PICICA: "Uma das coisas
que nos choca quando defrontamos com clareza nossos pensamentos diante
da realidade brasileira é como flutuamos entre a hipocrisia pragmática e
o idealismo ingênuo. É difícil discernir as coisas nessa transição
conservadora. Alianças e conluios com empreiteiros, associação aos
milicianos, ao cristianismo fundamentalista, repressão violenta e terror
contra manifestações, tudo isso está na pauta de opções pragmáticas dos
governos sociais democratas do nosso país. E olhamos para elas com o
reconhecimento sincero de que não tínhamos melhor caminho para seguir"
O SUS e a social democracia brasileira
Paulo Fleury Teixeira*
UM CAMINHO ESTREITO ENTRE O IDEALISMO INGÊNUO E O PRAGMATISMO HIPÓCRITA
Já há alguns anos, quando penso no sistema público de serviços de saúde
brasileiro eu me lembro de uma frase. Ouvi de um dos ministros da saúde
de um dos nossos últimos governos sociais democratas que a solução para
o SUS era o crescimento dos planos privados de saúde. Até hoje não sei
bem como reagir a essa fala.
O ministro foi transitório, talvez não expressasse a política do governo,
mas não tenho certeza. E esse é apenas um dos aspectos intrigantes da
frase. O ministro foi transitório, mas a frase expressava a política
para a saúde da social democracia no Brasil?
É
difícil responder a essa questão. Em parte porque o SUS é certamente um
daqueles casos tão brasileiros e tão universais em que o apego à ideia
nos impede de ver a realidade.
Uma das coisas
que nos choca quando defrontamos com clareza nossos pensamentos diante
da realidade brasileira é como flutuamos entre a hipocrisia pragmática e
o idealismo ingênuo. É difícil discernir as coisas nessa transição
conservadora. Alianças e conluios com empreiteiros, associação aos
milicianos, ao cristianismo fundamentalista, repressão violenta e terror
contra manifestações, tudo isso está na pauta de opções pragmáticas dos
governos sociais democratas do nosso país. E olhamos para elas com o
reconhecimento sincero de que não tínhamos melhor caminho para seguir.
É
por isso que vale a pena pegarmos a frase do nosso amigo ex-ministro de
frente e sermos tomados pelo choque de termos que reconhecer essa
política pragmática e negá-la ideologicamente.
Pode
ser que a gente se embrulhe mesmo nesses juízos e que a gente mesmo não
saiba qual é a melhor opção para o Brasil. Assumir o caráter híbrido do
seu sistema público de saúde e
contabilizar o crescimento da parcela privada como vitória da via
socialdemocrática ou aferrar-se à ideia talvez ingênua, romântica,
legalista, universalista, de um sistema único de saúde?
Num
país onde cada possível direito é buscado e preservado como privilégio
até o limite do impossível, num país que continua com a desigualdade
socioeconômica como uma de suas marcas mais profundas é mesmo muito
difícil um sistema único de saúde real.
E por isso não é difícil ver nosso juízo sobre o SUS envolto numa mistura de ingenuidade e hipocrisia.
Talvez
as coisas sejam mesmo difíceis de resolver e cada passo adiante no país
tenha que ser conseguido como numa guerra de trincheiras infindável.
Talvez a vida social seja sempre assim.
Enfim, seja como for, um pouco mais de realismo não deve nos atrapalhar.
Não
parece claro, honesto, franco, correto, dizer que o Brasil, ou ainda
mais especificamente a sua socialdemocracia, tenha feito uma opção
política real pelo SUS. Não se pode também dizer que não a tenha feito.
Bom,
mas assim andamos de ambiguidade em ambiguidade e não estamos dispostos
a continuar nesse rumo, ou falta de rumo, não é? Entendo, mas ocorre
que a realidade é mesmo ambígua e diversa e polissêmica e enfim, podemos
prosseguir assim, negando a realidade pela ilusão até onde a imaginação
alcance.
Talvez a gente possa discernir então
o que mais nos incomoda, o que se poderia dizer que é inaceitável, o
que é indigno e pode ser modificado. Talvez a gente chegue bem rápido à
equação: são as deficiências de acesso e qualidade no SUS que nos
incomodam mais e isso se resolve com maior financiamento. Não é difícil
concordar com esse raciocínio. 10% do PIB para o SUS é o que queremos.
Queremos? Quem? Os defensores do SUS, ora. Ok, ok, os defensores do SUS.
E me desculpem perguntar, mas quem são, ou quem somos, eles, os
defensores do SUS?
Teoricamente somos todos,
qualquer um, os pesquisadores de saúde pública com certeza, os
universalistas em geral, porque não? Mas afora a força dessa ideologia,
onde as decisões são tomadas na prática social, o que ocorre? Acho que
devo estar fazendo um raciocínio tão banal, mas tão desagradável que
talvez seja melhor ignorá-lo. Sob esse ponto de vista a gente conta
apenas com a ideia e a boa vontade, a boa fé que caracteriza mesmo o
idealismo e a ingenuidade. Nenhum político no Brasil é comprometido
fisicamente com o SUS. Nenhum deles é usuário do SUS. É difícil que o
sistema público de serviços de saúde pública no Brasil prospere sem um
comprometimento maior dos políticos e eles têm apenas interesses
abstratos, idealistas, em relação ao SUS.
Criticar
que os políticos do país tenham privilégios que os distinguem da
sociedade em geral é perigoso em uma cultura em que cada direito é
defendido como privilégio com unhas e dentes pelas categorias que os
conquistaram, contra todos os que não os têm. No fim das contas, quase
todos os defensores do universalismo do SUS estão mais empenhados em
garantir os seus direitos ao seu plano de saúde especial e ao seu fundo
de pensão e aposentadoria privilegiado.
A
cultura enfim dá um grande valor a isso, quem pode vai ser atendido no
Albert Einstein, ou no Sírio Libanês. Quem pode faz 16 cirurgias para
tratar um câncer incurável e todos elogiam o grande apreço pela vida e
tenacidade do mártir, enquanto ficam profundamente marcados pela
qualidade dos profissionais que persistiram tentando salvar a vida do
seu paciente com todos os recursos disponíveis no mundo da tecnologia
médica. Viva!
E isso fica mesmo marcado em
nosso emocional. Defender que os políticos brasileiros sejam usuários do
SUS, nesse contexto, parece ser até um crime contra eles. Nós todos
sabemos que um discurso igualitário radical toma facilmente as cores
fascistas, e não é o que vemos acontecer aqui e ali nas manifestações
Brasil afora? É claro, viva a liberdade, viva o livre mercado e as
distinções de poder.
E não falo isso com
maiores angústias, é assim que é a socialdemocracia e a nossa é assim ao
quadrado. As distinções de riqueza e poder político precisam ser
mantidas com firmeza. Até aí podemos transitar com alguma dignidade, com
a cabeça erguida com bons universalistas que somos. Tudo bem, numa
socialdemocracia transitamos com essas distinções e contra elas mesmas
e, ora bolas, qualquer coisa pensada para além disso é puro idealismo
utópico. Vamos adiante e no SUS nós temos mesmo um instrumento inovador,
em termos de gestão social: os Conselhos de saúde. Quem poderia em sã
consciência não reconhecer o puta avanço institucional marcado pelos
Conselhos de saúde? Para provar o institucionalista não perde tempo em
lembrar que essa prática democratizante foi copiada por várias outras
áreas de política pública no país.
O que
acontece hoje com a participação social no SUS? O institucionalista
lembrará, agora com orgulho, que a participação popular no SUS está
garantida pela paridade nos Conselhos e Conferências de saúde. É
verdade, mas aqui o idealismo ingênuo e o pragmatismo hipócrita se dão
as mãos de tal maneira que é preciso a gente fazer um esforço para
separá-los.
Uma forma de fazer essa distinção,
ao que me parece, é aquela adotada recentemente pelo Ministério das
Cidades. É bem simples: façamos conselhos de participação popular onde
governo e empresários tenham algo próximo de 70% dos membros, o restante
fica entre ONGs e representações populares. É a consagração da
hipocrisia como política, mas pelo menos é uma posição assumida. A seguir
esse rumo, o mais honesto e efetivo é transformar todos esses conselhos
em agências reguladoras, onde a tecnocracia, em nome do povo, acerta-se
diretamente com o poder econômico.
Mas isso
não é o que queremos, com certeza. Não vamos retroceder um só milímetro
da paridade de representação dos usuários que conquistamos no SUS! É um
grito possante do nosso idealismo. Bom, acho que agora já sabemos que o
idealismo não basta, precisamos dar um passo adiante, precisamos
encarar a realidade. E quem se obriga a olhar de fato para o uso desse
instrumento só não desespera se for muito perseverante com a
participação direta como opção política.
Sei
que esse não é o único e talvez não seja o melhor critério, mas se
também no Conselho Nacional e nos Conselhos Estaduais de saúde, mesmo
entre os 50% considerados representantes dos usuários do SUS, não
tivermos um só usuário do SUS, talvez a gente deva se obrigar também a
reconhecer que aí temos um problema sério.
Podemos
aceitar que os congressistas, os políticos em geral, o executivo e
todos na cadeia de corporações e classes médias estejam de um modo
pessoal desinteressados do SUS. Mas é claro que não dá para aceitar que
nas representações diretas dos usuários nem haja usuários.
Tem
gente que não leva isso a sério, mas é sério demais,basta pensar que
agora toda a estrutura de representação deste país (e do mundo) está
sendo colocada em questão.
Aquelas
instituições que têm seus interesses ligados aos planos privados de
saúde (como as centrais sindicais e as corporações funcionais da
academia, entre outros) serão mesmo bem indicadas para serem os
representantes dos usuários no SUS e os representantes de portadores de
patologias, serão? Senão, como fazer uma representação real dos
interesses dos usuários do SUS? Será que essas questões não interessam à
social democracia brasileira? Será que foram simplesmente
negligenciadas? Não estou certo, mas me parece claro que temos o desafio
histórico de enfrenta-las.
* - Paulo Fleury Teixeira é Pesquisador do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva (Nescon), da UFMG.
Fonte: Cebes
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