setembro 18, 2013

nota: Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni (arte_documento)

PICICA: "A devastadora inércia burguesa conduz ao deserto e ao abismo, e enquanto isso, o cinema e todas as artes seguem traduzindo as nossas pequenas insurreições." 


nota: Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni

A devastadora inércia burguesa conduz ao deserto e ao abismo, e enquanto isso, o cinema e todas as artes seguem traduzindo as nossas pequenas insurreições.

 

Zabriskie Point (1970) não é considerado o melhor trabalho do cineasta italiano Michelangelo Antonioni. O filme é o segundo de um contrato fechado por Antonioni para realizar três filmes em inglês, tendo feito Blow Up em1966 e Profissão: Repórter em 1975. À época de seu lançamento, Zabriskie Point foi um fracasso de crítica e público: o filme aborda a contracultura dos anos 1960 e critica o capitalismo de forma um tanto forte – nos EUA do início dos anos 1970, tais temas se mostravam saturados ou incômodos demais, sobretudo quando emergiam sob o olhar de um forasteiro. Entretanto, o filme tem sido reavaliado depois de décadas, alcançando um status diferenciado quando recolocado fora do seu contexto de lançamento, releitura que pode ser sintetizada pela fala de David Fricke, editor da revista Rolling Stone: “Zabriskie Point foi um dos desastres mais extraordinários da história do cinema moderno”.

 O nome do filme, Zabriskie Point, refere-se a uma região do Parque Nacional do Vale das Mortes, no Oeste dos Estados Unidos e de paisagem desértica, caracterizada por seu terreno arenoso de intensa erosão e sedimentação – o cenário adequado à aventura e ao drama dos dois jovens protagonistas que se encontram em meio a aridez do lugar. Mark e Daria, atores amadores que emprestam seus nomes aos personagens, lidam – cada um a seu modo – com as perdas de todos os horizontes num contexto de transformação social que – depois do grito na rua dos anos 1960 – busca trazer “tudo de volta ao lar”, com os jovens revolucionários universitários buscando novos meios de atuar, de se locomover, ao mesmo tempo em que decidiam para onde queriam ir. Mark queria ação, e não palavrório. Daria queria sentir-se individualmente livre, e não militar por causa alguma. Ambos revelam um perfil expressivista, que na aridez do deserto (literal, mas também social e cultural), se lançaram bela e simplesmente no escapismo mútuo.



As cenas no deserto invocam alguma atmosfera de desolação lúdica, mas também de afastamento do frenesi urbano, deserto onde duas solidões fazem amor sem se conhecerem, sem interações profundas e trocas não comunicadas, sem entenderem nada uma da outra – mas sintonizadas por uma rebeldia íntima, que via a sociedade toda ocultamente aliada contra suas consciências (a sociedade do conformismo dos costumes e do autoritarismo estatal, policial e burocrático).

Karl arrisca a sua existência até a última fronteira do bom senso, cruza sinais vermelhos, rouba um avião… e voa. Daria é dada mais ao delírio onírico e à catarse do que ao risco inadvertido. A trilha sonora do filme, aliás, diz muito: é composta por canções – algumas feitas especialmente para o filme – de Grateful Dead, The Kaleidoscope, Jerry Garcia, Rolling Stones e Pink Floyd, entre outros. A cena final, que traz a música “Careful With that Axe, Eugene”, do Pink Floyd, mostra – através do olhar de Daria – a explosão da mansão de um empresário capitalista especulador, chefe da personagem, que lança pelos ares, numa das cenas mais belas do filme, livros, roupas, eletrodomésticos e todo tipo de produtos emblemáticos de uma sociedade de consumo massificada e fetichizada.

O filme pode não ser uma obra-prima, como muitos, talvez, acusem. Mas sinto que Zabriskie Point provoca – naqueles que quiserem atualizar a sua metáfora – um certo impacto familiar, mas sempre um impacto necessário, em todos que percebem na vida cotidiana a sua atmosfera de estupro, como diria Artaud, de loucura crônica e anomalia psíquica sempre transferida para espíritos inconformados como forma de anulá-los e até de matá-los, tal como mataram Karl. A devastadora inércia burguesa conduz ao deserto e ao abismo, e enquanto isso, o cinema e todas as artes seguem traduzindo as nossas pequenas insurreições.

Fonte: arte_documento

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