PICICA: "Quando a velha mídia, ao abandonar sua função primordial de
fiscalização e crítica aos governos e às sociedades, se alinha com o
poder em nome de lucros financeiros e de seu próprio empoderamento,
ocorre o que podemos chamar de falta de independência. Então cabe a
pergunta, sobretudo em sociedades de democracia relativa como são as
nossas: de que vale a liberdade de expressão para uma mídia sem
independência? Será que para esse tipo de jornalismo faz tanta falta
assim a liberdade de informar?
Menos mal que esse vazio crítico vem sendo ocupado por uma
mídia dissidente, através de publicações impressas, mas sobretudo
revistas e jornais online e blogs. São espaços sem grandes recursos
financeiros e logísticos, mas que têm aprofundado a reflexão dos temas
espinhosos que a grande imprensa oculta ou aborda de maneira
superficial. O multiculturalismo de nossa época, as tensões sociais, a
busca de alternativas ao capitalismo hegemônico, a crítica à própria
imprensa, a discussão inteligente têm encontrado grande e generosa
acolhida nessas “pequenas” mídias. Embora todos, grandes e pequenos,
defendam seus interesses, notamos nesses novos espaços maior liberdade
de expressão com mais independência. Não é por outro motivo que, volta e
meia, ouvimos algum arauto do poder advogar a regulamentação da
internet, o nosso pequeno grande reino da liberdade."
O poder na sombra
Já não basta eleger ou derrubar governos: Estados vigiam, mas quem decide são as corporações. Movimentos sociais saberão reagir?
Por Marcelo Degrazia*
A recente intimidação do GCHQ, a inteligência secreta inglesa, ao jornal The Guardian
e a invasão da NSA, a inteligência secreta dos EUA, nos arquivos da
Petrobras criam uma boa ocasião para refletir sobre terrorismo,
livre-mercado, democracia, liberdade de expressão e independência de imprensa.
Não é absurdo dizer que nossa época apresenta ao menos dois
tipos de terrorismo, o disseminado e o concentrado. O primeiro está a
cargo de grupos como Taliban, Al-Qaeda e outros. Empregam a violência
extrema em nome de Deus ou da Nação, quando não em nome de ambos, e o
resultado é a morte de inocentes, como no Afeganistão, Síria e Iraque,
só para ficarmos nos exemplos mais atuais. Prometem democracia e a
melhora das condições de vida em seus territórios, mas ao tomar o poder
promovem o terror contra seus inimigos e exploram ao máximo a
população. É o velho bordão: em nome da liberdade e da democracia são
cometidos os maiores crimes contra a humanidade.
O terrorismo concentrado é o exercido pelos Estados, é o
terror oficial, com lei e banda de música. Os EUA de hoje são o exemplo
acabado disso, a Inglaterra fica só um pouquinho atrás. Não é apenas
gratidão pelo apoio recebido na Segunda Guerra Mundial, é sobretudo
alinhamento político, econômico e financeiro com a grande potência para
extrair mais e melhores dividendos.
Ao invadir o Iraque em apoio ao seu antigo aliado, por trás da máscara
do servilismo garantia também para si as benesses do petróleo e futuros
ganhos de mercados desbravados militarmente pelo Grande Irmão.
Alguns analistas classificam isso de nova face do
imperialismo, outros de neocolonialismo. O nome não importa, é o velho
movimento expansionista do capitalismo versão ocidental, cuja índole se
assemelha à invasão das Américas. Após a invasão do Iraque, Tony Blair
veio a público dizer o que todo o mundo já sabia, o Iraque não tinha armas químicas e biológicas… Antigamente isso seria suficiente para derrubar seu gabinete.
Os EUA, assim como muitos Estados nesta época de nuvem
informática, estão desenvolvendo uma rede imperial de acesso às
informações privadas, coisa que bancos, lojas de departamento, redes de
telefonia, provedores e hospedeiros de informática, a polícia e a
Receita Federal já vêm fazendo há muitos anos. Desse ninho de serpentes,
Snowden extraiu as provas dos crimes praticados pelos EUA em nome de
uma suposta guerra ao terror. O dedo de Snowden, como na fábula
infantil, mostrou a falácia da ideologia liberal, que desde a Revolução Francesa se apoia em conceitos como democracia e livre-mercado.
John Gray, em Falso Amanhecer – Equívocos do Capitalismo Global,
já havia denunciado a contradição de uma liberdade de mercado
organizada pela intervenção legal do Estado. A acusação feita pelo
ex-agente de inteligência apenas forneceu a prova material do crime. Mas
possui o condão de deixar nu o rei e de fulminar qualquer argumento a
favor do livre-mercado. A investigação ilegal dos arquivos da Petrobras
escancara as ligações profundas entre os agentes capitalistas e o
Estado. Seus métodos mostram que, além de guerras quentes, há também uma
soturna guerra fria, invisível, cuja índole expressa a outra face da
natureza capitalista. É a velha e sempre atualizada guerra comercial.
O dedo acusador da roupa transparente do rei é o fim do
conceito de livre-mercado e elimina qualquer reflexão de ética associada
ao sistema econômico capitalista, justamente por este não se estruturar
a partir de princípios éticos nem conter em seu horizonte de ação
qualquer objetivo social. No início dos anos 1970, a revelação de
espionagem do diretório do partido Republicano por parte do governo
Nixon resultou na queda deste. Mas alguma coisa não permitiu ou não
forçou a queda de Blair nem de Bush nem de Obama. Por quê?
“Guerra ao terror”
Muito já se falou que o 11 de Setembro, se não foi obra
arquitetada pelos próprios falcões na Casa Branca, foi o motivo esperado
pelos EUA para uma nova investida militar, com o objetivo de abrir
mercados e consolidar sua geopolítica. Os EUA, através de Bush, se
declararam em guerra contra Osama bin Laden e, por extensão, contra o
terrorismo não estatal de certas forças da Ásia e do Oriente Médio.
Foi uma declaração unilateral contra uma organização, numa
curiosa assimetria, pois a guerra quente é sempre Estado contra Estado,
ou uma força dentro dele contra ele mesmo, como a da Secessão, por
exemplo. Mas servia aos propósitos de vender armas dos fabricantes
apoiadores da eleição de Bush, garantir o fornecimento maior e mais
barato de petróleo e realizar o avanço estratégico sobre uma região com
centenas de milhões de consumidores.
Nesse movimento, passaram por cima das determinações da ONU
e da recomendação dos países contrários à invasão, mataram milhares de
civis inocentes, destruíram parte da riqueza do país (para a
reconstrução com dinheiro a juros de banqueiros ocidentais e a
instalação de empresas dos aliados de seu governo), torturaram soldados
(que haviam elegido como “inimigos” sem ter recebido deles nenhuma
agressão), entre outras arbitrariedades. Numa só expressão: rasgaram as
leis no império de seus interesses. E a Inglaterra atrás. O 11 de
setembro serviu como o grande ponto de virada na democracia anglófila,
com o consequente avanço do terrorismo de Estado e a diminuição das
garantias individuais.
Que democracia?
Na democracia ateniense, as decisões tomadas na ágora por
um punhado de atenienses livres não levavam em conta a vontade nem as
condições da imensa maioria da população, pelo simples motivo de que
eram escravos ou mulheres. Ou seja, democracia de alguns para alguns.
Hoje, se quisermos falar no mesmo tom daqueles que fizeram e
ainda fazem a política, a realpolitik, deixando de lado todo traço
quixotesco de idealismo, os dois grandes modelos seriam as experiências
dos ingleses e dos norte-americanos, ou a democracia anglófila. São
séculos contínuos desse regime político. A Ásia, a América Latina e a
Central, a Oceania, a África, qual continente poderia exibir melhor
experiência para estudo? Não entrariam nem a Alemanha nazista, a Itália
fascista, a Espanha de Franco nem o Portugal salazarista. Ao falar em
bastiões da democracia nos referimos sempre a esses dois países, em que
pesem a experiência colonial inglesa tradicional e o modelo colonial
contemporâneo dos EUA.
Como podem as duas sociedades com a experiência mais larga
nesse regime assistir impassíveis a seus mandatários rasgarem as leis
das garantias individuais através de práticas totalitárias? Quando o
mundo assiste indiferente a essa escalada do terror concentrado de
Estados ocidentais, os partidários da realpolitik já podem estufar o
peito e dizer, como os generais da última ditadura brasileira: vivemos
numa democracia relativa.
O relativismo da democracia atual estaria caracterizado não
apenas por essa prática invasiva no âmbito privado e no público, mas
também por outra característica bem especial. Na época dos impérios, dos
reis absolutistas, das ditaduras e dos totalitarismos, a escolha do
mandatário do poder se deu pela força ou por acordos de camarilha, com o
aval dos sacerdotes, das igrejas e mesquitas, dos suseranos, líderes
provinciais, coronéis e apaniguados. Sem a participação do povo, a não
ser como massa de manobra, como exemplificam as revoluções burguesas e o
voto a cabresto. Mas as democracias relativas têm o seu requinte: o
sistema eleitoral. Aí está a pedra angular desse novo regime de império,
cuja índole colonial parece ainda não ter se esgotado.
No ambiente político atual, em que os compradores de votos
para reeleição e os mensalistas da governabilidade também agem
livremente para assegurar os seus privilégios e os de seus apoiadores na
sombra, podemos afirmar que a democracia age de baixo para cima apenas
para legitimar o exercício do poder. Mas, pelo que temos assistido nos
últimos anos, por aqui e sobretudo naquelas duas democracias seculares,
nem as eleições nem as leis são suficientes para obrigar a conduta dos
governantes.
À exceção de um Collor, que caiu muito mais por vontade do
Congresso do que pela voz das ruas (o povo outra vez feito massa de
manobra), os governantes nessas democracias relativas parecem garantir
com os votos a impunidade; nada de muito grave lhes ocorrerá até o fim
de seus mandatos. Democracia de baixo para cima é isso; de cima para
baixo: autocracias, oligarquias… O interesse do povo só é levado em
conta quando se traduz em consumo, quando pode garantir lucro financeiro
para as corporações e ganho político para os governos.
Mídia sem independência
Basta acompanhar o noticiário da grande imprensa. A
qualquer ameaça de restrição da liberdade de informar, com todo acerto,
chovem protestos. Mas esse não é o ponto nevrálgico. Ao contrário,
diríamos até que para os grandes órgãos de comunicação a defesa da
liberdade de expressão tem servido para uma estratégia cabotina de
encobrimento de outro dado real. É verdade que algumas decisões
judiciais, contra o bom senso e os dispositivos constitucionais, têm
cerceado o direito público à informação, em especial nos assuntos que
envolvem o Estado, seja na pessoa de seus servidores e governantes, seja
nas políticas imperiais de guerra ou de favorecimento econômico, como
foram os assaltos às economias atingidas pela crise de 2008. Crise aliás
provocada pelos agentes econômicos com a conivência dos governantes, em
especial do bastião liberalista Alan Greenspan, para quem muitos
queriam dar o Nobel de Economia…
O bom argumento, o da liberdade de expressão, tem no
entanto se prestado para a chamada grande mídia escamotear um valor que
nos parece tão ou mais importante: a independência da imprensa. Quando
ela se alinha de maneira acrítica com um candidato; quando sempre
amplifica as más notícias do governo de um determinado partido; quando
evita aprofundar assuntos polêmicos como os crimes ecológicos, a falta
de abertura para bancos asiáticos, a descriminalização da maconha, a
reforma agrária etc; quando evita qualquer apoio a políticas, valores e
esforços dos “pequenos” contra os valores hegemônicos do capitalismo;
quando retira de seu horizonte a “cultura” em favor de produtos
culturais meramente de consumo; quando evita escancarar condutas
socialmente nocivas de seus patrocinadores; quando suprime a crítica aos
políticos que apoiaram nas eleições passadas ou aos que ainda podem de
alguma forma lhes ser úteis no futuro; quando não defende maior abertura
de concessões para novos veículos de comunicação; quando se alinha e
dissemina a política agressiva de um governo que lhe favorece; quando
embarca em campanhas nacionalistas que servem para interesses de grandes
corporações ou do governo com o qual tem trocas vantajosas; quando
evita abordar os podres do grande concorrente ou até mesmo problemas
internos como demissões em massa de seus quadros; quando se alinha ou
silencia diante de um esforço de guerra injusta do Estado.
Quando a velha mídia, ao abandonar sua função primordial de
fiscalização e crítica aos governos e às sociedades, se alinha com o
poder em nome de lucros financeiros e de seu próprio empoderamento,
ocorre o que podemos chamar de falta de independência. Então cabe a
pergunta, sobretudo em sociedades de democracia relativa como são as
nossas: de que vale a liberdade de expressão para uma mídia sem
independência? Será que para esse tipo de jornalismo faz tanta falta
assim a liberdade de informar?
Menos mal que esse vazio crítico vem sendo ocupado por uma
mídia dissidente, através de publicações impressas, mas sobretudo
revistas e jornais online e blogs. São espaços sem grandes recursos
financeiros e logísticos, mas que têm aprofundado a reflexão dos temas
espinhosos que a grande imprensa oculta ou aborda de maneira
superficial. O multiculturalismo de nossa época, as tensões sociais, a
busca de alternativas ao capitalismo hegemônico, a crítica à própria
imprensa, a discussão inteligente têm encontrado grande e generosa
acolhida nessas “pequenas” mídias. Embora todos, grandes e pequenos,
defendam seus interesses, notamos nesses novos espaços maior liberdade
de expressão com mais independência. Não é por outro motivo que, volta e
meia, ouvimos algum arauto do poder advogar a regulamentação da
internet, o nosso pequeno grande reino da liberdade.
Poder na sombra
A conclusão inquietante de tudo isso é que já não importa
mais derrubar o governo. Quando Nixon caiu em virtude de sua espionagem
no Watergate, as corporações, em especial as financeiras (que recém
começariam, no início dos anos 1970, a criar o que hoje conhecemos por
mercado financeiro internacional), ainda não tinham atingido o grau de
maturidade e força que só foi possível pela desregulamentação dos
mercados e pela globalização.
Até aí, com a chave do cofre num bolso e as restrições
legais ao capital no outro bolso, o presidente de uma grande potência
como os EUA ainda não era apenas um mero agente de relações públicas. O
mundo vivia à véspera da criação dos eurodólares via City de Londres,
antes de Reagan e sua Guerra nas Estrelas e antes das privatizações de
Thatcher e do consenso de Washington com o Bush pai, mas já iniciara o
recuo das conquistas do Estado de bem-estar social. A acumulação de
capital transbordou do bolso, as regras rígidas foram flexibilizadas, as
corporações ganharam um gigantismo e um poder de corromper, impor e
rasgar códigos como nunca tinha sido imaginado e muito menos admitido
pelos políticos mais conservadores.
Hoje as corporações compram presidentes e ministros em
todos os continentes, compram governos inteiros na África, transformam
populações de países pobres em cobaias de suas experiências com remédios
e demais produtos farmacêuticos e alimentares, ainda ou sobretudo
quando esses produtos, com componentes cancerígenos, são proibidos em
seus países de origem.
Hoje essas corporações compram decisões judiciais, eliminam
advogados, jornalistas, funcionários do ministério público, juízes,
investigadores. Hoje elas indicam e demitem secretários de Estado,
elegem deputados, apontam governadores e senadores. Hoje elas decidem a
ocasião e a intensidade das crises, e ainda escolhem os bodes
expiatórios (as vítimas que devem ser chutadas para fora do mercado,
como o Lehman Brothers). Hoje esses agentes maquiam os balanços, driblam
os impostos ou forçam sua redução, elegem paraísos fiscais e, com a
conivência de seus congêneres financeiros, escolhem o melhor caminho
para escapar da malha fina. E ainda compram o silêncio e até mesmo a
conivência da grande imprensa corporativa, associada ao projeto comum de
garantir o lucro máximo.
Hoje o poder está na mão dessas corporações, já não vale
mais a pena forçar a queda de um governo, ainda mais se esse governo,
além de corrupto e corruptor, está ali justamente para fazer o jogo que
lhes interessa. Máfia? Teoria da Conspiração? Cada um escolha o nome que
menos perturbe o seu sono, mas a verdade parece uma só: tenham o nome
que tiver, são essas feras que, na sombra, governam muitos de nossos
caminhos e decidem afinal a música que deve tocar.
Até quando será assim, se os movimentos sociais serão
capazes de trocar o disco ao invés de dançar sempre conforme a música,
não sabemos. Mas que não vivemos num mundo plenamente democrático, disso
já não resta a menor dúvida. E com o requinte das eleições (pois dessa
válvula de escape, reguladora e legitimadora do sistema econômico, nem
os donos do poder querem abrir mão) não precisam mais de césares,
imperadores, reis, czares. Nem mesmo de gente como Stálin, Hitler,
Mussolini, Roosevelt, Getúlio, Perón & Cia., porque o
enfraquecimento dos Estados nacionais (entenda-se: os Estados
periféricos) e a representação política de fancaria realizam o trabalho
sujo de aplainar o caminho para o avanço das corporações.
Não nos iludamos, esse tipo de gente nunca gostou de
democracia, e por uma razão muito simples: não gostam de povo, a não ser
como massa consumidora e/ou de manobra. Será uma ditadura, um
totalitarismo, essa democracia consentida e relativa? Em todo caso, não
cheirará melhor do que hoje. Outro requinte: terá a sua imprensa livre…
Será que voltarão fantasmas como socialismo, comunismo,
revolução, ideologia, Estado forte, intelectuais orgânicos, luddismo…?
Ou será que as sociedades, organizadas em torno de valores como
cooperativismo, solidariedade, compartilhamento e uma distribuição
melhor da riqueza humana, tudo interligado a uma ética ecológica,
conseguirão encontrar melhores alternativas a esse estado de coisas?
Quanto à intimidação no The Guardian, foi para inglês ver… Quer dizer, foi para americano ver. O episódio na verdade é uma piada no tom do velho humour
britânico, e ilustra o juízo que os ingleses fazem dos
norte-americanos. Quem, em pleno século XXI, acreditaria numa pantomima
dessas. O GCHQ sabe que os seus compatriotas desconfiam que os dados
procurados pela inteligência secreta não terminam ali, no disco rígido
nem no pendrive, mas já correm feito vírus por outros sistemas da
cibercultura.
A piada é que eles acham que os americanos não sabem disso…
* Marcelo Degrazia é escritor, autor de A Noite dos Jaquetas-Pretas e do blogue Concerto de Letras.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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