Pensar-lentamente a revolução: diário de som a partir do Brasil
03/07/2013
Por Raluca Soreanu
Percepção-relato das manifestações através dos sons.
Por Raluca Soreanu | Trad. Igor Peres
Para
mover-se da Tahrir Square, a Syntagma Square, a Puerta del Sol, de lá a
Zucotti Park, da Zucotti Park ao Gezi Park, e ao movimento recente “20
centavos” no Brasil, capturar seus ritmos comuns assim como seus
matizes, nós talvez precisemos de um novo vocabulário. Para acompanhar
as mudanças radicais no imaginário político é necessária uma nova
semiótica. Seguindo as palavras de Bracha Ettinger, eu gostaria que
pudéssemos pensar-lentamente, sentir-lentamente, pintar-lentamente esses
movimentos, de maneira que se sobreponha uma forma de compreensão à
outra e mais outra. Poderíamos assim movimentar-nos para além da pressa
em encaixotar uma das semiotizações efetivamente inquietantes que o
movimento brasileiro produziu – “o gigante acordou”, como uma simples
instância do fascismo. Quando no útero do gigante na semana passada,
encontrei formas de criatividade social e formas de sociabilidade que me
convidaram a pensar-lentamente. No útero do gigante as pessoas tomaram
conta uma das outras. Elas encontraram os estranhos para além de sua
estranheza e para além dos códigos veiculados pelas cores dos partidos.
Quando os ritmos aceleraram e as pessoas se viram à beira da
confusão,imersos no som da guerra produzido constantemente pelas
máquinas policiais, alguns intervieram oportunamente para que não
pisoteássemos uns aos outros, como acontece com frequência em grandes
aglomerações como esta. Com toda certeza, precisaremos olhar de perto
este tráfego urbano alternativo das grandes mobilizações, e ver de que
maneira se insere no movimento pelo direito à cidade. Havia também
formas importantes de defesa do patrimônio na qual o conjunto plural de
pessoas que cercava um monumento decidiu in loco que a memória
que carregava era mais importante que o agravo de um indivíduo que
desejava debruçar-se em seu pedestal. Certamente, este não é um
movimento em direção ao indiscriminado e à confusão, mas uma espiral
coletiva direcionada a novas formas de esclarecimento do que é relevante
e precisa ser preservado. E assim, o canto“vem, vem, vem para rua vem!”
emanado dos milhares de pessoas juntas na mesma batida é vazio em sua
repetição somente na aparência.Só em aparência periga tratar-se de nada. Quando nos movemos para uma nova semiótica trata-se de algo bem localizado (talvez
uma semiótica deleuzo-guatarriana) onde o significado é facializado e
corporeificado. O que é a consciência facializada e a corporeificação
rítmica do manifestante que não agride, mas protege, que não provoca,
mas contém, que não destrói, mas produz artefatos políticos?
Enquanto muitas vozes condenam a
falta da organização política, eu assisti a uma organização
convincente. Quantas vezes em nossa experiência de vida marcamos um
encontro com 300.000 pessoas nas ruas do Rio de Janeiro, e todos
apareceram? Mesmo a quantofrenia da modernidade se viu perplexa ao
deparar-se com esse novo fenômeno de mobilização, ao ponto de perdermos
temporariamente nossa habilidade em contar: deveria haver 300.000
pessoas nas ruas do Rio de Janeiro, ou menos, ou mais, ninguém sabe. Essa
falta de habilidade em contar não marca só a escala do protesto, mas
transcende o contexto da contagem e do rastreamento do que a textura
urbana comporta. Nós não poderíamos contar os manifestantes, pois eles circulavam de uma nova maneira, constituindo novos fluxos
compostos por grandes aglomerações: eles eram circulares, oblíquos,
espirais, ao invés de passarem simplesmente por pontos ou linhas
obrigatórias. Ampliando a lente,prosseguem as observações sobre formas
robustas de organização. Uma comunidade que acompanhei de perto, a do
Horto Florestal, planejou sua presença meticulosamente, andou horas para
o centro da cidade na defesa do seu direito de morar,ameaçado pela
redefinição das fronteiras do Jardim Botânico. Havia uma impressionante
mobilização anti-homofobia dentro do protesto cuja efervescência e
lucidez na produção de artefatos políticos foram desencadeadas pela
proposta legislativa de Marcos Feliciano de “curar” a homossexualidade.
Estas são instâncias de plurivocalidade – havia igualmente“negros” e
“sem-terra” corporeificando suas longas histórias de luta. Havia
militantes de partidos políticos convencionais. E, certamente, a extrema
direita executando seus abusos e agressões usuais, mas sem a capacidade
de fazer submergir toda a vitalidade do movimento em sua morbidade.
Há
organização abundante que não vemos e para as quais necessitamos de uma
nova semiótica; mas há também organização que não enxergamos, pois há
um movimento constante em favor da opacidade de uma ordem que deseja
preservar-se inalterada. Nós aqui talvez precisemos pensar sobre a vida
dos artefatos políticos que cercam o protesto. A imensa aglomeração no
Rio produziu milhares de cartazes com mensagens de pessoas e grupos (em
registros que iam do trágico, ao irônico, ao fortemente cômico, e que
por isso eram capazes de aglutinar solidariedades ao seu redor). Essas
centenas de metros quadrados de expressão política foram dispostas ao
redor da Praça da República, à medida que os manifestantes caminhavam na
Avenida Presidente Vargas. As pessoas literalmente entrelaçaram seus
cartazes nas cercas,organizando um museu de queixas. Esta coleção de
materialidades robustas, as quais nos teriam ajudado no processo de nos
olharmos e olharmos uns aos outros não estava mais lá dez horas depois.
Elas haviam sido removidas, recolhidas com o lixo. Voltei para a Avenida
Presidente Vargas pela manhã, antecipando-me ao desperdício deste
objeto político, e tudo que foi preservado foram os restos de painéis de
vidro quebrados de alguns quartéis-generais bancários, criando um museu
alternativo do vandalismo, subarticulação e indiscriminação. Ao menos, as
cercas de queixas políticas eram discriminadas, em seus conteúdos e sua
constituição entretecida. Essa
vida excessivamente curta e incompleta dos artefatos políticos diz algo
sobre a capacidade do capitalismo de apagar consistentemente todos os
traços da racionalidade política alternativa emergente.
Em
cena há outra força que desorganiza. A simulação do som da guerra. No
dia e na noite da imensa aglomeração, as ruas lembravam a guerra devido
ao barulho constante provocado pelas explosões ao fundo. Explosões mais
próximas ou remotas. O que explodia eram “bombas de efeito moral”, como
chamam aqui, de uma maneira espantosamente explícita. Na verdade estas
bombas são usadas pela polícia militar para intimidar e conter pelo som
um adversário efetiva ou potencialmente violento. Isso é uma ferramenta
incontida para conter a violência,
contudo: ela não atua localmente, mas na manifestação como um todo, e
mesmo por alguns quilômetros de distância; ela não esclarece onde
poderia estar ocorrendo a violência efetiva (certamente algumas das
pessoas que estavam presentes estavam usando suas próprias bombas de
efeito moral na multidão e em seu entorno), para que os que protestavam
tivessem a chance de sincronizar-se afastados dela, ou contra ela, mas,
ao contrário, ela a multiplica. Há algo mais a dizer sobre essas falsas
bombas. A vitalidade dos corpos é reclamada por seu som que é um
som-fantasma imposto à localidade. Ela é uma bomba falsa. Não pertence
ao lugar. Bomba-sonsa. Bomba-parcial. Essas ferramentas de guerra
instituíram uma perigosa (e imensa!) cena de constante re-traumatização,
onde nós na verdade poderíamos perder todo o controle que quereríamos
manter,e as coisas poderiam tomar qualquer rumo. Existem muitos traumas
recentes relacionados à entrada das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs) nas favelas do Rio de Janeiro, que começaram em dezembro de 2008.
Memórias da violência aqui são sobrepostas umas às outras, e nenhuma
delas é respeitada ou posta para trabalhar criativamente através da
imersão dos 300.000 no som da guerra. Porque deveríamos sentir, pelo
som, como se estivéssemos em guerra? O que acontece com a memória das
verdadeiras letalidades e plenitudes mórbidas da bomba neste bombardeio
simulado? Parte do direito à cidade é precisamente aquele de não
sentir-se como em tempos de guerra, se nós não estivermos em um.
E
finalmente, uma questão recorrente para mim esse dias: como os
acadêmicos vivem suas manhãs seguintes? Como a universidade se organiza
em relação à política, à novidade do fenômeno para lidar, e as
incertezas que com ele vêm à tona, apesar de todos os constrangimentos
estruturais? Talvez seja hora de voltar ao pensamento de Adorno sobre a
“solidariedade com os que sofrem” e trabalhar humildemente a partir daí.
O problema da organização para mim é primeiramente um
problema de auto-organização e de organização das proximidades de nossa
vida vivida. Esse movimento não pedirá por líderes. Ele irá e já pede
porcos-habitantes da transformação histórica. Alguns dos advogados do Rio de Janeiro, por ora, responderam de uma maneira bela aos desafios local, oferecendo sua expertise para aqueles que foram submetidos ao abuso da polícia. Penso isso como advogado kairós. Acredito que a universidade pode organizar rapidamente espaços de elaboração onde
podemos pensar-lentamente sobre o que está acontecendo nas ruas do
Brasil. A intervenção da qual me vejo como parte integrante lutará para
assegurar que a fábrica de processos coletivos que estamos experenciando não seja constantemente rompida e traumatizada pela simulação do som da guerra. Assim, pessoas e grupos que já estão cuidadosamente organizados podem sentar juntos e organizar mais a si mesmo, ao invés de serem compelidos pela violência recente ou distante.
Fonte: Rede Universidade Nômade
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