setembro 18, 2013

"Nós e os gregos" (Blog do Antífon)

PICICA: "Na Introdução ao Para a Crítica da Economia Política, Marx pontua acertadamente que a ideia de uma sociedade de indivíduos isolados não passa de uma “robinsonada”, de um mito ao qual a ideologia burguesa confia a verdade do modo de ser da sociedade capitalista a um pretenso e conveniente estado natural. Pois se é natural, como se poderia querer modificá-lo sem que com isso a própria natureza humana em certo sentido padecesse? Marx observa então que do ponto de vista histórico se dá justo o inverso: quanto mais se recua no tempo, mais há a dependência do indivíduo em relação à sua comunidade. Mais, ainda: este chega ser mera parte da comunidade – e o indivíduo mesmo, como tal em sua (pretensa) independência com relação à sociedade, é uma produção tipicamente capitalista. Mas ela mesma é uma produção ambígua: a comunidade continua sempre aí, como o lugar desde onde o indivíduo “independente” surge, e do qual ele permanece dependendo em sua independência."

Nós e os gregos


Nós e os gregos: uma primeira aproximação

Umas das diferenças, se não a diferença fundamental entre gregos e modernos do ponto de vista político existencial me parece ser essa: para os gregos o próprio, o familiar é compreendido em termos de comum e se realiza a partir do comum. Assim, o que para nós seria o “privado” é antes uma subtração ao “público” do que um âmbito originário a partir do qual este se constituiria. Mais, ainda: cada um só vem a ser o que é enquanto e como parte da comunidade, enquanto e na medida em que participa propriamente e originariamente do comum. Não é mais ou menos nesse sentido que precisam ser compreendidas as páginas de Aristóteles que visam explicar o sentido de zóon politikón – o ser vivo cuja vida é o comum? Não é nesse sentido que precisa ser pensado o comunismo platônico, como a tentativa de se fazer maximamente coincidentes o próprio e o comum, mas a partir deste?

Com efeito, na República, é como parte da pólis boa e reta que os guardiães e, quiçá, todos chegariam compreender o “meu” como o prazer e a dor do todo. Não se trata de compreender-me primeiro como indivíduo e, em seguida, por simpatia ou compaixão ou o que quer que seja “transferir-me para” ou “compreender” a dor do outro como minha. Trata-se, inversamente, de compreender-me primordialmente como sentido de “meu” o comum do qual cada um participa, antes de ser um indivíduo “separado” (se é que chega a ser em algum momento, no sentido moderno). Nesse sentido, talvez mesmo falar de “cada um” seja enganoso e precisaríamos de uma outra maneira para pensar esse “sujeito” originariamente não privado, sem interioridade, puro encontro de relações, cuja separação em relação aos outros se cumpriria, na cidade reta e boa, tão só por algo que se subtrai a essa comunidade – o corpo. Assim compreendido, o corpo soa como o que resiste a ser comum (ou cuja comunidade depende da decisão de uma instância familiar, não comum, prévia).

Será que isso sugere que nem a alma – o lugar próprio do privado e do interior, pelo menos desde Descartes, mas talvez desde de Agostinho ou mesmo antes – seria algo que se esquiva ao comum? Se o que se tem de comum e dito como “meu” aí são os prazeres, dores, experiências e o lugar destes (ou ao menos dos dois primeiros), como sugere o livro IX da República, são a alma, então temos razões para formular a coisa nessa direção. Um outro sentido para a ideia de Aristóteles de que a alma é em certo sentido todas as coisas? Por outro lado, o mito de Er já parece sugerir que a alma é algo da ordem do individual, quiçá do singular. (De maneira análoga, a proposição de que o comum é o originário entre os gregos (os gregos que analiso aqui, ao menos) parece ser mitigada pelo princípio, presente na República, de que todos são por natureza diversos, cada um para um fazer que lhe é próprio. Ora, esse princípio estruturador da comunidade só vem à tona na medida em que os seres humanos são originalmente não autárquicos, “heteráquicos”: são no modo da carência do outro enquanto princípio estruturador. Daí (das várias faces dessa necessidade de comum e em resposta a ela) surge a diferença.)

Note-se de passagem que o problema que Platão pretende resolver nesse ponto é o da unidade da pólis, compreendida como o maior bem desta última. E Platão o resolve por uma mudança na compreensão de certas palavras fundamentais: “meu”, “minha”, cujo sentido passa a ser o comum. Para nós, isso parece lembrar que a política é (sobretudo) uma questão de lógos ou, em uma formulação (talvez) mais provocativa: é sempre uma disputa semântica. Para corroborá-lo, talvez baste lembrar que a famosa definição de Aristóteles evocada mais acima, do homem como zóon politikón aparece, na Política, a poucas linhas de distância de outra famosa definição do que é próprio ao humano: o ser humano é o ser vivo que tem lógos – definição que, como se sabe, com muitas mediações, vai chegar a ser traduzida por (fico tentado a dizer “transubstanciada em”) “animal racional”. Ou basta lembrar que (quase) todos os lados da luta política contemporânea reivindicam para si a palavra, e uma compreensão de “democracia” – no campo da esquerda, o Zizek talvez seja uma exceção, mas certamente ambígua; deixo de lado a direita crescente que já se sente encorajada a falar contra a democracia.

Bem entendida, essa ideia não quer deixar de lado a importância fundamental das condições materiais da existência, da divisão de classes, das difusas micro e macro-relações de poder presentes em toda comunidade. Apenas chamo a atenção para o fato de que isso vem a luz e se resolve no âmbito do discurso, seja na publicidade das academias, dos parlamentos e dos diversos meios de comunicação, seja nos burburinhos de corredores, gabinetes e outros âmbitos “(mais) privados” – seja, por fim, no silêncio mais ou menos imposto pela violência que é a falta de abertura e acesso às discussões públicas, escancarada nas ditaduras, mas presente de modo por vezes muito mais pérfido, porque disfarçado, nas autodenominadas democracias.

Mas se para os gregos é o comum o âmbito originário, “natural” a partir do qual cada um pode se realizar como quem é – de modo que no comunismo de Platão o “meu” é, e precisa ser, fundamentalmente o comum –, nos modernos a condição parece se inverter: o indivíduo é o originário, o natural e a partir dele se constitui, pela construção “artificial” de pactos e contratos, a comunidade. Hobbes e Locke parecem ir claramente nessa direção; Rousseau em certos sentido também, se considerarmos que o idílico comunismo originário não é o ponto de partida da sociedade moderna, mas sim um paraíso perdido que definhou na sociedade marcada pelo conflito entre indivíduos, causado pela propriedade privada e pela consequente desigualdade social – e é esta última sociedade o ponto de partida. Nesse sentido, as instituições e o estabelecimento de uma comunidade tende a aparecer não como condição para o vir a ser livre e propriamente si mesmo, mas como limite necessário a preservar direitos naturais (quase que) pré-sociais. O outro é limite, possível impedimento ao desenvolvimento do eu privado, da interioridade, antes de ser o lugar desde o qual, como que “descentradamente” em princípio, chego à constituição incessante de uma singularidade que jamais se subtrai aquele comum, modulando-se justamente como “nó” (corporal?) deste.

Na Introdução ao Para a Crítica da Economia Política, Marx pontua acertadamente que a ideia de uma sociedade de indivíduos isolados não passa de uma “robinsonada”, de um mito ao qual a ideologia burguesa confia a verdade do modo de ser da sociedade capitalista a um pretenso e conveniente estado natural. Pois se é natural, como se poderia querer modificá-lo sem que com isso a própria natureza humana em certo sentido padecesse? Marx observa então que do ponto de vista histórico se dá justo o inverso: quanto mais se recua no tempo, mais há a dependência do indivíduo em relação à sua comunidade. Mais, ainda: este chega ser mera parte da comunidade – e o indivíduo mesmo, como tal em sua (pretensa) independência com relação à sociedade, é uma produção tipicamente capitalista. Mas ela mesma é uma produção ambígua: a comunidade continua sempre aí, como o lugar desde onde o indivíduo “independente” surge, e do qual ele permanece dependendo em sua independência.

Em outros termos, o indivíduo só pode se compreender como tendo uma independência e uma liberdade abstratas em uma sociedade em que os donos do capital são ou devem ser livres para investi-lo onde bem entenderem (porque a sociedade e o Estado propiciam essa liberdade) e os sem capital são “livres” para venderem o que tem a sua força de trabalho – e não mais são propriedade direta de outro ser humano. Nesse sentido, o capitalismo é o modo de produção em que todos em algum sentido são proprietários e ninguém, nenhum ser humano seria propriedade de outro – todos seriam “independentes”, independência que se daria em termos de venda do que se tem em no mercado. O comum aí é, antes de mais nada, esse mercado. Neste, em última instância, a comunidade entre as pessoas (e as coisas) se faz pela abstração daquilo que elas têm de próprias e sua redução a uma quantidade, a um equivalente contável – expresso, em última instância, em dinheiro. Mas sabemos que diferenças fundamentais e operantes nesse sistema ficam de fora nessa sua autocompreensão abstrata – dentre elas, e não por último, o fato de que há proprietários de meios de produção e aqueles que só têm a força de trabalho, de que essa desigualdade é operativa no abstrato mercado onde todos são vendedores, etc.

Bem compreendido, todo esse processo que reproduzo em linhas bastante gerais em nada desmente a ideia de que o moderno se autocompreende a partir de uma precedência do indivíduo. Isso significa que mesmo se aceitarmos essa explicação da gênese socioeconômica do modo como emerge a compreensão (ideológica) da relação indivíduo-sociedade na modernidade, ainda assim essa compreensão continua operando. A sugestão de Marx é a de que isso se dá porque o próprio modo de produção que responde por essa compreensão continua de pé. Isso parece indicar que o modo como a gente se compreende (e opera em meio a uma compreensão) ultrapassa as nossas formulações explícitas disso (está aí (também) o inconsciente?). E se, em todo agir, há um compreender, um tomar as coisas em um sentido (é esse o grande Outro?), então contra o capitalismo e pelo comunismo segue sendo uma luta semântica – uma luta para que o mundo ganhe, estruturalmente, um outro sentido. 

Para pensar esse sentido outro, talvez não seja uma tarefa inútil sempre voltar aos gregos – e medir a nossa proximidade e a nossa distância com relação a eles. Para isso, é preciso, quiçá, não perder de vista que o sentido de "comum" e de "próprio/privado/individual" não é o mesmo em cada caso – na contemporaneidade-modernidade (suposto que ainda estamos em certa medida nela) e na antiguidade grega - e que essa diferença foi apenas esboçada mais acima, se isso.

Assim, sem perder isso de vista, no que se refere à proximidade, a ideia de que no princípio é o comum (que não exclui, em sua estruturação e/ou efetivação, diferenças essenciais) talvez possa render bons frutos. Já no que tange à distância, talvez o contemporâneo introduza (claramente ao menos) uma questão que é preciso ver bem se e em que medida há no grego a questão do singular. Para isso, talvez seja preciso olhar para o possível ser singular que desde o qual poderia ser pensada a ideia em Platão (abstratamente como "ente separado" que encarna perfeitamente um universal), bem como, em Aristóteles, para o singular como referência negativa (no famoso "não se conhece o singular"), mas ainda assim como referência última do conhece (o que se conhece universalmente, se conhece do singular); ademais, é o mesmo Aristóteles que afirma no princípio da obra que veio a ser conhecida como Metafísica que a "experiência" é o conhecimento (sic) do singular.
Por outro lado ainda, que o comum seja o singular, que o comunismo é a abertura do lugar para além da prisão abstrata das identidades gerais e das diferenças meramente particulares (que no fundo são o mesmo) e que, por fim, se possa aceder a uma compreensão fora dos marcos tradicionais da cognição metafísica e sobretudo científica, talvez possa ser vislumbrado com clareza se nos voltarmos, sem preconceitos religiosos, para outra face da nossa origem: o sentido do advento do Cristo.

Fonte: Blog do Antífon

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