PICICA: "E se for o contrário? E se a
vida se manifestar em seu grau mais elevado naqueles que nadam contra a
correnteza moral do nosso tempo? Como explicar o aparecimento de tipos
exuberantes, distintos, soberbos, que, no entanto fumam e bebem etc.?
Minha tese é a de que toda boa ovelha, por ser ovelha e por ser boa,
possui um valor ínfimo em relação aos animais ferozes, cruéis, poderosos
e isentos de responsabilidade, de culpa, de cristianismo; encontrei em
espíritos errantes mais vida, mais alegria e amor pela vida, em suma,
mais vontade de poder do que em tipos bem comportados, moralistas,
obsequiosos, como os não-fumantes. Como explicar tão impossível
paradoxo? Acontece que para os moralistas a única vida possível é a
deles. Viva como eles, e assim viverás feliz. Eis o seu lema! Mas para
mim, um imoralista, é forçoso que a vida esteja do lado desses
farsantes, desses mentirosos, desses negadores. O que está do lado deles
é a morte, é o apequenamento da vida. Neles há muito ódio para que se
possa encontrar vida dançante, dionisíaca, virtuosa porque viciosa. Quem
não possui vícios? O padre, o sacerdote, o animal ascético."
Contra a Campanha “Brasil: Livre do Cigarro”
Como um pensador do presente – um
contemporâneo, se o entendemos como Agamben o entende -, não pude eu, em
minha argúcia e sensibilidade para as coisas morais, deixar de notar
certos sintomas de decadência em nossa nova “ordem moral”, no que se
refere a um ato trivial para o nosso povo (e para o mundo): fumar. Ouço e
vejo um movimento purificador que, justamente em nome dessa purificação
– moral! Ora, pois! -, quer erradicar o cigarro. Para isso, constrói-se
todo um aparato propagandístico, estatístico, midiático – que se arroga
científico – para trucidar a boa consciência daquele que fuma. Tudo se
passa como se após uma infinidade de progressos, de evoluções (morais,
fisiológicas e científicas), passou-se a entender que o cigarro faz mal;
abre-se aqui todo um novo campo para um novo imperativo categórico
moral: “vós não deveis fumar, pois é imoral!”. Tem-se destruído cada vez
mais a boa consciência do fumante, ele deve sentir-se culpado!
Mas se outrora a moral
encontrava sua justificativa numa força superior, transcendente (num
Deus que julga e pune os transgressores), agora ela quer justificar-se
pela forma mais bem acabada e sublime de niilismo, a saber, o
cientificismo: “provou-se”, diz-nos, “cientificamente que o cigarro faz
mal”. Assim, a moral se vale desse dado para erigir-se enquanto moral:
“vós não deveis fumar, porque a ciência provou sua perniciosidade!”.
Nossa ciência, agora, passou a produzir moral, a garantir o
estabelecimento e a imposição de certos valores que outrora não eram
capazes de se edificar, porque não haviam encontrado meios adequados
para isso; agora eles o possuem, é a ciência, na medida em que substitui
Deus, que garantia a moral – uma certa moral.
Hoje, cada vez mais, o fumante
fuma como se estivesse cometendo um ato ilícito, olhando, cauteloso e
medroso, para os lados, a fim de que ninguém o perceba em seu ato
espúrio, depravado. Dizem os bons moralistas, agressivos e soberbos, que
“O cigarro há de matar-te!”, e o fumante, desarmado ante esse novo
imperativo categórico moral, deixa-se tomar pela má-consciência.
Sente-se culpado, precisa sentir-se culpado por fumar, por tornar-se
enfermo, por destruir a si mesmo num suicídio lento e luxurioso – a
moral nunca compreendeu bem o suicídio, e eu hei de mostrá-lo numa obra
futura. O moralista diz “Você é culpado pela tua própria doença!” e o
fumante responde, já com má-consciência “Sim, você está certo, eu sou
culpado pela minha própria desgraça”. Já que fumar é um ato livre – pois
todos nós possuímos o livre-arbítrio da vontade -, então ninguém mais
pode ser culpado de tudo o que acontece senão aquele que age, que
experimenta, que deseja etc. Por fim, vejo-me obrigado a declarar-me
culpado pelos meus maus desejos, pelas minhas más vontades, pelos meus
maus hábitos etc.
Sou “eu” quem deseja fumar
(desejo), quem quer fumar (vontade) e quem fuma efetivamente (hábito).
Mesmo dentro das explicações sociológicas encontra-se resguardado um
lugar quente e confortável para o “eu”. Não nos esqueçamos do
diagnóstico feito por Nietzsche sobre a ideia de um livre-arbítrio da
vontade: “Os homens foram considerados como “livres” para poder
julgá-los e puni-los – para poder declará-los culpados (…)”. Tal campanha antitabagismo aparece como a manifestação mais pura, a mais cristalina, de um antigo desejo teológico de
punição do devir, do vir-a-ser que não compreende “responsabilidade”,
“culpa”, “vontade”, “Eu” e todas essas outras categorias da psicologia judiciária.
Reitero, já não é mais possível ter boa consciência e a má-consciência,
fruto de nossa natureza cristã, engole toda boa ação, toda inocência na
ação! Ah! Mas há tanto ódio, tanto rancor, tanto ressentimento nesse
ideal de purificação moral. Olha-se com desprezo, desdém ou horror a um
homem que esteja tragando um cigarro – já não se pode nem mesmo fumar
num bar, na presença de amigos e da família, como outrora se fazia tão
livremente, tão alegremente -; o que se tornou, ou melhor, no que
transformaram o fumante? Num ímpio e num ignorante – ele ignora a
verdade científica.
A ciência como expressão do
ressentimento, da má-consciência – Ah! Como ainda somos demasiados
cristãos! -, do ódio, da vontade graciosa e sublime de vingança, de
extirpação da diferença. Eis o meu diagnóstico: a moral antitabagista
entendida como um sintoma dessa ciência cristã, demasiada cristã e, por
tal razão, de um fundo essencialmente teológico. Trata-se de
uma moral que converte, que quer converter – “Vejam”, dizem esses
religiosos, esses moralistas, “vocês estão errados, parem de fumar e
melhorem suas vidas desgraçadas” -, que encontra no apaziguamento, na
extinção do adversário a sua vontade fundamental. Um fumante jamais
diria a um não-fumante “Fume!”, como se se tratasse de um imperativo
categórico moral – é uma questão de agenciamento, tal como o é para a
bebida, o sexo, os livros e o cinema -, já um não-fumante diria sem
hesitar “pare com este vício execrável, você está se matando”; ele
tentará, valendo-se de todas as artimanhas teológicas, de toda
psicologia cristã, converter o fumante em não-fumante, ele tentará – e
não sem sucesso! – transformá-lo numa ovelha, elevar o seu rebanho em
número e em força.
E se for o contrário? E se a
vida se manifestar em seu grau mais elevado naqueles que nadam contra a
correnteza moral do nosso tempo? Como explicar o aparecimento de tipos
exuberantes, distintos, soberbos, que, no entanto fumam e bebem etc.?
Minha tese é a de que toda boa ovelha, por ser ovelha e por ser boa,
possui um valor ínfimo em relação aos animais ferozes, cruéis, poderosos
e isentos de responsabilidade, de culpa, de cristianismo; encontrei em
espíritos errantes mais vida, mais alegria e amor pela vida, em suma,
mais vontade de poder do que em tipos bem comportados, moralistas,
obsequiosos, como os não-fumantes. Como explicar tão impossível
paradoxo? Acontece que para os moralistas a única vida possível é a
deles. Viva como eles, e assim viverás feliz. Eis o seu lema! Mas para
mim, um imoralista, é forçoso que a vida esteja do lado desses
farsantes, desses mentirosos, desses negadores. O que está do lado deles
é a morte, é o apequenamento da vida. Neles há muito ódio para que se
possa encontrar vida dançante, dionisíaca, virtuosa porque viciosa. Quem
não possui vícios? O padre, o sacerdote, o animal ascético.
E não se poderá dizer – eis uma
hipótese digna de exame -, ainda com mais força depois de tudo o que
foi dito até aqui, que tal preocupação com o tabagismo esconde algo mais
profundo do que a filantropia, a compaixão, a bondade, a moralidade boa
e sã; esconde, em bem da verdade, um dispositivo biopolítico de
controle, de gerenciamento da vida em nome de uma certa estrutura
política que aparece sob a forma de uma estrutura meramente moral?
Objetar-se-á que tal campanha antitabagista está assegurada pela verdade
científica que ela expressa em seu discurso moralizador. Ora, mais aí
dever-se-á ver a oportunidade para se recolocar a questão tão perigosa,
tão terrível, tão estonteante, tão imoral, tão subversiva, que Nietzsche
colocou em seu tempo: mas, também, por que sempre a verdade?
Fonte: A águia e a serpente
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