PICICA: "A
multidão jogou na cara do poder o desaparecimento do favelado Amarildo; a
chacina dos pobres da Rocinha, do Vidigal, da Maré, do Jacarezinho e tantas, a
chacina do dia a dia, normalizada; a regulação mafiosa do transporte urbano, da
saúde pública, da educação; o genocídio dos índios, a vampirização do futebol e
sua alegria, dentre outros muitos crimes contra o comum da cidade."
Desutopia das ruas
24/09/2013
Por Fabrício Toledo
Por Fabrício Toledo
Por Fabrício
Toledo
–
Os ventos
da democracia sopram desde muito tempo. Eles parecem mais fortes desde junho de
2013, quando irrompeu um ciclo de insurgências no país todo. “Jornadas de
junho” é um dos nomes dele. Um período curto do calendário, um tempo imenso se
abrindo. Foi principalmente no Rio de Janeiro que o ciclo encontrou a sua
expressão mais quente e contínua. Pelo centro da cidade (17J e 20J), a multidão
explodiu a verdade sobre o poder: a potência da cidade está nos corpos da
multidão.
A
multidão jogou na cara do poder o desaparecimento do favelado Amarildo; a
chacina dos pobres da Rocinha, do Vidigal, da Maré, do Jacarezinho e tantas, a
chacina do dia a dia, normalizada; a regulação mafiosa do transporte urbano, da
saúde pública, da educação; o genocídio dos índios, a vampirização do futebol e
sua alegria, dentre outros muitos crimes contra o comum da cidade.
A
indignação reuniu massa crítica e saiu do controle. Os indignados estavam
repletos de dignidade, dispostos a não renunciá-la diante dos crimes do poder.
Não a dignidade abstrata dos princípios universais, de um homem apartado do
processo histórico, livre e igualitário apenas como ideal, mas a dignidade
material das lutas. A dignidade que se conquista, apesar da dor, do sofrimento,
da escassez forjada e da miséria imposta de cima. Aquela que tem a sua
história, sua geografia de afetos, e que é sempre uma história menor,
forjada nas lutas das minorias. É a luta material e concreta, com nomes, datas,
sangue e alegria. Essa vibração tensionada em todas as minorias do mundo e seus
territórios precários; do migrante nordestino que se torna operário,
sindicalista e presidente do Brasil, até as jovens que escancaram os seios
fazendo da libido (a Marcha das Vadias) um manifesto em meio a peregrinos
católicos (a “Xota-M-Xota” no meio da Jornada Mundial da Juventude). Se a
religião é momento simultaneamente de miséria e de protesto, como dizia Marx, é
aí que essa marcha pôde resgatar a santidade dos corpos, enquanto veículos de
transfiguração do sofrimento e da morte. Foi essa plenitude de dignidades, uma
dignidade que se faz, e cujo direito só merece quem arrisca, que encorajou a
reocupação da Aldeia Maracanã, a batalha da ALERJ e da Presidente Vargas, as duas
ocupações diante da casa do Governador (Ocupa Cabral), as tantas assembleias,
desafios e pequenas insurgências em lugares que sequer podemos imaginar, porque
são tantos, tudo isso! – e tudo isso nunca será esquecido – que fez reduzir o
preço da passagem. Os famosos vinte centavos.
A luta é
por libertação, justiça e democracia, como já foi antes e será. A história,
afinal, é sempre a história das lutas. História da potência. E isso os jovens
inscrevem nas pequenas pedras atiradas contra a história do presente. Hoje, a
democracia se faz lutando pela livre circulação, incluindo a melhoria das
condições dos transportes públicos e o fim das tarifas abusivas. A complexidade
desta jornada – que não se resume ao mês de junho, que não começou aqui no
Brasil, não começou agora em 2013 e que não parece ter tempo para acabar – nos
convida à paciência para perscrutar os pequenos movimentos subterrâneos,
discernir as vozes entre os gritos, e compreender os pequenos sussurros. Como
diz Michel Foucault[1], espreitando por baixo
da história o que a rompe e agita. E vigiar por trás da política o que deve
incondicionalmente limitá-la.
Nestes
termos, as insurgências nas cidades brasileiras não carecem de pautas, como se
tornou lugar comum acusar; e não se resumem a uma suposta violência dos
confrontos com a polícia. As insurgências estão prenhes de pedidos, lutas e
desejos. Trata-se mesmo de demarcar o limite do intolerável, berrar a
indignação. Lutar por “melhores condições de trabalho”, o que implica, agora,
no tempo da cidadania-produção, trabalho dos direitos, em distribuição
das riquezas (imateriais e materiais, certamente) produzidas em comum. As lutas
implicam agora em melhores condições dos serviços públicos, incluindo
transporte, mas também moradia, lazer, conexões, etc. A greve nas fábricas ou
nos serviços dá lugar à paralisação de toda a produção urbana. E se os jovens
pretendem a paralisação do trânsito, a ocupação dos espaços políticos
institucionais, a depredação dos símbolos mais evidentes da expropriação, é
porque estas são as formas estratégicas de sabotar o complexo produtivo
inteiro.
E quanto
ao futuro das insurgências? A qual destino nos levam as jornadas? O que fazer
depois do inverno? Desde os primeiros dias havia já havia certa apreensão
quanto ao futuro, uma angústia quanto à possibilidade real e concreta de
mudanças. Há também um indisfarçável pessimismo, resultado talvez de inúmeras
desilusões com promessas não cumpridas e esperanças frustradas. Pessimismo que
é sobretudo fruto do inevitável hábito de conceber o futuro a partir do medo ou
como utopia. Indagar sobre o futuro é inevitável; mas deve ser inevitável
também encontrar desde já as novas brechas para a produção constituinte.
Devir-esquerda, devir-revolução. Revolução permanente. “Onde será nosso próximo
encontro?”, parece a pergunta mais condizente com o ritmo deste tempo.
Apressar
o futuro não para que algo aconteça logo, mas para investir o próprio desejo e
assim constituir o tempo. E conjurar qualquer utopia. A definição de nosso
futuro, ou melhor, de nosso investimento no futuro e no futuro do poder
constituinte não é encontrada em seu êxito, mas pelo esforço efetivo de tentar
sempre um novo êxito e, neste esforço, a produção de uma subjetividade, a
subjetividade da criação. A marcha do poder constituinte, em vez de acumulação
quantitativa, consiste num percurso e numa ação subjetiva. É a história daquilo
que Spinoza chamaria de paixão constituinte da multitudo[2].
Fabrício
Toledo é
advogado, trabalha com refugiados e participa da Rede Universidade Nômade.
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[1] “É inútil Revoltar-se?, in FOUCAULT, Michel. Ditos
e Escritos V. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.
Divulgue na rede
Fonte: Universidade Nômade
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