PICICA: "Adotar a pedagogia insurgente e a força das mobilizações como arte de governar
é abrir a esfera de decisão para esse repertório-sem-fim de atividades e
iniciativas difusas e entrelaçadas.
[...]
Nesse sentido, a
mobilização que estamos vendo nos últimos quinze dias pode ser vista
como um mobilização do comum. Os reclamos por uma pauta única não fazem
mais sentido aqui. E também perderam o sentido aquelas pautas
específicas que pressupõem que a vida urbana seja separada em gavetas
distintas e incomunicáveis. O que temos de especial é uma multiplicidade
de pautas, de exigências e de possibilidades que afirmam a dimensão
comum do urbano, aquela que não se reduz nem aos fragmentos das
políticas setoriais, nem à unidade das políticas prioritárias. “Queremos
tudo e agora”, afirmam os jovens que estão violentamente pacíficos nas
ruas e que foram aplaudidos pela população."
A atualidade de uma democracia das mobilizações e do comum
26/06/2013
Por Alexandre Mendes
Por Alexandre Mendes, da UniNômade
1) Introdução
Escrever no momento
em que tudo parece confuso e o campo de possibilidades de ação se
mostra, no mínimo, turvo é um desafio. A tentação é ficar apenas
observando, deixar os dias passarem, aguardar novas movimentações, a
espera de um instante de clareza e calmaria no complexo campo de forças
que se estabeleceu há duas semanas. Com certeza, seriam menores os erros
e mais ágil o pensamento. A prudência manda ficar quieto e observar.
Nas propostas de mobilização e atividades na rua, por um tempo, ganhou
terreno o mesmo raciocínio. Seria tempo de deixar o mar revolto e amorfo
passar, para depois voltar a remar na direção de um local certo e
preciso.
Devemos correr o
risco de atuar no sentido contrário, escrevendo, tomando decisões e
propondo novas ações, a partir, exatamente, do coração dessa mistura
caótica?
Creio que sim. E o
retorno dos encontros para organizar novas ações caminha na mesma
direção. O tempo está mais acelerado que nunca e não convém abandonar a
nossa capacidade de conduzi-lo de forma virtuosa. Abandonemos o rigor
disciplinar da “boa conduta e análise revolucionária” de lado em prol de
uma abertura à experimentação e à tentativa de esboçar pequenos,
instáveis, precários, mas permanentes mapas de luta e reflexão. Nada nos
impede de, amanhã, amassarmos o papel e jogá-lo no lixo, de revertermos
a frustração de uma ação mal-sucedida, por uma nova proposta de ação.
Seríamos imprudentes? Ora, não seria a prudência, desde os gregos, o
melhor antídoto para combater o medo e covardia ao possibilitar a
realização de condutas em meio à surpresa, ao risco ou ao contingente?
A questão, então, não seria “agir ou não agir”, mas como agir
no interior do atual campo de disputas e acontecimentos. Este parece
ser o tom das discussões que tomam novamente as assambleias, plenárias,
encontros informais e eventos políticos. Nosso esforço está direcionado
para esse mesmo desafio. Não pretendemos pontificar nenhuma derradeira
“solução” ou esboçar uma “manual” de conduta. Nossa tarefa é apenas
lançar alguns pontos de reflexão, linhas de um mapa, que, espero,
colabore com as recentes mobilizações.
2) A situação está melhor que antes. Saímos do consenso unívoco e silencioso para o dissenso generalizado e polifônico.
No momento em que
ventos pessimistas se aproximam, é preciso declarar que, apesar de todos
os riscos, a proliferação veloz das revoltas urbanas que tomaram o País
nos coloca em uma situação melhor do que a anterior. O consenso que
havia se formado a partir da dinâmica dos megaeventos, do
neodesenvolvimentismo economicista, do projeto único de governo definido
“de cima para baixo”, implodiu. O Brasil Maior se estilhaçou em
inúmeros fragmentos lançados para todas as direções. No campo político,
ele era formado por uma costura de alianças que paulatinamente foi
cerrando todos os canais democráticos de dissenso e forçando as
múltiplas visões e realidades a se reduzirem ao “Um”. Não por acaso, o
Rio de Janeiro era o laboratório privilegiado desse fenômeno. O poder
político, econômico e simbólico tentou nos fazer acreditar que éramos
“Um Rio”, mas a cidade implodiu-explodiu recusando de forma selvagem a
operação de redução. O somatório de forças, que foi apresentado como
solução para a crise da ex-capital, se converteu rapidamente em um “rolo
compressor” que atropelava tudo e todos.
Por mais que, na
fumaça dos escombros, o “Um” esteja tentando se reafirmar a partir do
avesso – a unidade do “povo” – a multiplicidade recuperou a sua
capacidade de se afirmar politicamente e de se constituir como horizonte
do possível. Nossa tarefa é evitar que ela seja novamente esmagada por
um trágico encontro entre o Brasil Maior (em crise) e o “gigante que
acordou”. Urge proliferarmos instâncias que multipliquem continuamente
as diferentes formas de vida e de expressão. Afirmar uma paleta de mil
cores que recusa uma só bandeira, garantirmos o direito ao dissenso
contra todas as tentativas de reconstruir, em bases ainda piores, o
consenso que o atual ciclo de lutas desmanchou. Ao que tudo indica, e ao
contrário das previsões mais pessimistas, esse caminho tem se mostrado
mais aderente às mobilizações que as ameaças fascistas realizadas nos
protestos anteriores (agora reduzidas aos patéticos manifestantes que
ocuparam uma Av. Rio Branco vazia).
Os riscos são novos,
mas as oportunidades também. Saber aproveitá-las é um dos desafios mais
complicados e instigantes do atual fazer-movimento. E deve começar
agora.
3) O ciclo de
lutas coloca em evidência a centralidade do direito à cidade. Estamos
vivendo a primeira greve geral metropolitana.
Que a insurgência
generalizada tenha se iniciado a partir de uma luta pelo direito à
mobilidade não é mera coincidência. Se antes a cidade era o “suporte”
para unidades de produção que determinavam diferentes usos do território
segundo uma lógica disciplinar-fabril, comercial ou administrativa, nas
ultimas décadas o urbano tem se constituído como o próprio terreno da
produção e daquilo que é produzido. Uma produção social, difusa e
permanente que não pode mais ser separada da chamada esfera da
“reprodução”, aquela que corresponde à própria vida. Produção do urbano e
da vida urbana não só coincidem como se alimentam mutuamente. As lutas
que tradicionalmente foram (e ainda são) realizadas sob o signo das
“condições de trabalho”, no urbano significam batalhas a serem travadas
no campo dos serviços urbanos e sociais. A ampla aceitação da população
ao movimento de redução das passagens e de melhoras no transporte
público (inclusive “com baderna”, assustando o populismo televisivo) não
traduz nada mais que a constituição de um terreno comum de luta, que é a
“fábrica difusa” da própria cidade e seus serviços.
Está declarada a
greve geral do trabalho metropolitano! As metrópoles pararam e mesmo
aqueles que habitualmente são colocados pela mídia como “vítima dos
transtornos” apoiavam enfaticamente a luta que se tornou incontrolável. O
que já aprendemos dessa revolta é que, assim como os operários de
diversas “categorias”, os habitantes das metrópoles podem se unir e se
articular produzindo uma ação conjunta de efeitos impressionantes. Com
as redes sociais (porque não a chamamos de o novo âmbito sindical, sem
excluir aquele tradicional) isso pode ser feito em coordenação
simultânea com centenas de cidades, no Brasil e no mundo. Foi o que nós
fizemos e ainda soa inacreditável.
Não esquecer que as novas lutas em torno da dignidade da vida urbana incluem o próprio direito de produzir
o urbano, na clássica e antecipada visão de Henri Lefebvre. Possuímos
instituições que democraticamente permitem essa produção? Sem dúvida
esse desafio está colocado, mas uma questão já é determinada: a greve
metropolitana funcionou como um verdadeiro processo “destituinte” de
formas de governança das metrópoles que monopolizam a prerrogativa de
produção do urbano. A conquista dos vinte centavos representou uma
vitória imensurável porque arrancou das mãos do governo e das empresas o
poder de determinar, a partir de contratos suspeitos e gastos
sigilosos, o preço da tarifa. A demora e a recusa dos governos em
anunciar a medida, mesmo daqueles que deveriam ser progressistas,
comprovou que o movimento adentrou na área do vespeiro. Uma fenda se
abriu nas estruturas antes impenetráveis do público-privado.
O desenrolar do
processo de luta acusou outro movimento “destituinte”, agora referente à
urbanização VIP estimulada pela dinâmica dos grandes eventos, mas
também pela especulação imobiliária com suas arquiteturas falsamente
exuberantes (que escondem na verdade uma terrível miséria). A aceleração
do processo de expropriação dos bens comuns, a imposição de uma
estética e de formas de vida elaboradas pelo marketing previsível
das empresas, o cercamento e a mutilação de espaços de alegria, de
convívio e de encontro dos habitantes da cidade, a segmentação baseada
na propriedade e na renda dos locais de entretenimento despertaram
paulatinamente uma recusa radical do modelo. O “padrão-FIFA”, com suas
zonas exclusivas e mordomias seletivas, ostentadas ao lado de serviços
sociais degradados (saúde e educação), está sendo severamente
questionado a ponto de se falar que “não vai ter Copa”. E a rua, que, na
propaganda, deveria ser a maior arquibancada do Brasil, justamente para
abrigar todos aqueles que se tornaram subitamente “sem-estádio”, se
transformou no local dos novos enfrentamentos por outra forma de
produzir o urbano.
Não se sabe, agora,
se as grandes mobilizações de rua, com centenas de milhares de pessoas
continuarão paralisando as cidades e mentalidades. Fato é que estamos
vivendo uma desterritorialização do movimento, com pequenos protestos
estourando em vários lugares ao mesmo tempo. As periferias e favelas,
cuja participação muitos duvidavam, foi para a rua e escancarou a
desigualdade do tratamento policial entre classe média branca e
população negra e favelada. É ao mesmo tempo fabuloso e estarrecedor
acompanhar a mobilização das favelas. Uma juventude corajosa e virtuosa
vai para a rua mas as balas não são de borracha. Possivelmente, no Rio,
esses protestos servirão para desnudar a violência policial extrema, de
uma polícia que estava vendendo ao mundo a ideia de “humanização”,
“pacificação” e aproximação comunitária. Seja em locais “pacificados” ou
não, a total incompatibilidade da polícia militar com a democracia
resta evidente. A continuidade dos movimentos nos colocará, por certo,
uma chance única de desativar essa máquina de matar. Não podemos perder
essa oportunidade.
4) A greve geral tem classe. Sua nova composição não está domesticada pela noção de “Classe C”
Diversos analistas
tem, nos últimos anos, comentado a emergência veloz e significativa de
uma “nova classe média”, representada pela camada da população que
conquistou renda e novos espaços sociais no contexto do Governo Lula.
Rapidamente, economistas, empresas e governos começaram a desenhar novos
moldes para ajustar os novos consumidores em estratégias de venda e
estímulo ao “empreendedorismo”. A periferia, e seus mediadores, adquirem
uma nova centralidade, denominada por Marcelo Neri de “o lado brilhante
dos pobres”. Como a metáfora indica, imaginou-se que a nova “Serra
Pelada” poderia ser escavada pacificamente rendendo bons frutos a todos
que tivessem lido o livro Mistérios do Capital (De Soto, H) e o colocado
na cabeceira. Mas não só o capital, também a “classe” tem os seus
mistérios.
Um deles é que a
classe, longe de ser definida por traços sociológicos, é engendrada
continuamente pelas lutas. A atual greve metropolitana, assim, funciona
como um dispositivo que, ao mesmo tempo, é resultado dessa nova
composição de classe e funciona produzindo essa classe. Essa
produção é aquela correlata à própria produção do urbano e suas
múltiplas centralidades. Não é por acaso que no início das mobilizações
encontrávamos a expressão mais potente dos novos personagens que
entraram em cena: os jovens que conquistaram novos espaços sociais
(entre eles a universidade), novas condições de desejar e lutar, e que
também atravessam e compõem diversas formas de organização política. O
terreno de disputa deles é a cidade, seus usos e suas possibilidades.
Uma fina e quase invisível articulação, com o tempo, foi sendo tecida
até que a redução da tarifa se colocasse como ponto de encontro das
muitas e variadas dimensões dessa nova composição. Os jovens gritavam
palavras de ordem, os senhores de idade, os pais e as mães, aplaudiam. A
“classe C” que era pra ser domesticada pelo consumo, pela polícia de
pacificação e pela “formalização” autoritária, entrou num processo
rápido, intenso e insurgente de “fazer-multidão”.
A greve
metropolitana, então, pode nos servir para uma ampla revisão e reflexão
sobre as políticas destinadas à domesticação da classe que se institui
no processo de luta. Nos processos de “integração” sonhados pelos
ideólogos da Prefeitura do Rio, por exemplo, imaginou-se que a “nova
classe média” iria adentrar no setor de serviços de maneira pacífica e
ordeira, mesmo com sua prestação péssima e suas tarifas altíssimas.
Pensou-se que os jovens (e antigos comerciantes) desejariam ser novos
empreendedores da cidade-empresa. Que os moradores de favela deveriam
ser removidos para “empreendimentos” do Minha Casa, Minha Vida, para ter
uma moradia digna. Que, para trabalhar, os ambulantes precisavam ser
regularizados e disciplinados a partir de pontuações estúpidas e
determinações servis. Que os jovens que produzem cultura, novas mídias,
tecnologias e linguagens, deveriam ser controlados pelos recentes museus
da Fundação Roberto Marinho e pelas baboseiras da “cidade criativa”.
Mas eles não querem nada disso! Querem produzir o urbano a partir de
formas de sociabilidade autônomas, horizontais e democráticas. E, para
isso, é preciso conquistar mais direitos, serviços urbanos, espaços,
liberdades e se apropriar de muito mais riqueza do que a promessa de
crescimento gradual oferece.
Muito mais que uma sociológica “nova classe média” o que estamos vendo é a constituição da classe como produção de subjetividade:
uma construção política que resiste a todas as estatísticas. A
intensidade dessa produção explica como pode haver um extraordinário
levante insurrecional num ambiente que era visto como consensual
politicamente e estável economicamente. Os “determinantes objetivos” se
demonstram inócuos exatamente porque não perceberam a dimensão
ontológica, radical e produtiva da nova subjetividade.
Os tecnocratas
neoliberais, cada vez mais bajulados pelos governos do PT, não só não
compreendem esse fenômeno, como insistem em políticas que, se não são
inúteis e ineficazes, são verdadeiramente antidemocráticas. Uma
economista carioca, que ocupa lugar de destaque, chegou a imaginar que a
combinação entre o mercado financeiro e o terceiro setor pudesse
apresentar projetos “sustentáveis” para a favela! Mas estão todos
quietos e assustados agora. E é preciso aproveitar a onda de protestos
para acertar as contas e substituir os “teóricos da domesticação” por
novos quadros que compreendam em sua dimensão virtuosa e selvagem o
trabalho e o desejo da multidão.
O que parece claro é
que neoliberais e neodesenvolvimentistas foram desafiados por uma dupla
recusa: a do Brasil Maior que gradualmente transformaria a classe que
luta em “classe média” através de um programa de estímulo ao crescimento
e pleno emprego e com a homologação do crédito e do consumo; a da
cidade-empresa que a integraria a partir da dinâmica dos serviços
(ineficientes e caros), do “empreendedorismo” cultural, terciário e
“criativo”. Os megaeventos deveriam pavimentar essa ponte e conectar os
nós das metrópoles-empresas na grande rede do Brasil Grande. Mas tudo
isso está ruindo… E o que aparece agora em contornos reais é tão somente
a crueza da violência da polícia e dos governos.
5) Evitar as identidades, fazer ranger a forma-partido
Quem percorreu as
reuniões do campo progressista, que ocorreram no ultimo final de semana
(dia 22.06), percebeu que, em alguns militantes, havia uma vontade
subliminar ou expressa, talvez justificada pelo medo e pela incerteza,
de que tudo voltasse ao que era antes. “Pelo menos não tínhamos o risco
do fascismo e nossas bandeiras não eram atacadas”. Algumas propostas
eram bastante reativas, como a formação de uma “frente” para defender as
cores, tradições, bandeiras e protocolos do movimento de esquerda. Se o
fascismo aparece como situação tão problemática como minoritária
(espero!), aquilo que, de fato, chama a atenção é a base social
ampla que apoiou e veiculou as críticas aos mecanismos internos e
externos dos partidos políticos. A extrema-direita tentou surfar nessa
onda, mas o fato é que, ainda quando os protestos eram pequenos, muitos
militantes apresentavam a preocupação em se manter a autonomia do
movimento e evitar uma prejudicial cooptação. E depois de terem sofrido
uma injusta e repugnante violência (nos atos maiores), que foi apoiada
por uma intensa e sonora vaia, os partidos políticos ou ficaram
reativos-identitários ou nunca mais serão os mesmos.
A segunda opção
parece ser a mais promissora, no sentido de alavancar novos
agenciamentos coletivos que possam atravessar virtuosamente a chamada
“crise da representação”, multiplicando âmbitos inovadores de
organização e produção luta. O desafio parece ser, ao mesmo tempo,
evitar o desgastado vanguardismo, que irrita tantas pessoas, e a
cooptação oportunista dos fluxos de mobilização jovem, como bem
registrou Giuseppe Cocco no artigo “Não existe amor no Brasil Maior” (Le Monde Brasil),
que antecedeu, em dias, o poderoso levante democrático que estamos
vivendo. Nem o partido-fábrica, com seus gerentes, cadernos de ordem e
disciplina, nem o partido-financas, com a cooptação móvel e flexível dos
fluxos produzidos autonomamente pela luta. Será possível reinventar os
partidos de esquerda na direção de uma espécie de teia rizomática, que
permitiria a livre e potente expressão de vários pontos ou nós
articulados e insurgentes? Eis uma questão que está, a meu ver,
colocadas pelo atual ciclo de lutas.
6) Manter o poder constituinte da mobilização: produzir o comum
Da mesma forma que,
em quinze dias, saímos do consenso silencioso para o dissenso
generalizado, também realizamos uma profunda mudança na pauta política
“oficial”. Em um governo tecnocrata e frio, que nunca ou pouquíssimo
escutava os movimentos, e que só entoava os termos “modernização”,
“enfrentamento dos gargalos”, “exportação”, “crescimento do PIB”,
“grandes empreendimentos” etc., conseguimos introduzir uma nova
gramática e o retorno da palavra “política”, anunciada como objeto de
reforma. A centralidade dos direitos sociais e a relação entre
movimentos/mobilizações sociais e governo voltaram para agenda da
Presidência, embora tudo ainda seja uma incógnita.
A reforma política
anunciada pela via da “constituinte exclusiva”, agora apenas por
plebiscito, está longe de ensaiar qualquer solução para o impasse, mas
também não deve ser descartada como abertura para novas reflexões e
ações. O problema jurídico era esperado e o constitucionalismo revela o
seu principal e cômico limite: a incapacidade de lidar com as
transformações sociais e o poder constituinte das ruas, sempre relegados
(e pessimamente estudados) ao momento pré-constitucional e
institucional. Daí o vai-e-vem das opiniões jurídicas e os limites da
“técnica” constitucional moderna. Se é fácil afirmar que o
constitucionalismo é o trunfo contra as maiorias para que os direitos
fundamentais não sejam violados, muito mais difícil é conceber uma
constituição aberta às mobilizações radicalmente democráticas e que não
se apresente como uma “pedra” no nosso caminho. Essa é outra tarefa
colocadas pelas lutas, e que deve tirar os juristas do seu conforto
repetitivo e solene.
A questão central,
por outro lado, não parece ser promover um arejamento institucional de
viés democrático (embora isso seja recomendável e importante) que
simplesmente responda à mobilização. Algo pensado como uma
espécie de remédio para curar a nossa vontade de ir para a rua. Qualquer
resposta colocada nesses termos pressupõe um desejo de fechar o
processo, concluir as insurreições. Mas, pelo contrário, o tormentoso,
empolgante e necessário desafio parece ser pensar a própria democracia
como uma abertura permanente à mobilização e aos processos
instituintes. Não operar respostas reativas mas promover espaços
políticos permanentes que possam manter a relação entre mobilização e
governo como um processo de textura aberta. Nesse sentido, a melhor
“solução” que o governo poderá ter diante dos protestos, é tomá-los como
uma verdadeira arte de governar: forçar o aprendizado, deixá-los
penetrar, deixar-se afetar constantemente, permitir o atravessamento,
criar uma pedagogia da insurgência que possa aquecer a máquina que
governa, friamente, os assuntos públicos.
Sabe-se que os nossos
mais valiosos militantes, intelectuais e políticos se dedicaram, desde
os anos 1980, a pensar, em geral, uma democracia participativa e
descentralizada, de bases locais ou não, que privilegiasse o
acompanhamento da população interessada e afetada nas 9políticas
implementadas pelo Poder Público. E assim foram imaginados alguns
importantes capítulos da 9Constituição Federal e legislações que tratam
da saúde (SUS), da cidade (Política Urbana, art. 182, e o Estatuto da
Cidade), da cultura (a recente “PEC da cultura”) e da educação (LDB e
FUNDEB). Essa partitura de âmbitos institucionais expressam, sem dúvida,
o resultado das mobilizações que ajudaram a democratizar o Brasil e
lutaram contra o estado centralizado e burocrático da ditadura militar.
No entanto, os mesmos
sujeitos citados acima são, hoje, aqueles que mais criticam e
identificam uma crise ou um impasse na efetividade e na eficácia desses
instrumentos de democracia participativa. De que forma as recentes
mobilizações podem nos ajudar a romper essa crise? É possível pensarmos
em uma democracia baseada, não apenas na participação, mas,
principalmente, na mobilização? Uma democracia que animasse ou
transformasse as “instâncias participativas” em verdadeiras
“mobilizações instituintes” de caráter permanente?
Seria, sem dúvida,
presunçoso querer dar uma resposta a essa questão. Se é certo que a
proliferação de “instâncias sem o instituinte”, ou seja, de âmbitos que
se tornaram falsamente democráticos, faz parte das inúmeras razões das
lutas atuais, a possibilidade de se manter uma transformação
constituinte, que não se confunde com a reforma, só poderá ser dada pelo
próprio movimento.
Dentre as inúmeras
arapucas montadas para esvaziá-lo, existe aquela da dicotomia entre
público e privado. Se a crise do Estado Social leva consigo,
progressivamente, a existência dos serviços estatais, que eram movidos
por grandes blocos de representação política e por fortes investimentos e
instrumentos fiscais, o rearranjo neoliberal que, no Brasil, a partir,
principalmente, de 1995, colocou na agenda o chamado “Estado regulador”,
baseado na expansão das concessões e permissões ao setor privado, jogou
as políticas públicas num buraco negro de negociações fechadas, escusas
e antidemocráticas. A regulação pública autônoma, a prometida
eficiência e regularidade dos serviços, a modicidade das tarifas e a
segurança do usuário não só se converteram em “mitos”, como começaram a
gerar um sentimento justificado de revolta e indignação da população.
Daí que a dupla-crise
exige não só a aposta na participação, mas, a imaginação de serviços
que, para além dos estatais ou privados, sejam serviços comuns. É a hora de rompermos as subordinações que os usos e os bens comuns
possuem com relação ao Estado e ao Mercado e afirmar a nossa capacidade
de gerir os serviços a partir de formas compartilhadas e radicalmente
democráticas que caminham, passo a passo, com a produção social e comum
do urbano. O que o movimento pela Tarifa Zero demonstra de interessante é
que os custos para se viabilizar a cobrança pública ou privada das
tarifas são altíssimos e acabam por bloquear a produção do comum urbano
pela imobilidade.
Não seria essa a
discussão que se dá em diversos campos que colocam a “expropriação do
comum” como um dos problemas centrais do capitalismo contemporâneo? O
saque realizado nas redes da cibercultura, na produção de saberes, nas
terras e florestas, nos recursos ambientais, na própria linguagem, nas
formas contemporâneas de trabalho e nos nossos modos de vida. O
“padrão-FIFA” são seria uma autêntica máquina de expropriação das
paixões, do esporte, da cultura e dos comuns urbanos. Que tenhamos
vivido um poderoso levante, um dos maiores do mundo, contra essas formas
de apropriação é de fato incrível.
Como realizar
políticas do comum? Sabemos que para efetivar de forma justa a tarifa
zero precisaríamos supor que todo o orçamento público e todo o
faturamento privado, ou seja, todo a riqueza produzida de forma comum,
possa se abrir para um amplo debate de opções, escolhas e decisões
compartilhadas. “Queremos as planilhas e queremos decidir agora sobre
elas”. Vejam que todas as “instancias” de decisão e todo o resultado da
produção devem se abrir no mesmo movimento. O que se denomina “caixa
preta” dos transportes é exatamente o ponto nevrálgico da relação
público-privado que alimenta a expropriação da produção urbana.
Poderíamos imaginar uma implosão de todas as caixas-pretas que estão
plantadas e que funcionam como saqueadoras da produção do comum urbano
(na saúde, na educação, nas obras públicas, na construção civil, nos
empreendimentos imobiliários, nos serviços, nas empresas terceirizadas,
das relações de trabalho, no lazer, no turismo etc.)? Poderíamos pensar
sua substituição por “caixas do comum”, pelas quais a multidão retoma a
capacidade de decidir sobre as políticas públicas e retoma a riqueza
produzida em comum.
Decerto, não estamos
falando de um “grau zero” da política. O comum já está dado e já existe
na produção de uma gama infinita de organizações urbanas, movimentos
sociais, arranjos comunitários, informais, redes metropolitanas, âmbitos
de discussão, proposição e reflexão, institucionalidades abertas,
fóruns públicos e expressão singulares dos habitantes da metrópole. O
comum não é só o resultado da produção do urbano, mas também sua própria
produção.
Adotar a pedagogia insurgente e a força das mobilizações como arte de governar
é abrir a esfera de decisão para esse repertório-sem-fim de atividades e
iniciativas difusas e entrelaçadas. Os projetos alternativos da Vila
Autódromo, do Horto, da Providência, a contra-agenda que as favelas
colocam às UPPs, as discussões sobre a linha 04 do metrô e o modelo de
transportes, as formas democráticas existentes de prevenção do risco nas
encostas, a ocupação cultural e criativa do espaço público, os usos e
os sentidos que os habitantes cotidianamente conferem à cidade, o
trabalho dos ambulantes e precários, as alternativas pedagógicas na
educação, a produção de novas redes de cuidado e de controle democrático
na saúde, os fóruns que buscam uma abertura no monárquico sistema de
justiça, as redes de comunicação autônomas e de mídia livre, são algumas
expressões coletivas e singulares dessa produção que busca
incessantemente novas instituições democráticas.
Nesse sentido, a
mobilização que estamos vendo nos últimos quinze dias pode ser vista
como um mobilização do comum. Os reclamos por uma pauta única não fazem
mais sentido aqui. E também perderam o sentido aquelas pautas
específicas que pressupõem que a vida urbana seja separada em gavetas
distintas e incomunicáveis. O que temos de especial é uma multiplicidade
de pautas, de exigências e de possibilidades que afirmam a dimensão
comum do urbano, aquela que não se reduz nem aos fragmentos das
políticas setoriais, nem à unidade das políticas prioritárias. “Queremos
tudo e agora”, afirmam os jovens que estão violentamente pacíficos nas
ruas e que foram aplaudidos pela população.
Conectar esse desejo
de transformação a novas instituições do comum, encontrar uma democracia
das mobilizações que inove radicalmente as estruturas políticas
existentes, são desafios riquíssimos que, a meu ver, o movimento tem
pela frente. E não estamos falando de uma utopia distante pela qual
devemos sonhar e direcionar candidamente o olhar. Trata-se simplesmente
de produzir novos âmbitos políticos adequados às formas de vida que já
estamos vivendo. Por isso, a alternativa não está nem além, nem aquém,
da atualidade. Romper os constrangimentos, irromper o que nós já somos e produzir a atualidade do real, eis uma agenda vibrante para os próximos dias.
Divulgue na rede
Fonte: Rede Universidade Nômade
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