PICICA: "“Os problemas ficcionais que
surgem com a chegada do frio evidenciam problemas inequivocamente reais.
Os moradores de rua incendeiam a noite com fogueiras, em busca de
calor, mas morrem aos poucos de frio (o jornal fala de mais de 300 desde
a mudança climática). A fragilidade da nova situação põe em risco os
frágeis da velha situação. Neste sentido, apesar da paisagem e dos
personagens locais, a Recife do curta é metonímia do Brasil inteiro
(talvez por isso a necessidade de um narrador estrangeiro, não apenas de
outro estado). A lente realista do falso documentário ajuda a operar uma
inversão importante: mostra o quão ficcional é, na verdade, a concepção
da Recife verdadeira como tropical, quente, alegre”.
Uma análise do curta-metragem “Recife Frio”, de Kleber Mendonça Filho, e um convite para assisti-lo abaixo."
Recife quente, Recife frio
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“Os problemas ficcionais que
surgem com a chegada do frio evidenciam problemas inequivocamente reais.
Os moradores de rua incendeiam a noite com fogueiras, em busca de
calor, mas morrem aos poucos de frio (o jornal fala de mais de 300 desde
a mudança climática). A fragilidade da nova situação põe em risco os
frágeis da velha situação. Neste sentido, apesar da paisagem e dos
personagens locais, a Recife do curta é metonímia do Brasil inteiro
(talvez por isso a necessidade de um narrador estrangeiro, não apenas de
outro estado). A lente realista do falso documentário ajuda a operar uma
inversão importante: mostra o quão ficcional é, na verdade, a concepção
da Recife verdadeira como tropical, quente, alegre”.
Uma análise do curta-metragem “Recife Frio”, de Kleber Mendonça Filho, e um convite para assisti-lo abaixo.
Por Tomaz Amorim Izabel *
“Socialite afirma que gente pobre está
mais ‘chic’ passando frio”. Este comentário não vem de uma revista de
moda ou fofoca, mas é uma manchete fictícia, escrita nos letreiros de um
telejornal que compõe a trama do curta-metragem “Recife Frio” (2009),
de Kleber Mendonça Filho. O curta inteiro é gravado como
pseudo-documentário, em tom ao mesmo tempo humorístico e sombrio, que
trata sobre um estranho acontecimento meteorológico: a queda de um
meteorito que teria causado a aparição de nuvens fixas sobre Recife, que
baixaram drasticamente a temperatura da cidade tropical. A partir deste
pressuposto improvável, quase de ficção científica (a composição das
imagens e o enredo prestam homenagem a Chris Marker e seus filmes La Jetée e Sans Soleil),
Kleber Medonça faz uma ampla curva para pegar o espectador pelas
costas: o falso documentário documenta com precisão questões sociais
camufladas no cotidiano da Recife quente.
Sobre sua passagem do documentário para a
ficção, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski teria afirmado que a
segunda conseguiria captar o real de maneira ainda mais profunda que o
primeiro. “Recife Frio” comprova esta tese. Toda uma parafernália de
técnicas é utilizada para afastar o espectador do enredo, supostamente
distante, mas trata-se, como dissemos, de uma distração: quando ele
menos espera está diante do real até então despercebido. O
pseudo-documentário se inicia ironicamente como uma reportagem especial
para um jornal argentino. Sua narração, o estilo das entrevistas, as
imagens turísticas utilizadas para mostrar a Recife antiga, quente e
tropical, e a atual, fria, escura e chuvosa, tentam o tempo inteiro
evidenciar o faz de conta. Aos poucos, elementos menos fantasiosos e
distantes pontilham a narração. As imagens elogiosas das recifenses de
biquíni e do estouro de uma água de coco são entremeadas pela referência
ao cheiro de urina da cidade e do Capibaribe poluído, chamado de “caldo
escuro”. Até aí, tudo bem, poderia ser apenas uma maldade excessiva dos
nossos hermanos.
A medida que a narrativa prossegue, no
entanto, os problemas ficcionais que surgem com a chegada do frio
evidenciam problemas inequivocamente reais. Os moradores de rua
incendeiam a noite com fogueiras, em busca de calor, mas morrem aos
poucos de frio (o jornal fala de mais de 300 desde a mudança climática).
A fragilidade da nova situação põe em risco os frágeis da velha
situação. Neste sentido, apesar da paisagem e dos personagens locais, a
Recife do curta é metonímia do Brasil inteiro (talvez por isso a
necessidade de um narrador estrangeiro, não apenas de outro estado). A
lente realista do falso documentário ajuda a opera uma inversão
importante: mostra o quão ficcional é, na verdade, a concepção da Recife
verdadeira como tropical, quente, alegre. A Recife fria, por outro
lado, apresenta através do frio atmosférico uma outro tipo de frieza,
que aparece genericamente no curta caracterizada como frieza “humana” –
típica dos grandes centros urbanos de nosso país.
A constatação desta frieza não se dá de
maneira fria e documental, mas ao contrário, através do bom humor, e da
ironia (sempre sublinhada na narração portenha), dos entrevistados.
Cidadãos comuns, moradores de rua, repentistas, lojistas e instituições
religiosas são mostrados em sua adaptação de improviso, mais ou menos
dramático, às novas condições. Um dos pontos altos deste humor é o
alívio justo de Clodoaldo Alves, o Papai Noel profissional que, depois
de sofrer por anos com o calor da cidade, pode agora exercer sua
profissão com menos desconforto – “Naquela época, 34 graus era pra
matar, com aquela roupa”. Junto com o bom humor desta representação, vai
também uma ridicularização velada de nossa apropriação tropical do
Natal de inverno estadunidense, sintetizada em detalhe na imagem do
Papai Noel que se refresca desesperadamente com a água de coco. Contar
sobre os outros personagens irônicos e dramáticos, como o bretão
melancólico, seria estragar um pouco o prazer de quem ainda não assistiu
ao filme.
Podemos seguir, então, para a questão
arquitetônica, que é tocada de modo certeiro pelo curta. Desde meados do
século XIX até recentemente, foi recorrente em nossa país a tentativa
de explicar e justificar nossa estrutura social a partir de condições
geográficas e climáticas. O Recife capturado e resfriado pela lente de
Kleber Mendonça desmascara estes esforços ao demonstrar que as relações
de poder tem, na verdade, fundamentação econômica. Através da
transformação climática, somos introduzidos também em uma mudança
arquitetônica: a família de alta classe, que possui um apartamento
amplo, com grandes janelas, à beira-mar, sofre agora com a
desvalorização do imóvel, devido ao frio. Ao adentrar as entranhas do
apartamento, abandonamos por um momento o tom humorístico (nós, os
telespectadores, o narrador e a câmera seguem com a leveza curiosa do
documentário argentino) e nos deparamos com o horror histórico
brasileiro incrustado na estrutura dos apartamentos. A família, pai, mãe
e filho, brancos, descrevem um “conflito familiar” em que o filho, que
traja uma jaqueta com o emblema da bandeira alemã, deseja abrir mão de
sua suíte para ficar com o quarto da empregada negra. O narrador
distante, argentino, descreve este tipo de quarto com as seguintes
palavras: “Essa instituição arquitetônica brasileira é herança da
escravidão, fantasma moderno da senzala”. O menor quarto da casa,
relegado aos fundos, praticamente sem janelas, tem agora o benefício de
ser o mais quente e por isso é tomado pelo filho. A empregada doméstica
quer seu quarto de volta. A mãe justifica seu incômodo dizendo que a
empregada não está acostumada com uma suíte. A resposta da empregada
desmascara: “O quarto de lá é mais frio”. O desejo do jovem patrão
branco prevalece no quente e também no frio.
O salto ficcional do curta para dentro da
arquitetura real de Recife quase não tem volta. Do quarto da empregada
passamos para a feiura urbana e as preocupações com segurança. Somos
brindados com uma sequência de imagens de grades, portas, prédios
angulosos, asfaltos, condomínios que nos lançam do frio fictício e
humorístico para o frio real e horroroso do real. Irremediavelmente
misturados os dois Recifes, assistimos a cenas, sem saber exatamente
onde se passam, de famílias que abandonam suas casas frias para se
comprimir no espaço quente do shopping, de outros presos, os das
cadeias, que organizam exposições de fotos sobre as novas nuvens: “Óia
pra cima irmão”… Esta vertigem só é superada, enfim, por um canto
poderoso e profético, no meio da praia cinza.
O fim do curta-metragem guarda uma
promessa de redenção: a voz e a luz dourada de Lia de Itamaracá, a negra
que canta a ciranda, anunciam um esforço de atravessar as nuvens
perpétuas que cobrem a cidade e a praia. O filme de Kleber Mendonça quer
invocar este tímido raio de sol, usando a força crítica da ficção, num
esforço para aquecer nossas cidades frias.
* Tomaz Amorim Izabel é professor e mestre em Teoria Literária pela Unicamp. Mantém uma conta no Twitter, @tommyamorim, e um blog literário: tomazizabel.blogspot.com
Fonte: Negro Belchior