setembro 14, 2013

"As lutas na transição irresolvida, entrevista com Michael Hardt" (Universidade Nômade)

PICICA: "Podemos dizer que um governo como o de Lula — e em formas diversas que possam valer também para outros governos latino-americanos — era ambíguo, tendo reunido elementos de continuação do neoliberalismo e uma abertura a respeito das instâncias constituintes autonomamente exprimidas pelos movimentos. Provavelmente essa ambiguidade mesma foi, simultaneamente, os seus limites e a sua força. As lutas no Brasil parecem baseadas sobre essa ambiguidade, revirada na potência expansiva da nova composição de classe.

Me parece um bom ponto de vista para captar a força e a origem dessas lutas na ambiguidade. Então, historicamente devemos pensar tanto Lula quanto Chávez como momentos de uma transição irresolvida. As lutas por isso se colocam no interior dessa transição irresolvida."


As lutas na transição irresolvida, entrevista com Michael Hardt

13/09/2013
Por Michael Hardt


Entrevista com Michael Hardt, por Commonware | Trad. UniNômade Brasil
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Em 2011, as insurgências no norte da África, as acampadas espanholas, a praça Syntagma, o Occupy, até chegar aos movimentos extraordinários na Turquia e no Brasil dos últimos meses. Embora talvez o conceito de ciclo pudesse ser repaginado, seguramente não é mais útil nos termos clássicos: porém, seria possível falar, digamos, de um ciclo da subjetividade das lutas na crise? Quais os traços comuns e as diferenças?

Ligando Turquia e Brasil à cadeia de lutas começadas em 2001, se põem em evidência pelo menos duas coisas. Em primeiro lugar, a continuidade ao redor da afirmação do comum da metrópole. Em Gezi e nas cidades brasileiras, as lutas trouxeram elementos novos, indo provavelmente além das de 2011, embora sobre a mesma linha: são certamente lutas antineoliberais, mas também contra o Estado, quer dizer, contra o “público”. Em Gezi, o projeto de fazer um centro comercial no formato de uma fortaleza militar do velho império — é verdadeiramente difícil imaginar uma combinação tão horrenda! — mostra que não há diferença entre “público” e “privado”. O projeto neoliberal da privatização do parque é, de fato, um projeto do governo; se trata então de uma salada de “público” e “privado”. Existem obviamente muitos outros elementos na luta de Gezi, mas seguramente ocorreu a afirmação do comum da cidade contra o “privado” e o “público”. Mesmo no caso brasileiro, se pode dizer mais ou menos a mesma coisa. Esta é a continuidade.

O elemento muito diferente é, na verdade, o fato que Turquia e Brasil são sociedades que não passam por uma crise econômica. Havíamos pensado os movimentos de 2011 no quadro da crise, enquanto nesses casos nos deparamos com lutas contra economias em expansão. É, portanto, ainda mais potente pensar em movimentos do comum que se realizam neste ciclo, mas num cenário de crescimento econômico. Não sei, ainda, quais são as consequências dessa diferença, me parece porém que uma luta pela libertação seja, em geral, muito mais potente e criativa num momento fora da crise, mas sim de expansão social, como, por exemplo, aconteceu em 1968. Isto torna muito interessante pensar também o que virá depois.

Este segundo elemento de diferença nos parece central. Na Turquia, e talvez ainda mais no Brasil, as lutas ganham corpo em situações em certo grau invertidas com relação à europeia e norte-americana: não há recessão, mas crescimento. É talvez, antes de qualquer coisa, uma crise de um modelo de desenvolvimento e das promessas de progresso a ele ligadas; no caso dos considerados BRIC (estendendo a definição para a Turquia), tal modelo é guiado pelo estado combinado com o “privado”. Nesse sentido, também as lutas estão, realmente, imediatamente contra o público-privado…

É verdade, e está em sintonia com a interpretação dos companheiros brasileiros, como Giuseppe Cocco. Para ele, não se trata tanto do modelo neoliberal, mas sim do modelo para uma modernização de longo prazo, que está em crise. Este é também o modelo da esquerda, já terminado, e as lutas estão tentando ir além.


Se isso é verdade, se coloca outra questão: cabe à nós articular uma ideia de outro desenvolvimento. Porque, a partir da crise desse modelo, se poderia realmente articular uma posição antidesenvolvimentista, como a de um Paolo Cacciari; mas a mim parece, em vez disso, que melhor aposta esteja na elaboração de uma ideia de desenvolvimento alternativo. Enquanto definição negativa, fica claro que o alterdesenvolvimento não pode ser caracterizado pelo crescimento econômico do ponto de vista quantitativo, como mais produtos. Talvez se pudesse chamá-lo como “desenvolvimento social e humano”, mas ainda é vago demais. Permanece o problema de como definir o alterdesenvolvimento em termos positivos. Seria útil aprofundar a questão e começar a articular uma ideia de desenvolvimento.

Desde vários anos já viemos falando dos processos de rebaixamento da classe média que, — dentro das transformações produtivas e da precarização do trabalho cognitivo, — cada vez mais perde a sua função política de mediação da luta de classe. Muitos comentadores falam, contudo, em movimentos da classe média, sem levar em conta que essa categoria é — pelo menos na Europa e América do Norte — inútil, já estando polarizada segundo outra composição de classe. Os companheiros brasileiros acrescentam um elemento: no Brasil, nos dizem, a dita “nova classe média” já nasce rebaixada, é imediatamente um proletariado cognitivo metropolitano. O que pensa disso?

Isto não se passa somente no Brasil, mas também pelo menos em uma parte das forças rebeldes na Tunísia e no Egito. Quando falamos de uma classe média rebaixada, a luta nasce da raiva de perder o que se tem; ao invés, nessa sociedade em expansão vejo uma esperança frustrada. No Brasil, pelo menos para uma parte da juventude intelectualizada, existe uma nova e grandíssima capacidade, que apesar disso é bloqueada. Quando, antes, evidenciamos a diferença das lutas em uma sociedade em crescimento, a questão se torna central do ponto de vista da subjetividade. Pensemos ainda em 1968: na Europa Ocidental, na Tchecoeslováquia, nos Estados Unidos, no México e noutros países, havia uma expansão subjetiva que superava os obstáculos da velha sociedade. É isso que vejo nas capacidades intelectuais, sobretudo metropolitanas, no Brasil: existem novos horizontes bloqueados pela velha sociedade, com seu governo e sua ideologia de modernização.

A respeito dessa nova dimensão subjetiva, de que modo se verificaram, ou que mudaram, os quatro tipos de subjetividade que você e Toni Negri haviam definido em “Isto não é um manifesto”: o homem endividado, o homem midiatizado, o homem securitizado, e o homem representado? Pode-se dizer que, talvez, esses tipos de subjetividade (à parte do midiatizado, o mais ambivalente) se prendiam predominantemente ao lado do assujeitamento, enquanto hoje — seguindo o que você diz — estaríamos diante sobretudo de uma subjetividade em expansão?

Talvez eu seja teimoso, mas acredito que as quatro subjetividades funcionam também nesta sociedade. A questão da dívida, por exemplo, assume formas diferentes, mas penso que também o “homem endividado” — por ser o tipo mais variável  — funciona. A questão da segurança, como disciplina de vigilância, é bastante óbvia. O tema da representação é o mais importante, é talvez a continuação mais forte: não somente em 2011, mas desde Seattle ocorreram experimentações de formas participativas contra a representação. Ou talvez, para dizê-lo de outra forma, é uma experimentação para reinventar o conceito de liderança. É claro que, enquanto slogan, não queremos líderes, já que são lutas contra a representação; contudo, acredito que devamos ao mesmo tempo achar uma maneira de reinventar o conceito de liderança ou, em termos simples, uma liderança da multidão. Desta forma, também o tema da representação me parece importantes nos vários contextos.
O modo pelo que criticaria os quatro tipos de subjetividade seria em sua delimitação excessiva, isto é, eles não bastam. Existem outras subjetividades que pensamos nesses anos, como a do precário ou o explorado, que deveriam ser acrescidas.

A subjetividade do “homem endividado” seria provavelmente pensada em combinação com a questão geracional. No Brasil, por exemplo, os jovens protagonistas das lutas cresceram na era Lula, quer dizer, em uma sociedade até certo ponto pós-neoliberal. De qualquer maneira, foram incluídos socialmente de modo imediato, segundo as promessas de expansão de que falávamos antes. Nesse contexto, e provavelmente o discurso vale também para a Turquia, a dívida não se apresenta tanto na sua forma econômico-financeira quanto, sobretudo, como dívida a respeito daquela promessa de progresso e sociedade em expansão, além de endividamento moral nos conflitos da família. Deste ponto de vista, se é correto, os movimentos constituem também uma revolta contra este tipo de assujeitamento através da dívida.

Parece-me interessante e muda, de maneira importante, o conceito de dívida, que neste ponto deve cobrir coisas diversas: não é somente uma questão monetária, mas ainda uma forma social. Também no nível monetário, a dívida é diferente nos vários países: por exemplo, na África ocidental existe pouca dívida individual, a maior parte das pessoas são donas das próprias terras e casas, inclusive se forem pobres, enquanto a dívida pública obriga a todos segundo vínculos precisos. Se o conceito de dívida funciona como fio condutor entre as diversas lutas, é preciso modulá-lo para cada sociedade de maneira diversa. Modulando-o desse jeito alguém talvez poderia dizer que não é útil como conceito geral, mas não creio que seja assim: experimentarei, contrariamente, e como você faz, a pensar a dívida em modos diferentes e ver exatamente aí na diversidade um fio condutor.

Dissemos muitas vezes que essas lutas são extraordinárias em sua forma destituinte, contudo se desgastam ou se bloqueiam em sua forma constituinte. Retorna um problema relativo ao poder, que evidentemente hoje deve ser repensado. Devemos, no entanto, sair de um olhar cíclico, de exaltação à fase insurgente e de depressão pela subsequente fase de refluxo. Os casos da Tunísia e do Egito, além obviamente da Turquia e Brasil, nos mostram que ambas as abordagens estão erradas: o jogo é ao mesmo tempo dramaticamente duro e, entretanto, completamente aberto. Sobre a base dessas experiências, e fundando-se sobre o comum, como podemos repensar o nexo entre forma destituinte e forma constituinte?

A questão é evidentemente central e as lutas não têm ainda uma resposta. Me parece claro, e todos estão conscientes disso, que agora a principal coisa é desenvolver, criar e inventar um poder constituinte, ou melhor, uma forma de governança correspondente às lutas. Dizer comum e gestão do comum indica uma direção conceitual, mas não afirma ainda nada à altura de uma nova forma. No meio tempo, no entanto, pensar à questão da subjetividade em vez da governança ajuda, porque as lutas são já capazes não somente de destruir dispositivos de produção de subjetividade reativa, mas também de criar novas subjetividades. Esta é para mim a estratégia para não se deprimir: depois de haver reconhecido que as lutas têm um poder destituinte, com insuficiente capacidade constituinte, devemos então deslocar o foco para a questão da produção de subjetividade, e mesmo reconhecer de que maneira uma subjetividade alternativa está já em produção. Isto me faz pensar no que diz Franco Berardi (Bifo), a respeito de 1968 ou 1977: também no 1968 não foi um sucesso ou talvez ainda menos era concebida uma estratégia constituinte, mas se tratava de uma nova perspectiva social e de uma nova subjetividade. Precisamos pensar nessas produções de subjetividade para que, depois da euforia das lutas, não venha a depressão, que acompanha o reconhecimento do fato de não termos um projeto constituinte. Neste caso, talvez devamos realmente mudar de ponto de vista.

Queremos retornar na conclusão à questão do desenvolvimento, por você justamente indicado como central. Talvez devêssemos buscar fazer aqui uma operação similar àquela que você e Toni fizeram em “Commonwealth” (2009, Harvard Press), criticando a dialética entre modernidade e antimodernidade, para ressaltar linhas genealógicas e de potência para uma altermodernidade. Nesse caso, se trata de levar radicalmente à crítica tanto a tradição desenvolvimentista do socialismo e da esquerda, quanto o seu oposto especular, isto é, um antidesenvolvimentismo que assumiu, por exemplo, o aspecto do decrescimento. Hoje o problema é pensar e praticar formas de organização e desenvolvimento, ou alterdesenvolvimento, fundadas sobre o comum e sobre a produção de subjetividade no comum. Podemos dizer que esta é uma das tarefas centrais que este “ciclo” global de lutas na crise nos coloca defronte?

Estou de acordo e é um desafio difícil. Efetivamente, a questão do desenvolvimento é paralela ao jogo entre modernidade e antimodernidade. Não somos poucos a estar insatisfeitos, seja com o modernismo desenvolvimentista e extrativista, seja com as propostas do decrescimento.

O problema é como sair da dialética do desenvolvimento…

Sim, exato. Creio que na América Latina, pelo menos em minha experiência, se coloca essa necessidade e igualmente a dificuldade de satisfazê-la. Não estou completamente convencido que o governo Lula tenha sido um governo pós-neoliberal: acredito que o pós-neoliberalismo e o pós-extrativismo estejam ainda por vir.  Nem mesmo para os governos considerados progressistas na América Latina tem sido fácil abandonar o neoliberalismo. Não digo certamente que Lula ou Chávez fossem neoliberais ocultos, não se trata realmente disto: o meu ponto está em assumir que a tarefa de inventar outro modelo, que seja alterdesenvolvimentista, é difícil. E o tema do extrativismo é nisso central.

Podemos dizer que um governo como o de Lula — e em formas diversas que possam valer também para outros governos latino-americanos — era ambíguo, tendo reunido elementos de continuação do neoliberalismo e uma abertura a respeito das instâncias constituintes autonomamente exprimidas pelos movimentos. Provavelmente essa ambiguidade mesma foi, simultaneamente, os seus limites e a sua força. As lutas no Brasil parecem baseadas sobre essa ambiguidade, revirada na potência expansiva da nova composição de classe.

Me parece um bom ponto de vista para captar a força e a origem dessas lutas na ambiguidade. Então, historicamente devemos pensar tanto Lula quanto Chávez como momentos de uma transição irresolvida. As lutas por isso se colocam no interior dessa transição irresolvida.



Michael Hardt é autor, com Antonio Negri, de Império, Multidão e Commonwealth (ainda sem tradução)
Tradutor: Bruno Cava

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Fonte: Universidade Nômade

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