PICICA: "À
máscara excludente do “meliante” e à máscara redutora do
“vandalismo”, a mídia corporativa e o Estado acrescentam agora a
máscara reificante da cara sem máscaras, da identidade
pré-determinada. Talvez esta última seja a mais perversa: tanto por
conta da compreensão comum de que este é, “na verdade”, o
“nosso rosto”, e que é assim que quem quer se manifestar dá a
cara a tapa de fato – quanto pelo fato de que a proibição foi
aprovada sob a máscara da democracia, por representantes eleitos por
todos.
Nesse
sentido, um dos trabalhos agora (e sempre) é justamente desmascarar
os interesses que se apresentam como “de todos”, mostrando-lhe a
cara (ou a máscara) que, no jogo político, “na verdade” cabe a
cada vez a cada um que nele toma parte. Para isso, como temos visto
(mais eloquentemente) nos últimos tempos, nada melhor que a força das
ruas: foi por conta deste força que o prefeito e o governador foram
levados a
reconhecer, respectivamente, a face nazista de sua política de remoções e a ausência de diálogo que caracteriza seu governo; foi
por conta desta força que a mídia corporativista foi constrangida a
mostrar-se mais claramente a sua cara, ao trocar seguidamente de
máscaras no modo como (en)cobria as manifestações e ao ser levada
a dar a cara a tapa, em uma confissão histórica, mas certamente ambígua e contestável, de seu apoio à ditadura militar no Brasil."
A máscara, a cara, o rosto
A
máscara, a cara, o rosto
Há
um tempo atrás publiquei o seguinte na minha página do facebook:
“Se
levarmos a sério, ao pé da letra mesmo, o nome (sic) 'Anonymous' e
se considerarmos os últimos e esquizofrênicos episódios em torno
dessa coisa (um anônimo que, querendo se manter anônimo, diz que
outro anônimo não é ele), me parece que fica clara uma coisa: a
rigor, não há como fazer política sem ter uma cara (o que, quiçá,
não precisa necessariamente significar a rigidez de uma identidade
substancial, mas um incessante 'ou isso ou aquilo'). Nesse sentido,
ou bem se assume essa cara autonomamente, ou bem ela vai acabar
aparecendo em meio à luta política, quando se for compelido a tomar
partido - e, se não vejo mal, na política sempre é preciso
fazê-lo. Ou é isso, ou a máscara fica mesmo vazia, e nela se pode
encaixar absolutamente qualquer coisa: e qualquer poder contestatório
que ela poderia ter se desmancha no ar. Se é assim, a rigor em
política jamais existe 'Anonymous': no máximo 'Pseudonymous' ou
'Heteronymous'.”
O
Brasil estava em meio às “jornadas de junho” e um vídeo intitulado “As Cinco Causas” havia sido divulgado em nome (!) do
Anonymous. A pretensão do vídeo era responder às críticas de que
as manifestações não tinham uma pauta clara, propondo cinco pontos
“sem
polêmicas de cunho
religioso ou ideológico,
sem bandeiras partidárias ou subjetividade” (sic!), pontos que
seriam
“causas de cunho moral que são unanimemente aceitas” (sic!!). O
objetivo declarado da proposta era, portanto, pautar as
manifestações, dar-lhe uma identidade – se quisermos: uma cara. A
alegação era que, sem isso, o movimento poderia perder força. Pelo
teor coxinha (ou, como prefiro, bunda-mole [1]) da apresentação do
material e das causas propostas, ou ao menos de parte destas, o vídeo
teve ampla divulgação.
Críticas
sobretudo à esquerda não tardaram a aparecer, assim como não
tardou a aparecer uma resposta dos que seriam os “verdadeiros”
Anonymous
(ou simplesmente outros Anonymous), dizendo que aquele vídeo “não
os representava”. Deixando de lado o fato de o vídeo ter vindo ao
encontro da tentativa da grande mídia de pautar as manifestações,
depois do fracasso da estratégia (jamais abandonada, como mostram os
últimos acontecimentos) de simplesmente criminalizá-las, e deixando
de lado a reivindicação legítima de pensar o que as manifestações
querem (sobre o que também dei um pitaco bem simples na época),
interessava-me no comentário que abre esse texto pensar a seguinte
questão: em que medida se pode fazer política permanecendo sem
tomar um partido, usando uma máscara para não dar a cara a tapa.
A
minha posição permanece a mesma: não é possível. Isso porque
fazer política implica em pensar um direcionamento, um sentido que
se quer dar ao todo da comunidade em que se faz política e, com
isso, lidar com os outros sentidos que múltiplas partes da
comunidade procuram dar a esta e as complexas relações de poder (de violência e de diálogo) ligadas a essa lida. E por mais que se
declare uma coisa para "mascarar" que se quer outra, o modo como se age
nos âmbitos públicos de decisão da comunidade (ao menos se, ou
sobretudo se, esta procurar se constituir de fato como democrática)
ou, ao menos, o caminho mesmo que a comunidade mesma vai tomando vão
mostrar que compreensão para o todo este que assim age quer fazer
vingar – sobretudo quando há uma intensa e constante participação
de todos (ou da maior parte) (d)aqueles que compõem a comunidade em
questão. Ou é isso ou, como me parece ser muitas vezes o caso de
máscaras ou de estratégias/estéticas como a do Anonymous,
esta serve para absolutamente qualquer um tomar parte da política
como quiser; nesses casos, ela vira, pois, uma máscara vazia de
sentido político, na medida em que, por si, não aponta nenhum
sentido para o todo da comunidade, sendo apenas a expressão insossa
de um ninguém sem desejo (próprio).
Pois
bem, o corolário dessas considerações parece ser: em política,
não há máscaras. Há caras que, de um jeito ou de outro, se põe à
nu no palco das decisões públicas. Mas há máscaras e máscaras:
aqui é preciso fazer uma distinção, que talvez possa ajudar a
pensar o mais recente capítulo da tentativa de criminalização de
manifestações e manifestantes: a proibição do uso de máscaras no estado do Rio de Janeiro.
Ora,
a interpretação feita até aqui parece supor, em parte, que
“máscara” é algo que simplesmente serve para esconder uma
“cara” por trás. Ela parece presa a uma distinção muito comum
em qualquer metafísica (de botequim) entre uma aparência ilusória,
falsa e/ou enganadora (a máscara) e um ser verdadeiro que por vezes
se esconde nessa aparência (a cara). Dizemos que “parece supor em
parte”, porque o ter uma cara, no caso do Anonymous, não implica
em retirar a máscara, mas sim em tomar partido, em dar uma cara à
máscara – fazer da máscara (um) alguém.
É
aqui que se pode estabelecer um corte no modelo que simplesmente opõe
ser e aparência: máscara e cara seriam, em verdade, dois nomes para
o mesmo. Os gregos, por sinal, já compreendiam máscara e cara, e
também, sintomaticamente, personagem e pessoa sob uma mesma palavra:
prósopon. Mais, ainda: o significado de
personagem, isto é, do apresentar-se publicamente diante do outro
nos acontecimentos da pólis (autodenominada democrática) que
eram os espetáculos teatrais é primário em relação ao
significado de “pessoa” [2].
Foto de Andrew Matusik, Magritte Fashion, para o editorial "Sir Realist". (http://trendland.com/magritte-fashion-editorial/)
Para
nós,
isso indica o seguinte: é através das várias máscaras,
ou caras, assumidas de maneira mais ou menos autônoma na vida comum
que vai se delimitando, em relação ao todo das máscaras e caras
possíveis à vida, a parte que me (ou nos cabe). Esse singular tomar
parte no todo da vida, que acontece de um jeito ou de outro a cada um de
nós, poderia, com justiça, ser chamado de rosto - na medida em que "rosto" pode ser o "símbolo" (palavra que em grego tem justo o sentido de
“encontrar”, “vir para junto”) da história de uma vida. Ora,
desde que entramos na vida, somos levados a lidar com as caras ou
máscaras que nos chegam dos outros, em meios as quais nos decidimos,
de modo mais ou menos autônomo e explícito: dentre muitas outras
coisas, ganhamos um nome próprio, um signo de filiação (ou falta
de); nos engajamos nessa ou naquela profissão dentre as que o mundo
oferece; tomamos partido por essa ou aquela posição política;
recebemos do Estado, uma carteira de identidade e um CPF, com números
e uma foto de um “rosto” que pretensamente identificariam quem
realmente somos.
Mas
estas últimas máscaras, as que nos vem do Estado, do ponto de vista
de uma narrativa existencial, estão dentre as que mais podem gerar
ilusões e, antes, injustiças: pois este “rosto” e estes números
abstratos que constam nos nossos documentos de identificação não
são mais que um momento abstrato, e reificado, de uma história
singular – eis uma injustiça; e muitas vezes contribui para fazer
com que aquela identidade reificada se faça passar por esta história
– eis uma ilusão. Sinal disso é o desaparecimento rostos por anos
em meio aos processos judiciários abstratos e impessoais; sinal mais
claro são os rostos que perdem a vida por serem subsumidos pelas
forças do Estado à máscara abstrata de “meliantes”; sinal mais
claro ainda são os rostos que permanecem anônimos, às margens dos
serviços e direitos que o Estado deveria garantir, os quais este só
se interessa em identificar quando causam algum “incômodo” à
ordem estabelecida – e os exemplos são inúmeros: ou porque suas
moradias atrapalham a expansão do poder econômico, ou porque sua
presença atrapalha o mercado do turismo, ou porque, enfim, decidiu
reagir e reivindicar que a política seja o lugar para garantir e
expandir direitos, promover a justiça social e, assim, garantir que
cada um possa realizar-se em sua singularidade. O anonimato e suas
máscaras convêm ao Estado e aos interesses econômicos que o governam
apenas quando servem aos seus objetivos de exclusão, exploração e
domínio, e não quando são usados como proteção e arma por aqueles que
lutam pelo direito de ter um rosto.
Ora,
sobre
esse pano de fundo, a decisão da Alerj de proibir máscaras
nas manifestações, ainda mais se considerada desde o contexto mais
geral da progressiva criminalização dos movimentos sociais e das
manifestações por parte do Estado e da mídia corporativa, opera
exatamente a redução que tentei esboçar acima: trata-se de reduzir
as possibilidades de manifestação (política) da vida (em) comum; de
reificar e, com isso, procurar dominar as muitas caras, máscaras e, com
isso, os muitos rostos que podem ter lugar
na vida, subsumindo essa multiplicidade a uma identidade pré-determinada
por ele, Estado. Isso é um
golpe não só na liberdade “de expressão”, mas, ao menos
“simbolicamente”, à liberdade de constituição diversa e
singular da vida, sobretudo na medida em que esta se dá como um
tomar parte e partido nos rumos da vida (em) comum – na medida em que se
dá como política,
pois.
À
máscara excludente do “meliante” e à máscara redutora do
“vandalismo”, a mídia corporativa e o Estado acrescentam agora a
máscara reificante da cara sem máscaras, da identidade
pré-determinada. Talvez esta última seja a mais perversa: tanto por
conta da compreensão comum de que este é, “na verdade”, o
“nosso rosto”, e que é assim que quem quer se manifestar dá a
cara a tapa de fato – quanto pelo fato de que a proibição foi
aprovada sob a máscara da democracia, por representantes eleitos por
todos.
Nesse
sentido, um dos trabalhos agora (e sempre) é justamente desmascarar
os interesses que se apresentam como “de todos”, mostrando-lhe a
cara (ou a máscara) que, no jogo político, “na verdade” cabe a
cada vez a cada um que nele toma parte. Para isso, como temos visto
(mais eloquentemente) nos últimos tempos, nada melhor que a força das
ruas: foi por conta deste força que o prefeito e o governador foram
levados a
reconhecer, respectivamente, a face nazista de sua política de remoções e a ausência de diálogo que caracteriza seu governo; foi
por conta desta força que a mídia corporativista foi constrangida a
mostrar-se mais claramente a sua cara, ao trocar seguidamente de
máscaras no modo como (en)cobria as manifestações e ao ser levada
a dar a cara a tapa, em uma confissão histórica, mas certamente ambígua e contestável, de seu apoio à ditadura militar no Brasil.
É
pela força das ruas, enfim, que me parece que, além dessa tarefa de
fazer vir ao palco em sua máscara “autêntica” os atores do
teatro político do presente no Brasil, pode-se trabalhar pela ideia
de criar a vida (em) comum como um cenário no qual, por uma
democracia radicalmente horizontal, ninguém seja constrangido pelo
poder a assumir máscaras que desfigurem o seu rosto próprio e no
qual cada um tenha espaço para viver com as máscaras e caras em que
possa, livremente, criar e recriar para si um rosto singular.
***
[1]
As mobilizações populares dos últimos meses, na medida em que
populares e com pautas progressistas, merecem todo o apoio. Mas, como
se não bastassem as pautas (e atitudes) de direita, a violência do
Estado e o “vandalismo” da mídia, todo esse processo teve ainda
um efeito negativo: o rebaixamento do nobre salgado que atende pelo
nome de "coxinha" à designação de certo tipo de
manifestante indigesto ou, no mínimo, insípido (mas de modo algum
inofensivo). A esse respeito, eis aqui minha reivindicação:
substituamos essa designação por alguma mais ao sabor das atitudes
dessas pessoas. "Bunda-mole" talvez seja uma opção, com a
vantagem que já teríamos até um substantivo abstrato para designar
o "movimento" ou "doutrina" representado(a) por
tais pessoas: o "bundamolismo".
[2]
Ver: CHANTRAINE, Pierre.
Dcitionnaire
Étymologique de la Langue Grecque.
Histoire des Mots.
Paris: Éditions Klincksieck, 1900. Verbete “prósopon”
(p. 959) Enquanto escrevia esse texto, me deparei, na comunidade da
Universidade Nômade no Facebook, com uma postagem bastante
interessante de Bruno Cava Rodrigues, que, por intimamente relacionado
com o tema do meu texto (que, em certo sentido, é um possível
desenvolvimento do que ele diz na postagem), faço questão de
reproduzir na íntegra aqui: “Em grego antigo, prósopon é
simultaneamente "máscara" (usada nos teatros públicos) e
"rosto". Mas também pode ser traduzido simplesmente por
"pessoa", no sentido de existência social na cidade.
"Prósopon", por sinal, foi traduzida para o latim como
"persona". A prósopon exprime o estado emocional em uma
determinada situação. Não era tanto uma expressão da alma do
indivíduo, mas um signo de sua existência implicada num ato
coletivo, na figura do coro. Na teologia cristã dos primeiros
séculos, Jesus se torna a unidade "prosópica" das
naturezas divina e humana. Isto é, Deus e Homem são um só enquanto
face: a imagem e semelhança de que fala a bíblia. Disto, seguem
sucessivas manobras cristológicas cujo pano de fundo é a
interiorização da máscara, individualizando a consciência que
pensa e sente (e se culpa, e tem de confessar e expiar). A obra de
Agostinho testemunha a respeito. A face humana passa a ser
considerada manifestação de uma "verdade interior", do
genuíno e autêntico estado de espírito de cada um. Essa
hipostasiação da prósopon que só existia enquanto socialidade
atinge o máximo no romance burguês do século 19, centrado na
inadequação angustiada do indivíduo diante da sociedade. Mas
também dessa manobra, já na idade média, disparam os inquéritos
policiais, dedicados a sondar o interior de cada um, atrás de algo
até então inédito, um novo conceito de verdade (Foucault). É o
começo da história de um longo cinismo, que o estado vai aproveitar
para fixar a máscara de cada um, segundo um poder catalogador.
Registrada nos documentos oficiais, a substancialização da prósopon
estabelece ao mesmo tempo a identidade individual (você e seu rosto
são um só) e coletiva (você tem RG, é cidadão). Não admira a
obsessão em evitar o teatro das ruas, em criminalizar o uso livre
das máscaras. Nessa tecnologia de poder, a verdade não pode
libertar-se dos aparelhos de estado, de sua dor característica, e
seu inquérito infinito. Tentam impedir o retorno de uma realidade já
ancestral: nossos rostos, afinal, não exprimem nada de "fundo".
São máscaras, pele social, superfície de relações, e não têm
nada mais rico e desejante (e perigoso) do que isso.”
Fonte: Blog do Antífon
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