setembro 14, 2013

"A máscara, a cara, o rosto" (Blog do Antífon)

PICICA: "À máscara excludente do “meliante” e à máscara redutora do “vandalismo”, a mídia corporativa e o Estado acrescentam agora a máscara reificante da cara sem máscaras, da identidade pré-determinada. Talvez esta última seja a mais perversa: tanto por conta da compreensão comum de que este é, “na verdade”, o “nosso rosto”, e que é assim que quem quer se manifestar dá a cara a tapa de fato – quanto pelo fato de que a proibição foi aprovada sob a máscara da democracia, por representantes eleitos por todos.

Nesse sentido, um dos trabalhos agora (e sempre) é justamente desmascarar os interesses que se apresentam como “de todos”, mostrando-lhe a cara (ou a máscara) que, no jogo político, “na verdade” cabe a cada vez a cada um que nele toma parte. Para isso, como temos visto (mais eloquentemente) nos últimos tempos, nada melhor que a força das ruas: foi por conta deste força que o prefeito e o governador foram levados a reconhecer, respectivamente, a face nazista de sua política de remoções e a ausência de diálogo que caracteriza seu governo; foi por conta desta força que a mídia corporativista foi constrangida a mostrar-se mais claramente a sua cara, ao trocar seguidamente de máscaras no modo como (en)cobria as manifestações e ao ser levada a dar a cara a tapa, em uma confissão histórica, mas certamente ambígua e contestável, de seu apoio à ditadura militar no Brasil."

 

A máscara, a cara, o rosto


A máscara, a cara, o rosto


Há um tempo atrás publiquei o seguinte na minha página do facebook:

Se levarmos a sério, ao pé da letra mesmo, o nome (sic) 'Anonymous' e se considerarmos os últimos e esquizofrênicos episódios em torno dessa coisa (um anônimo que, querendo se manter anônimo, diz que outro anônimo não é ele), me parece que fica clara uma coisa: a rigor, não há como fazer política sem ter uma cara (o que, quiçá, não precisa necessariamente significar a rigidez de uma identidade substancial, mas um incessante 'ou isso ou aquilo'). Nesse sentido, ou bem se assume essa cara autonomamente, ou bem ela vai acabar aparecendo em meio à luta política, quando se for compelido a tomar partido - e, se não vejo mal, na política sempre é preciso fazê-lo. Ou é isso, ou a máscara fica mesmo vazia, e nela se pode encaixar absolutamente qualquer coisa: e qualquer poder contestatório que ela poderia ter se desmancha no ar. Se é assim, a rigor em política jamais existe 'Anonymous': no máximo 'Pseudonymous' ou 'Heteronymous'.”

O Brasil estava em meio às “jornadas de junho” e um vídeo intitulado “As Cinco Causas” havia sido divulgado em nome (!) do Anonymous. A pretensão do vídeo era responder às críticas de que as manifestações não tinham uma pauta clara, propondo cinco pontos “sem polêmicas de cunho religioso ou ideológico, sem bandeiras partidárias ou subjetividade” (sic!), pontos que seriam “causas de cunho moral que são unanimemente aceitas” (sic!!). O objetivo declarado da proposta era, portanto, pautar as manifestações, dar-lhe uma identidade – se quisermos: uma cara. A alegação era que, sem isso, o movimento poderia perder força. Pelo teor coxinha (ou, como prefiro, bunda-mole [1]) da apresentação do material e das causas propostas, ou ao menos de parte destas, o vídeo teve ampla divulgação.

Críticas sobretudo à esquerda não tardaram a aparecer, assim como não tardou a aparecer uma resposta dos que seriam os “verdadeiros” Anonymous (ou simplesmente outros Anonymous), dizendo que aquele vídeo “não os representava”. Deixando de lado o fato de o vídeo ter vindo ao encontro da tentativa da grande mídia de pautar as manifestações, depois do fracasso da estratégia (jamais abandonada, como mostram os últimos acontecimentos) de simplesmente criminalizá-las, e deixando de lado a reivindicação legítima de pensar o que as manifestações querem (sobre o que também dei um pitaco bem simples na época), interessava-me no comentário que abre esse texto pensar a seguinte questão: em que medida se pode fazer política permanecendo sem tomar um partido, usando uma máscara para não dar a cara a tapa.

A minha posição permanece a mesma: não é possível. Isso porque fazer política implica em pensar um direcionamento, um sentido que se quer dar ao todo da comunidade em que se faz política e, com isso, lidar com os outros sentidos que múltiplas partes da comunidade procuram dar a esta e as complexas relações de poder (de violência e de diálogo) ligadas a essa lida. E por mais que se declare uma coisa para "mascarar" que se quer outra, o modo como se age nos âmbitos públicos de decisão da comunidade (ao menos se, ou sobretudo se, esta procurar se constituir de fato como democrática) ou, ao menos, o caminho mesmo que a comunidade mesma vai tomando vão mostrar que compreensão para o todo este que assim age quer fazer vingar – sobretudo quando há uma intensa e constante participação de todos (ou da maior parte) (d)aqueles que compõem a comunidade em questão. Ou é isso ou, como me parece ser muitas vezes o caso de máscaras ou de estratégias/estéticas como a do Anonymous, esta serve para absolutamente qualquer um tomar parte da política como quiser; nesses casos, ela vira, pois, uma máscara vazia de sentido político, na medida em que, por si, não aponta nenhum sentido para o todo da comunidade, sendo apenas a expressão insossa de um ninguém sem desejo (próprio).

Pois bem, o corolário dessas considerações parece ser: em política, não há máscaras. Há caras que, de um jeito ou de outro, se põe à nu no palco das decisões públicas. Mas há máscaras e máscaras: aqui é preciso fazer uma distinção, que talvez possa ajudar a pensar o mais recente capítulo da tentativa de criminalização de manifestações e manifestantes: a proibição do uso de máscaras no estado do Rio de Janeiro.

Ora, a interpretação feita até aqui parece supor, em parte, que “máscara” é algo que simplesmente serve para esconder uma “cara” por trás. Ela parece presa a uma distinção muito comum em qualquer metafísica (de botequim) entre uma aparência ilusória, falsa e/ou enganadora (a máscara) e um ser verdadeiro que por vezes se esconde nessa aparência (a cara). Dizemos que “parece supor em parte”, porque o ter uma cara, no caso do Anonymous, não implica em retirar a máscara, mas sim em tomar partido, em dar uma cara à máscara – fazer da máscara (um) alguém.

É aqui que se pode estabelecer um corte no modelo que simplesmente opõe ser e aparência: máscara e cara seriam, em verdade, dois nomes para o mesmo. Os gregos, por sinal, já compreendiam máscara e cara, e também, sintomaticamente, personagem e pessoa sob uma mesma palavra: prósopon. Mais, ainda: o significado de personagem, isto é, do apresentar-se publicamente diante do outro nos acontecimentos da pólis (autodenominada democrática) que eram os espetáculos teatrais é primário em relação ao significado de “pessoa” [2].


Foto de Andrew Matusik, Magritte Fashion, para o editorial "Sir Realist". (http://trendland.com/magritte-fashion-editorial/)

Para nós, isso indica o seguinte: é através das várias máscaras, ou caras, assumidas de maneira mais ou menos autônoma na vida comum que vai se delimitando, em relação ao todo das máscaras e caras possíveis à vida, a parte que me (ou nos cabe). Esse singular tomar parte no todo da vida, que acontece de um jeito ou de outro a cada um de nós, poderia, com justiça, ser chamado de rosto - na medida em que "rosto" pode ser o "símbolo" (palavra que em grego tem justo o sentido de “encontrar”, “vir para junto”) da história de uma vida. Ora, desde que entramos na vida, somos levados a lidar com as caras ou máscaras que nos chegam dos outros, em meios as quais nos decidimos, de modo mais ou menos autônomo e explícito: dentre muitas outras coisas, ganhamos um nome próprio, um signo de filiação (ou falta de); nos engajamos nessa ou naquela profissão dentre as que o mundo oferece; tomamos partido por essa ou aquela posição política; recebemos do Estado, uma carteira de identidade e um CPF, com números e uma foto de um “rosto” que pretensamente identificariam quem realmente somos.

Mas estas últimas máscaras, as que nos vem do Estado, do ponto de vista de uma narrativa existencial, estão dentre as que mais podem gerar ilusões e, antes, injustiças: pois este “rosto” e estes números abstratos que constam nos nossos documentos de identificação não são mais que um momento abstrato, e reificado, de uma história singular – eis uma injustiça; e muitas vezes contribui para fazer com que aquela identidade reificada se faça passar por esta história – eis uma ilusão. Sinal disso é o desaparecimento rostos por anos em meio aos processos judiciários abstratos e impessoais; sinal mais claro são os rostos que perdem a vida por serem subsumidos pelas forças do Estado à máscara abstrata de “meliantes”; sinal mais claro ainda são os rostos que permanecem anônimos, às margens dos serviços e direitos que o Estado deveria garantir, os quais este só se interessa em identificar quando causam algum “incômodo” à ordem estabelecida – e os exemplos são inúmeros: ou porque suas moradias atrapalham a expansão do poder econômico, ou porque sua presença atrapalha o mercado do turismo, ou porque, enfim, decidiu reagir e reivindicar que a política seja o lugar para garantir e expandir direitos, promover a justiça social e, assim, garantir que cada um possa realizar-se em sua singularidade. O anonimato e suas máscaras convêm ao Estado e aos interesses econômicos que o governam apenas quando servem aos seus objetivos de exclusão, exploração e domínio, e não quando são usados como proteção e arma por aqueles que lutam pelo direito de ter um rosto.

Ora, sobre esse pano de fundo, a decisão da Alerj de proibir máscaras nas manifestações, ainda mais se considerada desde o contexto mais geral da progressiva criminalização dos movimentos sociais e das manifestações por parte do Estado e da mídia corporativa, opera exatamente a redução que tentei esboçar acima: trata-se de reduzir as possibilidades de manifestação (política) da vida (em) comum; de reificar e, com isso, procurar dominar as muitas caras, máscaras e, com isso, os muitos rostos que podem ter lugar na vida, subsumindo essa multiplicidade a uma identidade pré-determinada por ele, Estado. Isso é um golpe não só na liberdade “de expressão”, mas, ao menos “simbolicamente”, à liberdade de constituição diversa e singular da vida, sobretudo na medida em que esta se dá como um tomar parte e partido nos rumos da vida (em) comum – na medida em que se dá como política, pois.

À máscara excludente do “meliante” e à máscara redutora do “vandalismo”, a mídia corporativa e o Estado acrescentam agora a máscara reificante da cara sem máscaras, da identidade pré-determinada. Talvez esta última seja a mais perversa: tanto por conta da compreensão comum de que este é, “na verdade”, o “nosso rosto”, e que é assim que quem quer se manifestar dá a cara a tapa de fato – quanto pelo fato de que a proibição foi aprovada sob a máscara da democracia, por representantes eleitos por todos.

Nesse sentido, um dos trabalhos agora (e sempre) é justamente desmascarar os interesses que se apresentam como “de todos”, mostrando-lhe a cara (ou a máscara) que, no jogo político, “na verdade” cabe a cada vez a cada um que nele toma parte. Para isso, como temos visto (mais eloquentemente) nos últimos tempos, nada melhor que a força das ruas: foi por conta deste força que o prefeito e o governador foram levados a reconhecer, respectivamente, a face nazista de sua política de remoções e a ausência de diálogo que caracteriza seu governo; foi por conta desta força que a mídia corporativista foi constrangida a mostrar-se mais claramente a sua cara, ao trocar seguidamente de máscaras no modo como (en)cobria as manifestações e ao ser levada a dar a cara a tapa, em uma confissão histórica, mas certamente ambígua e contestável, de seu apoio à ditadura militar no Brasil.

É pela força das ruas, enfim, que me parece que, além dessa tarefa de fazer vir ao palco em sua máscara “autêntica” os atores do teatro político do presente no Brasil, pode-se trabalhar pela ideia de criar a vida (em) comum como um cenário no qual, por uma democracia radicalmente horizontal, ninguém seja constrangido pelo poder a assumir máscaras que desfigurem o seu rosto próprio e no qual cada um tenha espaço para viver com as máscaras e caras em que possa, livremente, criar e recriar para si um rosto singular.


***


[1] As mobilizações populares dos últimos meses, na medida em que populares e com pautas progressistas, merecem todo o apoio. Mas, como se não bastassem as pautas (e atitudes) de direita, a violência do Estado e o “vandalismo” da mídia, todo esse processo teve ainda um efeito negativo: o rebaixamento do nobre salgado que atende pelo nome de "coxinha" à designação de certo tipo de manifestante indigesto ou, no mínimo, insípido (mas de modo algum inofensivo). A esse respeito, eis aqui minha reivindicação: substituamos essa designação por alguma mais ao sabor das atitudes dessas pessoas. "Bunda-mole" talvez seja uma opção, com a vantagem que já teríamos até um substantivo abstrato para designar o "movimento" ou "doutrina" representado(a) por tais pessoas: o "bundamolismo".

[2] Ver: CHANTRAINE, Pierre. Dcitionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Histoire des Mots. Paris: Éditions Klincksieck, 1900. Verbete “prósopon” (p. 959) Enquanto escrevia esse texto, me deparei, na comunidade da Universidade Nômade no Facebook, com uma postagem bastante interessante de Bruno Cava Rodrigues, que, por intimamente relacionado com o tema do meu texto (que, em certo sentido, é um possível desenvolvimento do que ele diz na postagem), faço questão de reproduzir na íntegra aqui: “Em grego antigo, prósopon é simultaneamente "máscara" (usada nos teatros públicos) e "rosto". Mas também pode ser traduzido simplesmente por "pessoa", no sentido de existência social na cidade. "Prósopon", por sinal, foi traduzida para o latim como "persona". A prósopon exprime o estado emocional em uma determinada situação. Não era tanto uma expressão da alma do indivíduo, mas um signo de sua existência implicada num ato coletivo, na figura do coro. Na teologia cristã dos primeiros séculos, Jesus se torna a unidade "prosópica" das naturezas divina e humana. Isto é, Deus e Homem são um só enquanto face: a imagem e semelhança de que fala a bíblia. Disto, seguem sucessivas manobras cristológicas cujo pano de fundo é a interiorização da máscara, individualizando a consciência que pensa e sente (e se culpa, e tem de confessar e expiar). A obra de Agostinho testemunha a respeito. A face humana passa a ser considerada manifestação de uma "verdade interior", do genuíno e autêntico estado de espírito de cada um. Essa hipostasiação da prósopon que só existia enquanto socialidade atinge o máximo no romance burguês do século 19, centrado na inadequação angustiada do indivíduo diante da sociedade. Mas também dessa manobra, já na idade média, disparam os inquéritos policiais, dedicados a sondar o interior de cada um, atrás de algo até então inédito, um novo conceito de verdade (Foucault). É o começo da história de um longo cinismo, que o estado vai aproveitar para fixar a máscara de cada um, segundo um poder catalogador. Registrada nos documentos oficiais, a substancialização da prósopon estabelece ao mesmo tempo a identidade individual (você e seu rosto são um só) e coletiva (você tem RG, é cidadão). Não admira a obsessão em evitar o teatro das ruas, em criminalizar o uso livre das máscaras. Nessa tecnologia de poder, a verdade não pode libertar-se dos aparelhos de estado, de sua dor característica, e seu inquérito infinito. Tentam impedir o retorno de uma realidade já ancestral: nossos rostos, afinal, não exprimem nada de "fundo". São máscaras, pele social, superfície de relações, e não têm nada mais rico e desejante (e perigoso) do que isso.”

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