setembro 16, 2013

"Contra a Campanha “Brasil: Livre do Cigarro”" (A águia e a serpente)

PICICA: "E se for o contrário? E se a vida se manifestar em seu grau mais elevado naqueles que nadam contra a correnteza moral do nosso tempo? Como explicar o aparecimento de tipos exuberantes, distintos, soberbos, que, no entanto fumam e bebem etc.? Minha tese é a de que toda boa ovelha, por ser ovelha e por ser boa, possui um valor ínfimo em relação aos animais ferozes, cruéis, poderosos e isentos de responsabilidade, de culpa, de cristianismo; encontrei em espíritos errantes mais vida, mais alegria e amor pela vida, em suma, mais vontade de poder do que em tipos bem comportados, moralistas, obsequiosos, como os não-fumantes. Como explicar tão impossível paradoxo? Acontece que para os moralistas a única vida possível é a deles. Viva como eles, e assim viverás feliz. Eis o seu lema! Mas para mim, um imoralista, é forçoso que a vida esteja do lado desses farsantes, desses mentirosos, desses negadores. O que está do lado deles é a morte, é o apequenamento da vida. Neles há muito ódio para que se possa encontrar vida dançante, dionisíaca, virtuosa porque viciosa. Quem não possui vícios? O padre, o sacerdote, o animal ascético."


Contra a Campanha “Brasil: Livre do Cigarro”


      
      Como um pensador do presente – um contemporâneo, se o entendemos como Agamben o entende -, não pude eu, em minha argúcia e sensibilidade para as coisas morais, deixar de notar certos sintomas de decadência em nossa nova “ordem moral”, no que se refere a um ato trivial para o nosso povo (e para o mundo): fumar. Ouço e vejo um movimento purificador que, justamente em nome dessa purificação – moral! Ora, pois! -, quer erradicar o cigarro. Para isso, constrói-se todo um aparato propagandístico, estatístico, midiático – que se arroga científico – para trucidar a boa consciência daquele que fuma. Tudo se passa como se após uma infinidade de progressos, de evoluções (morais, fisiológicas e científicas), passou-se a entender que o cigarro faz mal; abre-se aqui todo um novo campo para um novo imperativo categórico moral: “vós não deveis fumar, pois é imoral!”. Tem-se destruído cada vez mais a boa consciência do fumante, ele deve sentir-se culpado!

      Mas se outrora a moral encontrava sua justificativa numa força superior, transcendente (num Deus que julga e pune os transgressores), agora ela quer justificar-se pela forma mais bem acabada e sublime de niilismo, a saber, o cientificismo: “provou-se”, diz-nos, “cientificamente que o cigarro faz mal”. Assim, a moral se vale desse dado para erigir-se enquanto moral: “vós não deveis fumar, porque a ciência provou sua perniciosidade!”. Nossa ciência, agora, passou a produzir moral, a garantir o estabelecimento e a imposição de certos valores que outrora não eram capazes de se edificar, porque não haviam encontrado meios adequados para isso; agora eles o possuem, é a ciência, na medida em que substitui Deus, que garantia a moral – uma certa moral.

      Hoje, cada vez mais, o fumante fuma como se estivesse cometendo um ato ilícito, olhando, cauteloso e medroso, para os lados, a fim de que ninguém o perceba em seu ato espúrio, depravado. Dizem os bons moralistas, agressivos e soberbos, que “O cigarro há de matar-te!”, e o fumante, desarmado ante esse novo imperativo categórico moral, deixa-se tomar pela má-consciência. Sente-se culpado, precisa sentir-se culpado por fumar, por tornar-se enfermo, por destruir a si mesmo num suicídio lento e luxurioso – a moral nunca compreendeu bem o suicídio, e eu hei de mostrá-lo numa obra futura. O moralista diz “Você é culpado pela tua própria doença!” e o fumante responde, já com má-consciência “Sim, você está certo, eu sou culpado pela minha própria desgraça”. Já que fumar é um ato livre – pois todos nós possuímos o livre-arbítrio da vontade -, então ninguém mais pode ser culpado de tudo o que acontece senão aquele que age, que experimenta, que deseja etc. Por fim, vejo-me obrigado a declarar-me culpado pelos meus maus desejos, pelas minhas más vontades, pelos meus maus hábitos etc.

      Sou “eu” quem deseja fumar (desejo), quem quer fumar (vontade) e quem fuma efetivamente (hábito). Mesmo dentro das explicações sociológicas encontra-se resguardado um lugar quente e confortável para o “eu”. Não nos esqueçamos do diagnóstico feito por Nietzsche sobre a ideia de um livre-arbítrio da vontade: “Os homens foram considerados como “livres” para poder julgá-los e puni-los – para poder declará-los culpados (…)”. Tal campanha antitabagismo aparece como a manifestação mais pura, a mais cristalina, de um antigo desejo teológico de punição do devir, do vir-a-ser que não compreende “responsabilidade”, “culpa”, “vontade”, “Eu” e todas essas outras categorias da psicologia judiciária. Reitero, já não é mais possível ter boa consciência e a má-consciência, fruto de nossa natureza cristã, engole toda boa ação, toda inocência na ação! Ah! Mas há tanto ódio, tanto rancor, tanto ressentimento nesse ideal de purificação moral. Olha-se com desprezo, desdém ou horror a um homem que esteja tragando um cigarro – já não se pode nem mesmo fumar num bar, na presença de amigos e da família, como outrora se fazia tão livremente, tão alegremente -; o que se tornou, ou melhor, no que transformaram o fumante? Num ímpio e num ignorante – ele ignora a verdade científica.

      A ciência como expressão do ressentimento, da má-consciência – Ah! Como ainda somos demasiados cristãos! -, do ódio, da vontade graciosa e sublime de vingança, de extirpação da diferença. Eis o meu diagnóstico: a moral antitabagista entendida como um sintoma dessa ciência cristã, demasiada cristã e, por tal razão, de um fundo essencialmente teológico. Trata-se de uma moral que converte, que quer converter – “Vejam”, dizem esses religiosos, esses moralistas, “vocês estão errados, parem de fumar e melhorem suas vidas desgraçadas” -, que encontra no apaziguamento, na extinção do adversário a sua vontade fundamental. Um fumante jamais diria a um não-fumante “Fume!”, como se se tratasse de um imperativo categórico moral – é uma questão de agenciamento, tal como o é para a bebida, o sexo, os livros e o cinema -, já um não-fumante diria sem hesitar “pare com este vício execrável, você está se matando”; ele tentará, valendo-se de todas as artimanhas teológicas, de toda psicologia cristã, converter o fumante em não-fumante, ele tentará – e não sem sucesso! – transformá-lo numa ovelha, elevar o seu rebanho em número e em força.

      E se for o contrário? E se a vida se manifestar em seu grau mais elevado naqueles que nadam contra a correnteza moral do nosso tempo? Como explicar o aparecimento de tipos exuberantes, distintos, soberbos, que, no entanto fumam e bebem etc.? Minha tese é a de que toda boa ovelha, por ser ovelha e por ser boa, possui um valor ínfimo em relação aos animais ferozes, cruéis, poderosos e isentos de responsabilidade, de culpa, de cristianismo; encontrei em espíritos errantes mais vida, mais alegria e amor pela vida, em suma, mais vontade de poder do que em tipos bem comportados, moralistas, obsequiosos, como os não-fumantes. Como explicar tão impossível paradoxo? Acontece que para os moralistas a única vida possível é a deles. Viva como eles, e assim viverás feliz. Eis o seu lema! Mas para mim, um imoralista, é forçoso que a vida esteja do lado desses farsantes, desses mentirosos, desses negadores. O que está do lado deles é a morte, é o apequenamento da vida. Neles há muito ódio para que se possa encontrar vida dançante, dionisíaca, virtuosa porque viciosa. Quem não possui vícios? O padre, o sacerdote, o animal ascético.

      E não se poderá dizer – eis uma hipótese digna de exame -, ainda com mais força depois de tudo o que foi dito até aqui, que tal preocupação com o tabagismo esconde algo mais profundo do que a filantropia, a compaixão, a bondade, a moralidade boa e sã; esconde, em bem da verdade, um dispositivo biopolítico de controle, de gerenciamento da vida em nome de uma certa estrutura política que aparece sob a forma de uma estrutura meramente moral? Objetar-se-á que tal campanha antitabagista está assegurada pela verdade científica que ela expressa em seu discurso moralizador. Ora, mais aí dever-se-á ver a oportunidade para se recolocar a questão tão perigosa, tão terrível, tão estonteante, tão imoral, tão subversiva, que Nietzsche colocou em seu tempo: mas, também, por que sempre a verdade?

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