PICICA: "Brigas políticas entre as diferentes facções encarregadas de definir
enfermidades no DSM desfiguraram o significado de uma doença real do corpo e da
mente. A depressão é uma doença real e muito séria, ele argumenta, não devendo
ser diagnosticada tão promiscuamente. Shorter defende o uso do termo melancolia
para diferenciar este estado da depressão severa que afeta corpo e mente,
apresentando sintomas que vão além de flutuações de humor e “podem levar ao
desespero, completa falta de prazer na vida e suicídio”. Ao cindir dois tipos
diferentes de depressão, acredita ser possível ajudar os médicos a refinar seus
tratamentos."
De Patologias e Ficções
Por redacao - on
25/09/2013
Quando estresse e depressão tornam-se epidemia, cura cabe a indivíduos, médicos e medicamentos? Ou caberia aliviar o mal-estar da civilização?
Por Maissa Bakri
No filme de Lars von Trier, Melancolia se refere tanto a um planeta que aparenta estar em rota de colisão com a Terra, quanto ao estado emocional de Justine, o qual Freud descreveu como um abatimento profundamente doloroso, marcado pela cessação de interesse pelo mundo exterior, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda a atividade e a deterioração da auto-estima, culminando numa delirante expectativa de punição.
Em resenha para o The New York Times, A. O. Scott considera essa expectativa de punição umas das razões pelas quais as pessoas assistem aos filmes de Lars Von Trier. “O sofrimento – predominantemente, mas não exclusivamente, o sofrimento das mulheres – é tanto seu assunto favorito quanto seu método preferido.” A aproximação do planeta Melancolia reverte qualquer expectativa tradicional, tornando difícil argumentar contra o fatalismo e a depressão de Justine, que encontram ressonância frente à possibilidade iminente de aniquilação global.
Curiosamente, dois aspectos centrais do filme de Lars von Trier – a melancolia e o sofrimento das mulheres – se relacionam com o artigo “Quando a tristeza se tornou uma doença? Como patologizamos a vida cotidiana”, publicado no AlterNet. Diane Cole analisa dois livros recém-lançados, ainda sem tradução para o português, que questionam a expansão e consequente erosão dos conceitos de depressão e estresse, a ponto de se tornarem virtualmente insignificantes em termos de diagnóstico e tratamento.
Embora Melancolia pareça um termo antiquado e ultrapassado, Edward Shorter, professor de Psiquiatria e História da Medicina da Universidade de Toronto, Canadá, advoga por sua reabilitação. No livro How Everyone Became Depressed: the Rise and Fall of the Nervous Breakdown, Shorter demonstra como viemos a entender e utilizar de forma equivocada o conceito de depressão, em grande parte devido à ascensão dos antidepressivos e, principalmente, em função das constantes reinterpretações da depressão ao longo das cinco edições do Diagnostics and Statistical Manual (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria.
Brigas políticas entre as diferentes facções encarregadas de definir enfermidades no DSM desfiguraram o significado de uma doença real do corpo e da mente. A depressão é uma doença real e muito séria, ele argumenta, não devendo ser diagnosticada tão promiscuamente. Shorter defende o uso do termo melancolia para diferenciar este estado da depressão severa que afeta corpo e mente, apresentando sintomas que vão além de flutuações de humor e “podem levar ao desespero, completa falta de prazer na vida e suicídio”. Ao cindir dois tipos diferentes de depressão, acredita ser possível ajudar os médicos a refinar seus tratamentos.
Tão sombrio quanto a depressão, o estresse vem sendo nomeado de “peste negra do século 21″. De acordo com relatório do Chartered Institute of Personnel and Development, o estresse já configura a principal causa de afastamento prolongado do trabalho no Reino Unido, superando derrames, ataques cardíacos, câncer e problemas na coluna. Mas o que é o estresse? Quais são suas causas e seus impactos na sociedade?
O segundo livro analisado por Dana Cole em seu artigo é One Nation under stress: the trouble with stress as an idea, de Dana Becker, professora de Serviço Social na Bryn Mawr College, nos Estados Unidos. Para Becker, encarar estresse como uma ansiedade que se origina de dentro, ao invés de vê-la como reação a pressões externas subverte o sentido histórico original da palavra. Becker cita o neurologista americano George M. Beard, ao afirmar que as pressões da vida moderna estavam forçando as pessoas além dos limites de energia que possuem. Beard provavelmente não ficaria surpreso ao ver o caso do jovem alemão Moritz Erhardt, possivelmente morto por excesso de trabalho.
A questão central na análise de Becker é: não seria responsabilidade da sociedade formular políticas públicas e sistemas de seguridade social que ajudem a diminuir os estressores sociais e econômicos que estão sobrecarregando as pessoas? Ela cunha o termo estressismo para descrever “a convicção atual de que as tensões da vida contemporânea são principalmente problemas individuais de estilo de vida a ser resolvidos por meio do manejo do estresse, em oposição à convicção de que essas tensões estão ligadas a forças sociais e devem ser resolvidas principalmente por meios sociais e políticos”.
Um exemplo do que Becker chama de estressismo é a ideia de que as mães que trabalham fora de casa devem aprender a lidar com seus múltiplos papéis, além de manejar o estresse gerado pelo acúmulo de responsabilidades profissionais, no cuidado com os filhos e com a família, para manter a própria saúde e se manter em dia com as exigências estéticas. Esse estereótipo é tão disseminado e glorificado que fica fácil esquecer a suposição que está por trás: manobrar múltiplos papéis é um problema principalmente das mulheres, não dos homens, ou da família, ou da sociedade.
Para Cole, os dois autores alertam para o perigo de se perder a noção do impacto das pressões sociais e econômicas que vivemos. Pressões estas que, se fossem enfrentadas, poderiam promover mudanças efetivas e melhor qualidade de vida para toda a população – talvez, especialmente para as mulheres.
Vivemos um cenário no qual, ao mesmo tempo em que doenças reais estão sendo soterradas por uma enxurrada de distúrbios inventados, eventos que fazem parte da vida e características individuais ou de grupos (etários, de gênero, de orientação sexual) se tornam patologias.
Infância, menstruação, gravidez, parto, menopausa, timidez, luto, gula, masculinidade, feminilidade, impotência, sobrepeso, tristeza, criatividade, expressividade, alegria, rebeldia, questionamento de autoridade. Nesse crescente fenômeno de patologização da vida, as doenças estão se tornando ficções lucrativas nas mãos da indústria médica e farmacêutica e armas convenientes para garantir o controle social e a subordinação às injustiças e desigualdades.
É difícil evitar comparações com a Melancolia, planetária e pessoal, retratada por Lars von Trier. No mundo da não-ficção, tanto o abatimento profundo da depressão enquanto doença real como o sofrimento causado por estruturas econômicas e sociais opressivas, especialmente para as mulheres (e os pequenos que cria), estão sendo negligenciados. Talvez a colisão planetária que nos assombra seja justamente a realidade que vivemos na Terra.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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