isso, a liberdade só seria garantida através de seu exercício,
da sua prática não condicionada.
Há, nesses movimentos, um dilema que passa, inevitavelmente, pela questão prática: o que fazer com o acontecimento? Como pensar, como proceder a partir dele?
Walter Benjamin3,
em um pequeno texto, escreve que “observar com exatidão o que se cumpre
em cada segundo é mais decisivo que saber de antemão o mais distante”
e, intuindo a necessidade de uma utilização dos afetos, acrescenta:
“Signos precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite
nosso organismo como batidas de onda. Interpretá-los ou utilizá-los, eis a questão”.
Parece que de pouco adiantará as tentativas de prever o futuro dessas
movimentações. Não podemos ser inocentes a ponto de negligenciar uma das
poucas, e talvez a principal, característica dessa política do possível
que se afirma: o imprevisível – indeterminado, aberto, suscetível,
contingente. Ainda segundo Benjamin, a covardia e a preguiça aconselham o
primeiro (a interpretação) e a sobriedade e a liberdade o segundo (a
utilização). Devemos, pois, criar estratégias que possam, de fato,
permitir a utilização desses novos desejos que não cessamos de agenciar.
Colocá-los em prática segundo os critérios de nossa própria liberdade.
Que
as reivindicações desse junho de 2013, iniciadas pela exigência de um
transporte público de fato, possam tornar-se o marco de uma instauração
de uma política do possível – ou, para sermos condizentes ao nosso
instinto antropofágico, uma primeira dentição que nos proporcione a
devoração de outros desejos possíveis.
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Laio Bispo é mestrando em arquitetura e urbanismo na UFBA
1 LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 13-14
2 FOUCAULT, Michel. Espaço e poder – Entrevista de Michel Foucault a Paul Rabinow. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Nº 23. Disponível em http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3200
3 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol 2, Rua de Mão Única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997. P.63
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Fonte: Rede Universidade Nômade
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