PICICA: "Na
Introdução ao Para a Crítica
da Economia Política, Marx pontua acertadamente que a ideia de uma
sociedade de indivíduos isolados não passa de uma “robinsonada”, de um mito ao
qual a ideologia burguesa confia a verdade do modo de ser da sociedade capitalista
a um pretenso e conveniente estado natural. Pois se é natural, como se poderia
querer modificá-lo sem que com isso a própria natureza humana em certo sentido
padecesse? Marx observa então que do ponto de vista histórico se dá justo o
inverso: quanto mais se recua no tempo, mais há a dependência do indivíduo em
relação à sua comunidade. Mais, ainda: este chega ser mera parte da comunidade
– e o indivíduo mesmo, como tal em sua (pretensa) independência com relação à
sociedade, é uma produção tipicamente capitalista. Mas ela mesma é uma produção
ambígua: a comunidade continua sempre aí, como o lugar desde onde o indivíduo
“independente” surge, e do qual ele permanece dependendo em sua independência."
Nós e os gregos
Nós e os gregos:
uma primeira aproximação
Umas das
diferenças, se não a diferença fundamental entre gregos e modernos do ponto de
vista político existencial me parece ser essa: para os gregos o próprio, o
familiar é compreendido em termos de comum e se realiza a partir do comum.
Assim, o que para nós seria o “privado” é antes uma subtração ao “público” do
que um âmbito originário a partir do qual este se constituiria. Mais, ainda:
cada um só vem a ser o que é enquanto e como parte da comunidade, enquanto e na
medida em que participa propriamente e originariamente do comum. Não é mais ou
menos nesse sentido que precisam ser compreendidas as páginas de Aristóteles
que visam explicar o sentido de zóon
politikón – o ser vivo cuja
vida é o comum? Não é nesse sentido que precisa ser pensado o comunismo
platônico, como a tentativa de se fazer maximamente coincidentes o próprio e o
comum, mas a partir deste?
Com efeito,
na República, é como parte
da pólis boa e reta que os guardiães e, quiçá,
todos chegariam compreender o “meu” como o prazer e a dor do todo. Não se trata
de compreender-me primeiro como indivíduo e, em seguida, por simpatia ou
compaixão ou o que quer que seja “transferir-me para” ou “compreender” a dor do
outro como minha. Trata-se, inversamente, de compreender-me primordialmente
como sentido de “meu” o comum do qual cada um participa, antes de ser um
indivíduo “separado” (se é que chega a ser em algum momento, no sentido
moderno). Nesse sentido, talvez mesmo falar de “cada um” seja enganoso e
precisaríamos de uma outra maneira para pensar esse “sujeito” originariamente
não privado, sem interioridade, puro encontro de relações, cuja separação em
relação aos outros se cumpriria, na cidade reta e boa, tão só por algo que se
subtrai a essa comunidade – o corpo. Assim compreendido, o corpo soa como o que
resiste a ser comum (ou cuja comunidade depende da decisão de uma instância
familiar, não comum, prévia).
Será que
isso sugere que nem a alma – o lugar próprio do privado e do interior, pelo
menos desde Descartes, mas talvez desde de Agostinho ou mesmo antes – seria
algo que se esquiva ao comum? Se o que se tem de comum e dito como “meu” aí são
os prazeres, dores, experiências e o lugar destes (ou ao menos dos dois
primeiros), como sugere o livro IX da República,
são a alma, então temos razões para formular a coisa nessa direção. Um outro
sentido para a ideia de Aristóteles de que a alma é em certo sentido todas as
coisas? Por outro lado, o mito de Er já parece sugerir que a alma é algo da
ordem do individual, quiçá do singular. (De maneira análoga, a proposição de
que o comum é o originário entre os gregos (os gregos que analiso aqui, ao
menos) parece ser mitigada pelo princípio, presente na República, de que todos são por
natureza diversos, cada um para um fazer que lhe é próprio. Ora, esse princípio
estruturador da comunidade só vem à tona na medida em que os seres humanos são
originalmente não autárquicos, “heteráquicos”: são no modo da carência do outro
enquanto princípio estruturador. Daí (das várias faces dessa necessidade de
comum e em resposta a ela) surge a diferença.)
Note-se de
passagem que o problema que Platão pretende resolver nesse ponto é o da unidade
da pólis, compreendida
como o maior bem desta última. E Platão o resolve por uma mudança na compreensão de certas
palavras fundamentais: “meu”, “minha”, cujo sentido passa a ser o comum. Para
nós, isso parece lembrar que a política é (sobretudo) uma questão de lógos ou, em uma formulação (talvez) mais
provocativa: é sempre uma disputa semântica. Para corroborá-lo, talvez baste
lembrar que a famosa definição de Aristóteles evocada mais acima, do homem como zóon politikón aparece, na Política, a poucas linhas de
distância de outra famosa definição do que é próprio ao humano: o ser humano é
o ser vivo que tem lógos – definição que, como se sabe, com
muitas mediações, vai chegar a ser traduzida por (fico tentado a dizer
“transubstanciada em”) “animal racional”. Ou basta lembrar que (quase) todos os
lados da luta política contemporânea reivindicam para si a palavra, e uma
compreensão de “democracia” – no campo da esquerda, o Zizek talvez seja uma
exceção, mas certamente ambígua; deixo de lado a direita crescente que já se
sente encorajada a falar contra a democracia.
Bem entendida,
essa ideia não quer deixar de lado a importância fundamental das condições
materiais da existência, da divisão de classes, das difusas micro e
macro-relações de poder presentes em toda comunidade. Apenas chamo a atenção
para o fato de que isso vem a luz e se resolve no âmbito do discurso, seja na
publicidade das academias, dos parlamentos e dos diversos meios de comunicação,
seja nos burburinhos de corredores, gabinetes e outros âmbitos “(mais)
privados” – seja, por fim, no silêncio mais ou menos imposto pela violência que
é a falta de abertura e acesso às discussões públicas, escancarada nas
ditaduras, mas presente de modo por vezes muito mais pérfido, porque
disfarçado, nas autodenominadas democracias.
Mas se para
os gregos é o comum o âmbito originário, “natural” a partir do qual cada um
pode se realizar como quem é – de modo que no comunismo de Platão o “meu” é, e
precisa ser, fundamentalmente o comum –, nos modernos a condição parece se
inverter: o indivíduo é o originário, o natural e a partir dele se constitui,
pela construção “artificial” de pactos e contratos, a comunidade. Hobbes e
Locke parecem ir claramente nessa direção; Rousseau em certos sentido também,
se considerarmos que o idílico comunismo originário não é o ponto de partida da
sociedade moderna, mas sim um paraíso perdido que definhou na sociedade marcada
pelo conflito entre indivíduos, causado pela propriedade privada e pela
consequente desigualdade social – e é esta última sociedade o ponto de partida.
Nesse sentido, as instituições e o estabelecimento de uma comunidade tende a
aparecer não como condição para o vir a ser livre e propriamente si mesmo, mas
como limite necessário a preservar direitos naturais (quase que) pré-sociais. O
outro é limite, possível impedimento ao desenvolvimento do eu privado, da
interioridade, antes de ser o lugar desde o qual, como que “descentradamente”
em princípio, chego à constituição incessante de uma singularidade que jamais
se subtrai aquele comum, modulando-se justamente como “nó” (corporal?) deste.
Na
Introdução ao Para a Crítica
da Economia Política, Marx pontua acertadamente que a ideia de uma
sociedade de indivíduos isolados não passa de uma “robinsonada”, de um mito ao
qual a ideologia burguesa confia a verdade do modo de ser da sociedade capitalista
a um pretenso e conveniente estado natural. Pois se é natural, como se poderia
querer modificá-lo sem que com isso a própria natureza humana em certo sentido
padecesse? Marx observa então que do ponto de vista histórico se dá justo o
inverso: quanto mais se recua no tempo, mais há a dependência do indivíduo em
relação à sua comunidade. Mais, ainda: este chega ser mera parte da comunidade
– e o indivíduo mesmo, como tal em sua (pretensa) independência com relação à
sociedade, é uma produção tipicamente capitalista. Mas ela mesma é uma produção
ambígua: a comunidade continua sempre aí, como o lugar desde onde o indivíduo
“independente” surge, e do qual ele permanece dependendo em sua independência.
Em outros
termos, o indivíduo só pode se compreender como tendo uma independência e uma
liberdade abstratas em uma sociedade em que os donos do capital são ou devem
ser livres para investi-lo onde bem entenderem (porque a sociedade e o Estado
propiciam essa liberdade) e os sem capital são “livres” para venderem o que tem
a sua força de trabalho – e não mais são propriedade direta de outro ser
humano. Nesse sentido, o capitalismo é o modo de produção em que todos em algum
sentido são proprietários e ninguém, nenhum ser humano seria propriedade de
outro – todos seriam “independentes”, independência que se daria em termos de
venda do que se tem em no mercado. O comum aí é, antes de mais nada, esse
mercado. Neste, em última instância, a comunidade entre as pessoas (e as
coisas) se faz pela abstração daquilo que elas têm de próprias e sua redução a
uma quantidade, a um equivalente contável – expresso, em última instância, em
dinheiro. Mas sabemos que diferenças fundamentais e operantes nesse sistema
ficam de fora nessa sua autocompreensão abstrata – dentre elas, e não por
último, o fato de que há proprietários de meios de produção e aqueles que só
têm a força de trabalho, de que essa desigualdade é operativa no abstrato
mercado onde todos são vendedores, etc.
Bem
compreendido, todo esse processo que reproduzo em linhas bastante gerais em
nada desmente a ideia de que o moderno se autocompreende a partir de uma precedência do
indivíduo. Isso significa que mesmo se aceitarmos essa explicação da gênese
socioeconômica do modo como emerge a compreensão (ideológica) da relação
indivíduo-sociedade na modernidade, ainda assim essa compreensão continua
operando. A sugestão de Marx é a de que isso se dá porque o próprio modo de
produção que responde por essa compreensão continua de pé. Isso parece indicar
que o modo como a gente se compreende (e opera em meio a uma compreensão)
ultrapassa as nossas formulações explícitas disso (está aí (também) o inconsciente?). E se, em todo agir, há um compreender, um
tomar as coisas em um sentido (é esse o grande Outro?), então
contra o capitalismo e pelo comunismo segue sendo uma luta semântica – uma luta
para que o mundo ganhe, estruturalmente, um outro sentido.
Para pensar
esse sentido outro, talvez não seja uma tarefa inútil sempre voltar aos gregos
– e medir a nossa proximidade e a nossa distância com relação a eles. Para isso,
é preciso, quiçá, não perder de vista que o sentido de "comum" e de
"próprio/privado/individual" não é o mesmo em cada
caso – na contemporaneidade-modernidade (suposto que ainda estamos em
certa medida nela) e na antiguidade grega - e que essa diferença foi apenas
esboçada mais acima, se isso.
Por outro lado ainda, que o comum seja o singular, que o comunismo é a abertura do lugar para além da prisão abstrata das identidades gerais e das diferenças meramente particulares (que no fundo são o mesmo) e que, por fim, se possa aceder a uma compreensão fora dos marcos tradicionais da cognição metafísica e sobretudo científica, talvez possa ser vislumbrado com clareza se nos voltarmos, sem preconceitos religiosos, para outra face da nossa origem: o sentido do advento do Cristo.
Fonte: Blog do Antífon
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