PICICA: "Depois de duas semanas de
protestos e quatro dias após as manifestações se tornarem maciças,
alguns descobriram que se pode fazer um país mais justo a partir das
mobilizações. Mas com o governo fora do centro das atenções, a
continuação das manifestações no Rio de Janeiro e em outros lugares
terminou com alguns excessos por parte dos manifestantes e
principalmente o descontrole por parte da polícia militar, protegida
pela TV Globo, que trabalhou em estreita colaboração com ela para
reforçar suas ações repressivas, além de direcionar o significado das
ruas para uma crítica apolítica: o espectador indignado contra a
corrupção. Ao mesmo tempo, em São Paulo e em outros lugares, certo
nacionalismo de direita instigou repúdio às bandeiras vermelhas dos
partidos, apoiado por vizinhos que carregavam cartazes contra “esmolas”
(o programa social Bolsa Família) ou insultando a presidenta Dilma,
causando a retirada imediata de muitos manifestantes presentes nos
primeiros dias, e deixando um gosto amargo que muitos interpretaram como
uma tentativa de golpe de estado.
Uma semana que começou com
protestos inesperados recolocando a política nas ruas do Brasil,
terminou despertando uma série de monstros que não tinham saído de suas
pequenas caixas de comentários na Internet. Distintas camadas
superpostas nos foram levando do tema das decisões de escritório de
administradores da cidade aos limites constitucionais e morais de uma
república que está em crise e se reencontra com os grandes perfis de sua
história: seus excluídos, seus medos e desejos de transformação."
Os desdobramentos das manifestações no Brasil
03/07/2013
Por Salvador Schavelzon
“O
Movimento Passe Livre também abriu as discussões sobre a questão
coletiva, e não apenas para pensar as políticas públicas, mas para
pensá-las a partir das mobilizações e de suas formas de organização.”
Por Salvador Schavelzon | Trad. Vladimir Santafé
Houve um fundo fascista por
trás da juventude mobilizada? Ou o horizonte segue sendo de novas lutas
em ruas conquistadas, apesar de vozes minoritárias desacreditadas? O
que para alguns é fascismo e ameaça de golpes, especialmente depois que
vários governos locais reverteram o aumento dos transportes, para outros
é esperança de mudanças profundas, através da mobilização de uma
população que abandonou a inércia do consumismo… É um movimento de
esquerda contra um governo autista e conservador, ou é preciso sair para
apoiar o governo?
Talvez a reversibilidade de
uma história sem direção pré-definida, com fantasmas do passado que
colidem ombros com o desejo de mudar o país, e que surgem em um país que
começa a falar a partir das ruas após mudanças subterrâneas profundas.
Nessas vozes sãp difíceis de codificar, se ouve muita coisa, onde
esquerda e direita não podem ser definidas, mas ao mesmo tempo as
posições nunca foram tão claras. Uma massiva mobilização gerada pelo que
se entendia inicialmente como puro abuso ou expressões violentas,
também pode ser entendida como a continuidade de tendências mais
radicais que recorreram à política de nossos dias.
Depois de duas semanas de
protestos e quatro dias após as manifestações se tornarem maciças,
alguns descobriram que se pode fazer um país mais justo a partir das
mobilizações. Mas com o governo fora do centro das atenções, a
continuação das manifestações no Rio de Janeiro e em outros lugares
terminou com alguns excessos por parte dos manifestantes e
principalmente o descontrole por parte da polícia militar, protegida
pela TV Globo, que trabalhou em estreita colaboração com ela para
reforçar suas ações repressivas, além de direcionar o significado das
ruas para uma crítica apolítica: o espectador indignado contra a
corrupção. Ao mesmo tempo, em São Paulo e em outros lugares, certo
nacionalismo de direita instigou repúdio às bandeiras vermelhas dos
partidos, apoiado por vizinhos que carregavam cartazes contra “esmolas”
(o programa social Bolsa Família) ou insultando a presidenta Dilma,
causando a retirada imediata de muitos manifestantes presentes nos
primeiros dias, e deixando um gosto amargo que muitos interpretaram como
uma tentativa de golpe de estado.
Uma semana que começou com
protestos inesperados recolocando a política nas ruas do Brasil,
terminou despertando uma série de monstros que não tinham saído de suas
pequenas caixas de comentários na Internet. Distintas camadas
superpostas nos foram levando do tema das decisões de escritório de
administradores da cidade aos limites constitucionais e morais de uma
república que está em crise e se reencontra com os grandes perfis de sua
história: seus excluídos, seus medos e desejos de transformação.
Quanto mais crescia e se
expandia, mais difícil era indicar suas causas e a composição com
precisão. O protesto alcançou dezenas de cidades, saiu do grupo de
jovens recém chegados à política de expansão das universidades, e na
metade da semana já havia protestos nas periferias. Depois do triunfo da
mobilização, com a revogação do aumento do preço das passagens,
continuou nas ruas com milhões de motivos acumulados e atirados à porta
de um poder público que as manteve fechadas e que, geralmente, não dava
respostas à altura das circunstâncias, enviando a polícia para reprimir
os manifestantes.
Não eram setores emergentes
exigindo direitos estabelecidos, tampouco excluídos que ante o Brasil
potência procuram incluir-se com demandas. Não é tampouco um Brasil que
estivesse em tempos de crise, como o enxergam a partir apenas de dados
macroeconômicos, e vêm um declínio na curva do crescimento econômico do
país. Era política desordenada, sem líder, sem nome, sem um único
sentido. Não era uma tentativa de desestabilização do PT no governo.
Vários grupos do PT tentaram juntar-se aos protestos, especialmente na
quinta-feira, quando o governo manifestou solidariedade às
manifestações. Tampouco era manipulação da imprensa, que em vez disso se
perdeu na questão de “vandalismo”, embora ela certamente tenha plantado
slogans, como a luta contra a corrupção, uma ferramenta fácil para as
audiências televisivas. Os manifestantes tomaram as ruas, enraizando,
dando complexidade ao impulso dos protestos iniciais. Havia cartazes
anti-Dilma, mas a intenção dos milhões de mobilizados não era golpista.
Era, sim, uma reação à surdez dos governantes aos anseios da população,
que esta semana mostrou um Brasil nas ruas.
O preço do transporte não
deve ser esquecido em qualquer tentativa de caracterização do movimento.
Não eram apenas 20 centavos, pois o preço total das passagens equivale a
um terço do salário mínimo e os serviços não correspondem às péssimas
condições de viagem em cidades que entraram em colapso. Este primeiro
catalisador que se mostrou mobilizador e legítimo, é interessante por
ser estranho ao tipo de reivindicações que estão na consciência e na
formação histórica do PT. Enquanto os governos das grandes cidades
estavam reagindo à força das ruas, começamos a conhecer um mundo onde os
custos dos transportes só favoreciam as empresas, um tipo de
financiamento dos serviços que geralmente cai sobre os ombros do usuário
a uma taxa maior do que em outros lugares do mundo (apenas 10% é da
empresa), um tema central nas cidades de hoje que se estruturam de forma
injusta, familiar a todos os temas que são organizados pelo Estado.
Neste sentido, a resposta inicial do governo é o silêncio ou a repressão
policial, seja qual for o partido no poder, não podia senão reforçar a
leitura de um vazio, que no passado poderia ser o PT propondo outra
política.
Nas ruas, a crítica à
magnitude do dinheiro transferido dos cofres públicos para um pequeno
grupo de empresas, nos transportes especificamente, imediatamente foi
conectado ao financiamento público da Copa do Mundo, justamente quando a
FIFA organiza um ensaio para o Mundial com a Copa das Confederações,
alvo de protestos. Do transporte, se passava ao futebol, permitindo
aflorar algo como a expulsão de moradores das áreas turísticas,
faraonismo megalomaníacos e contratos imensos com muito pouco controle
sobre eles. Algo desse tipo também se encontra no cidadão farto da
corrupção, mas se conecta melhor a conflitos locais que não alcançaram
tanta difusão, como algumas obras do metrô de São Paulo, ou a demolição
de um museu indígena histórico na expansão do estádio do Maracanã, no
Rio de Janeiro. Cidade vai receber a final da Copa do Mundo e antes o
Papa Francisco – cujos gastos também são criticados – pondo um alerta ao
governo, a partir do plano de contingência militar que este
disponibilizará na ocasião.
Outras discussões em voga
são as formas de participação política. Um movimento horizontal surgido
no Fórum Social Mundial em 2005, que propõe anular as tarifas de
transporte nas metrópoles, deixando nervosos os negociadores políticos, a
inteligência do Estado, policiais e jornalistas que buscavam
identificar e compreender as formas políticas criadas contra o rosto
autista poder político, que manteve o envio da polícia e só conseguiu
suspender o aumento das tarifas como medida de emergência que procurou
restabelecer a ordem, sem realmente sentar para discutir uma resposta
relacionada com os reais problemas em discussão. O Movimento Passe Livre
também abriu as discussões sobre a questão coletiva, e não apenas para
pensar as políticas públicas, mas para pensá-las a partir das
mobilizações e de suas formas de organização.
Na quinta-feira, já com a
medida anulada, mais de um milhão de pessoas ocupou as ruas nas cidades,
de acordo com a imprensa, que até então e na maioria das vezes,
minimiza o número de mobilizados. Nesse momento, passou a fazer sentido
uma ideia que correu as manifestações desde o início: “Não são apenas 20
centavos”, “queremos mais”. Foi quando os partidos de esquerda e os
jovens que iniciaram o protesto com poucas pessoas no começo do mês,
seguiram embandeirados agora com grupos de verde e amarelo que gritavam
contra a corrupção, grupos fascistas que agrediram e queimaram bandeiras
de partidos, mas a maioria das pessoas pediam outra coisa, com cartazes
caseiros feitos em casa ou no pátio da faculdade, gritavam contra a
homofobia que o Congresso havia expressado na mesma semana (com a
proposta de “cura” gay), por saúde ou educação, ou simplesmente para se
reunir e tomar as ruas.
O conteúdo fascista surgiu
de um movimento que era forte por sua capacidade de discutir um assunto
delicado num sistema injusto. Apesar de animado com a possibilidade de
um novo Brasil que, nos últimos anos, havia saído das ruas, a esquerda
não sabia ser era uma reação intolerante contra as forças de mudança que
haviam sido liberadas nos últimos anos ou de uma coincidência incômoda.
Emir Sader, um conhecido “operador” petista das redes sociais,
demonstrava esse desconcerto. Na manhã de quinta-feira, disse que iria
para a manifestação com sua camisa vermelha, como parte do movimento que
as bases do PT apoiavam, tal como confirmado pelas próprias declarações
de Dilma e Lula ao cumprimentarem os protestos na segunda-feira. Em seu
retorno, ele escreveu a seus contatos no Facebook que “a partir de
hoje, aqueles que participam desses eventos apoiam as hordas fascistas
que querem acabar com a democracia no Brasil.”
Mas por que o PT?
Perguntará o leitor que não está a par das alianças de Dilma com o velho
poder, com os ruralistas na invasão e destruição de territórios
indígenas na Amazônia, com as demandas da direita religiosa homofóbica,
com o poder financeiro e as grandes construtoras que geraram não menos
protestos e reações menos visíveis. Não é que o Brasil está crescendo e
vai bem, com milhões de recém-chegados à classe média, o desenvolvimento
socialmente inclusivo, exportações em expansão, protagonismo no mundo e
sucesso na organização de eventos esportivos internacionais? Vemos em
revistas que os brasileiros são compradores de apartamentos caros em
Manhattan e em São Paulo há representantes das lojas e marcas mais
exclusivas e caras do mundo. Dilma também, até a última semana, tinha
pelo menos 80% de aprovação detectada por essas pesquisas encomendadas
que fazem parte dos modos de existência de um poder que se encerra em si
mesmo.
Evidentemente, há mais de
um Brasil, e isso ficou claro esta semana com as manifestações e as
próprias mobilizações, para muitos. Não há necessidade de recorrer a
estatísticas para retratar a situação atual. Se você mora na periferia
da cidade, não tem acesso a uma boa escola ou hospital, precisa viajar
várias horas do seu dia para trabalhar e possivelmente sofre de
violência policial. Se você não faz parte dos reduzidos grupos
econômicos com ganâncias extraordinárias, sem dúvida terá muitos motivos
para simpatizar com o novo Brasil das mobilizações. Um Brasil que se
encontrou com seus monstros nas ruas, mas também com a política “feita
pelas suas próprias mãos”, que até agora parecia normal ser seu outro.
Fonte: Rede Universidade Nômade
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