setembro 23, 2013

"“Mensalão”: o erro grosseiro do STF", por Raimundo Pereira e Lia Imanishi

PICICA: "E por que a condenação de tipo medieval? Porque para muitos, à direita, o petismo é, e sempre foi, a encarnação do mal e para outros, à esquerda, desiludidos, o petismo, que seria a salvação do Brasil, passou a ser, sob o comando de José Dirceu, nosso Lúcifer, uma espécie de anjo degenerado. E porque, também, se criou um clima irracional que pretendeu atacar a corrupção do processo eleitoral brasileiro com métodos medievais, com uma caça às bruxas, as quais, encontrando-se presas e exemplarmente condenadas, nos redimiriam."


“Mensalão”: o erro grosseiro do STF

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Como tribunal construiu hipótese falsa do “desvio de dinheiro público”, mas deixou de investigar sequestro da democracia pelo poder econômico

Por Raimundo Pereira e Lia Imanishi, na revista Retrato do Brasil

O voto histórico do ministro Celso de Mello, que reabriu, nesta quarta-feira, o debate sobre o “Mensalão” no STF, não desenhou apenas uma risca de giz contra o ataque aos direitos civis. Ele pode ter criado condições para questionar um consenso que a mídia construiu ao longo dos últimos oito anos.
O que há de errado com o sistema político brasileiro? Atos individuais, comandados por mentes corrompidas, que deformam nossa “democracia”? Ou algo mais profundo: leis e práticas que permitem a grandes empresas formar bancadas parlamentares, influir decisivamente na escolha dos governantes, sequestrar a política?

O julgamento do “Mensalão” é decisivo porque coloca as duas hipóteses claramente em choque. A grande maioria dos brasileiros crê que se tratou de um desvio de dinheiro público. Há cerca de dois anos, os jornalistas Raimundo Pereira e Lia Imanishi tentam mostrar, por meio de uma série de reportagens publicadas na revista “Retrato do Brasil“, que esta visão é ingênua. Dirigentes do PT transferiram cerca de R$ 55 milhões, arrecadados junto a empresas, para correligionários e aliados, de forma ilegal. Deveriam ser condenados por isso. Mas o STF não investigou tais atos. Preferiu criar uma ficção: a de que os petistas teriam subtraído estas somas do Banco do Brasil

Tal escolha não foi fortuita. Crimes eleitorais, relacionados a financiamento de campanhas, são corriqueiros na política brasileira. Para enfrentá-los seria preciso mudar o sistema político — proibindo, em especial, que as empresas sustentem e submetam, a seus interesses particulares, os partidos e seus membros. Haveria uma pequena revolução. Centenas de dirigentes partidários, de todo o espectro ideológico, seriam punidos. Muito mais importante: o poder econômico perderia um instrumento essencial para definir prioridades do Estado e fechar contratos favorecidos. Ao invés de enfrentar tal tema, o STF preferiu encarcerar alguns indivíduos. É truque antigo: sacrificar bodes expiatórios sempre ajudou a distrair atenções e manter injustiças.

A longa reportagem publicada abaixo resume o trabalho de dois anos de Raimundo Pereira e Lia Imanishi. Está disponível, gratuitamente, também como aplicativo para celulares. Para pesquisar o assunto em mais detalhe, vale examinar, também, as nove edições regulares  [1 2 3 4 5 6 7 8 9] e o livro que “Retrato do Brasil” publicou sobre o tema. E ler a análise política que “Outras Palavras” estampou a este respeito (A.M.).
1.
Ponto de vista

UMA JUSTIÇA QUE FAZ LEMBRAR
OS TEMPOS MEDIEVAIS


No julgamento da 470 (AP 470), diante da crítica dos advogados de defesa de que não havia provas contra os acusados e de que eles estavam sendo condenados apenas por indícios, em desrespeito ao Código de brasileiro, vários ministros do Federal (STF) se preocuparam em explicar que em casos que envolvem, segundo eles, pessoas muito poderosas, capazes de limpar os rastros deixados por suas ações criminosas, o uso dos indícios é frequentemente a única e legítima forma de fazer justiça. O argumento é compreensível quando juízes se veem diante de crimes clamorosos, evidentes – os quais, como se diz, clamam aos céus por punição – e quando, de fato, indícios abundantes e sugestivos ligados ao crime apontam para os culpados.Ação PenalProcesso PenalSupremo Tribunal

No caso, no entanto, no julgamento do famoso “mensalão”, não se tratava da existência de dificuldades para ligar supostos criminosos a um crime bem determinado. O problema dos juízes foi que eles não se preocuparam em primeiramente provar a existência do crime para depois procurar as ligações dos culpados com o crime já então devidamente caracterizado. É por essa razão que, a nosso ver, se fez um tipo de justiça que faz lembrar os tempos medievais. Uma comparação boa é com o julgamento das chamadas feiticeiras de Salem, um lugarejo na província de Massachusetts, então uma das colônias inglesas que formaram os atuais Estados Unidos da América. O julgamento foi dramatizado por um dos maiores escritores do teatro americano, Arthur Miller. Mas o fato existiu e sua sentença final foram vários enforcamentos.

Miller (1915–2005) escreveu a peça The Crucible em 1953, como uma alegoria voltada contra o espírito das investigações feitas pela Comissão de Inquérito sobre as Atividades Antiamericanas, formada no Congresso dos EUA e dirigida pelo senador Joseph McCarthy. Hoje, ela é vista como um exemplo “da prática de fazer alegações e de usar técnicas de investigação injustas a fim de restringir o dissenso e fazer acusações políticas”, como diz a Wikipédia. Em português, a peça de Miller chama-se As bruxas de Salem (Ediouro, 1997) e é uma boa leitura para se entender essa recidiva da justiça medieval no Brasil de hoje. Uma epidemia, desconhecida para os moradores, assolou a região entre 1692 e 1693 e atingiu muitas crianças. Por uma série de interesses econômicos e pessoais, foi transformada, afinal, num crime de bruxaria. Na história dramatizada, tem papel destacado na condenação dos réus um juiz pretensioso que, segundo o próprio Miller, é o verdadeiro vilão da história. Esse personagem se proclama extremamente fiel aos regramentos da Justiça, mas, no fundo, sabe ser o julgamento das bruxas uma mentira. Não perdoa ninguém, para não deixar pairarem dúvidas sobre sua reputação teocrática.

Pode-se dizer que as ideias da justiça medieval foram superadas nas civilizações ocidentais modernas pelo Iluminismo, a também chamada Idade da Razão, dos séculos XVII e XVIII, que promoveu o conhecimento científico, em detrimento da superstição, da tradição e da fé. No direito, um de seus grandes intelectuais é o italiano Cesare Beccaria (1738–1794), autor de Dos delitos e das penas, de 1764. É o primeiro grande trabalho ocidental sobre o conjunto de questões a serem debatidas com vistas a uma reforma das prisões e das penas, de um ponto de vista mais racional. Beccaria se insurgiu contra os julgamentos secretos e as torturas, empregadas como meio de obtenção de provas. Muitas das reformas dos códigos penais europeus da época acharam inspiração em sua obra.

A tortura, praticada sob diversas formas ao longo dos séculos, ainda servia, oficialmente, na época de Beccaria, como meio de obter provas de crimes. As bruxas, acusadas de ligação com o demônio, eram torturadas até a confissão. Se não confessavam, como lembrou o irônico cientista Carl Sagan numa de suas obras, é porque o pacto que tinham com o mal era suficientemente forte para fazê-las suportar as torturas e, dessa forma extravagante, no fundo confessarem seus vínculos malditos. Um dos princípios essenciais para destruir resquícios da justiça medieval – resquícios que, por estranhos caminhos, persistem até hoje – é obrigar os acusadores a provar o que se chama de “materialidade do crime”. O crime não pode ser uma intenção, uma hipótese. A bruxa não pode ser condenada por matar o papa se o papa estiver vivinho da silva. Um maluco qualquer, flagrado num grampo telefônico de um araponga, mesmo que oficial, dizendo que matou a presidente da República que continua bela e formosa, não deve ser levado a sério. Portanto, como diria Beccaria, não se pode partir em busca dos criminosos sem, em primeiro lugar, caracterizar, materialmente, o crime.

No caso do mensalão, o STF, por mais incrível que possa parecer, não exigiu dos acusadores essa providência fundamental. O julgamento do mensalão acabou sendo uma espécie de exorcismo para tentar combater a terrível epidemia de corrupção que existiria no País há séculos e que teria tido, com os petistas e o governo Lula, um surto espetacular e promovido “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”, como disse, em seu pedido de condenação dos réus do mensalão, perante o STF, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel.

Mas qual foi exatamente esse histórico e gigantesco crime? Como mostraremos a seguir, o mensalão foi uma espécie de maldição aspergida pelo ex-deputado Roberto Jefferson sobre um esquema de financiamento eleitoral por meio do qual o partido do presidente Lula e de seu ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, distribuiu, entre 2003 e 2004, cerca de 56 milhões de reais para vários de seus filiados, para o marqueteiro de muitas de suas campanhas, Duda Mendonça, e para vários partidos da chamada base aliada. O esperto Jefferson, que recebeu parte desse dinheiro, disse: o meu foi caixa dois, o dos outros foi mensalão.

O mensalão, segundo Jefferson, era um esquema de compra de deputados por meio de uma mesada. Os petistas disseram: não, foi um esquema para o pagamento de despesas eleitorais com dinheiro tomado por empréstimo de dois bancos mineiros pelo PT e por empresas de publicidade de um cidadão chamado Marcos Valério, que rapassava os recursos ao PT. A Procuradoria-Geral da República e a maioria do STF, apoiadas numa verdadeira campanha de perseguição contra os chamados mensaleiros, movida praticamente por todos os maiores jornais e redes de televisão do País, no fundo consagrou a tese de Jefferson e, com base em indícios – fraquíssimos, como mostraremos – de que os empréstimos não existiam, disse que o dinheiro veio de recursos desviados do Banco do Brasil (BB) e da Câmara dos Deputados por um esquema cujo comando estava na própria Casa Civil da Presidência da República.

Esses desvios são, então, as vigas mestras da tese do mensalão. Provariam a inexistência dos empréstimos, os quais, existindo, rebaixariam o delito cometido da categoria de “o grande crime” de nossa história política para a da conhecida praga do caixa dois, que há décadas corrompe as campanhas eleitorais brasileiras. O defeito crucial do julgamento, a nosso ver, é que o procurador-geral da República não procurou, primeiro, seguindo as recomendações de Beccaria, provar os desvios de dinheiro público. E era fácil comprovar que eles não existiam, como Retrato do Brasil demonstra nesta edição especial. Mesmo agora, oito anos depois, nem as entidades supostamente roubadas, isto é, o Banco do Brasil e a Câmara dos Deputados, exigiram esse dinheiro de volta.

E por que a condenação de tipo medieval? Porque para muitos, à direita, o petismo é, e sempre foi, a encarnação do mal e para outros, à esquerda, desiludidos, o petismo, que seria a salvação do Brasil, passou a ser, sob o comando de José Dirceu, nosso Lúcifer, uma espécie de anjo degenerado. E porque, também, se criou um clima irracional que pretendeu atacar a corrupção do processo eleitoral brasileiro com métodos medievais, com uma caça às bruxas, as quais, encontrando-se presas e exemplarmente condenadas, nos redimiriam.


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