PICICA: "Os garotos que correm com os capacetes e escudos pelas ruas, que sobem nos monumentos, que aparecem e desaparecem nas banlieues,
tocando fogo nos automóveis e nas latas de lixo, mostram a existência
de um campo de forças que escapa às categorias políticas tradicionais,
ao marxismo e ao pós-marxismo tanto quanto às teorias neoliberais. A
revolta acontece, do mesmo modo que um evento artístico, uma
manifestação momentânea, uma performance. Não se pode representá-la nem
de forma política nem espetacular; é um acontecimento extático, mais
próximo das formas religiosas, da festa, do que das estruturas da
representação política, tais como um partido ou um parlamento: vive, não
se representa. A sociedade do espetáculo que dominou nos últimos vinte
anos, realizando a profecia de Guy Debord, agora tem diante de si uma
série de acontecimentos não capturáveis nas formas do espetáculo
midiático."
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A revolução acabou. Começa a idade da revolta por Marco Belpoliti (Publicado originalmente no La Stampa em 16 de fevereiro de 2010. Disponível em http://www3.lastampa.it/politica/sezioni/articolo/lstp/380235/ - Tradução de Eduardo Sterzi)
Adeus, revolução? Sim, o seu lugar foi tomado
pela revolta. De Clichy-sous-Bois, na periferia parisiense, em 2005,
até Atenas em 2008, até o ataque dos estudantes londrinos em 2010, ou
até a passeata dos estudantes ganhar as ruas de Roma anteontem, a
revolta parece ter tomado o lugar das forças revolucionárias. A revolta
não tem projeto, não se projeta no tempo futuro. Como sustentou um dos
seus teóricos, o germanista e mitólogo Furio Jesi, morto justo há
trinta anos, em Spartakus. Simbologia della rivolta, texto de
publicação póstuma, «antes da revolta e depois dela se estendem a terra
de ninguém e a duração da vida de cada um, nas quais se perfazem
ininterruptas batalhas individuais». Evocando Rimbaud e a Comuna de
Paris, Jesi afirmava: «Só na revolta a cidade é sentida como o haut-lieu
e ao mesmo tempo como a própria cidade»; na hora da revolta não se
está mais sozinho, mas se está no fluxo cambiante do Nós, entidade
provisória e lábil, extática e violenta.
Depois do fim das ideologias, depois da queda
do Muro de Berlim e do triunfo do pensamento único, no Ocidente como no
Oriente, em Nova York como em Xangai, a revolta suspende o tempo
histórico e cria o instantâneo; é o triunfo do presente contraposto ao
futuro. Não se espera mais o dia da conclusão do longo processo
revolucionário. A revolta instaura um tempo extático, escreve
Pierandrea Amato, um dos teóricos das novas revoltas metropolitanas, o
aqui e agora. Walter Benjamin relata como, no decurso da Comuna de
Paris, os revoltosos dispararam contra os relógios, símbolo do tempo
escandido pelo progresso, pela disciplina do trabalho. A revolta não
prevê, mas vive no repentino; não pressupõe nem mesmo uma classe social
que tomará o poder, mas só indivíduos atomizados, que no curso das
insurreições espontâneas, não preparadas e contagiosas, se tornam uma
força provisória. Se as revoluções cultivavam o sonho do ataque ao
Palácio de Inverno, conquista do centro simbólico do poder, a revolta
advém de modo molecular com o intento de condicionar materialmente o
andamento normal das coisas.
Depois da revolta nada é mais como antes. Para
os seus teóricos – Paolo Virno, um dos filósofos italianos hoje mais
citados no mundo, mas também os franceses Alain Badiou e Jacques
Rancière – a revolta é o análogo da catástrofe, do colapso a que nos
habituou o novo capitalismo financeiro, a única resposta possível a uma
sociedade que não parece mais ter nenhum fundamento certo, nenhuma
teoria com a qual justificar o próprio domínio, a não ser a coerção, o
uso da força ou a sedução do consumo. Vivemos na época do desastre,
como havia intuído na metade dos anos sessenta Susan Sontag.
A revolta é filha da crise da democracia
representativa que no Ocidente, por causas complexas, parece ter
perdido a própria função histórica. Os revoltosos, movidos por razões
freqüentemente diferentes, mostram, nas periferias urbanas francesas
como no centro de Roma, nas ruas de Atenas como nas localidades ao
redor de Nápoles, o emergir de uma política que se põe para além do
sistema que hoje a representa: são a expressão de uma caótica e
espontânea vontade de viver, oposta e simétrica àquela que na Itália
domina a cena política maior. Pierandrea Amato, em La rivolta, publicado recentemente, escreve que a revolta é um vento que traz consigo a própria auto-desintegração.
Os garotos que correm com os capacetes e escudos pelas ruas, que sobem nos monumentos, que aparecem e desaparecem nas banlieues,
tocando fogo nos automóveis e nas latas de lixo, mostram a existência
de um campo de forças que escapa às categorias políticas tradicionais,
ao marxismo e ao pós-marxismo tanto quanto às teorias neoliberais. A
revolta acontece, do mesmo modo que um evento artístico, uma
manifestação momentânea, uma performance. Não se pode representá-la nem
de forma política nem espetacular; é um acontecimento extático, mais
próximo das formas religiosas, da festa, do que das estruturas da
representação política, tais como um partido ou um parlamento: vive, não
se representa. A sociedade do espetáculo que dominou nos últimos vinte
anos, realizando a profecia de Guy Debord, agora tem diante de si uma
série de acontecimentos não capturáveis nas formas do espetáculo
midiático.
Aquilo que, em definitivo, a revolta
desestrutura é a idéia mesma da identidade política. O Nós aparece e
desaparece, e suspende o tempo histórico em favor daquele que os gregos
chamavam Kairos: o justo instante, o golpe de vista, aquele em que o
atleta perfaz o movimento justo, supera o adversário, cruza a linha de
chegada. Devemos preparar-nos para viver num tempo diverso daquele que
marcou as vidas dos nossos pais e avós, um tempo que não tem uma única
direção, ou uma destinação predeterminada, mas que acontece e ao mesmo
tempo colapsa, que se mostra e se subtrai. O Homo seditiosus é o
campeão de uma humanidade que sai às ruas hoje, mas também amanhã e
depois de amanhã, para realizar «uma arte sem obra».
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Fonte: Cultura e Barbarie
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