PICICA: "Para retomar acumulação, em tempos de crise, capital ensaia
estratégia particular. Inclui guerras, especulação financeira máxima e
criminalização das “populações excedentes”"
As sementes do fascismo, no século 21
Para retomar acumulação, em tempos de crise, capital ensaia estratégia particular. Inclui guerras, especulação financeira máxima e criminalização das “populações excedentes”
Por William I. Robinson | Tradução: Taís Gonzalez
Em Policing the Crisis,
clássico estudo conduzido, em 1978, pelo famoso socialista e teórico
cultural Stuart Hall e alguns colegas, os autores mostram que a
reestruturação do capitalismo, uma resposta à crise da década de 1970 – a
última grande crise mundial do capitalismo até a de 2008 –, produziu,
no Reino Unido e em todo o mundo, um “estado excepcional”. Significava
um processo de ruptura com os mecanismos de controle social, então
consensuais, e um autoritarismo crescente. Eles escreveram:
“Este é um momento
extremamente importante. Esgotado o repertório da hegemonia por meio do
consentimento, destaca-se cada vez mais a tendência ao uso rotineiro das
características mais repressivas do Estado. Aqui, o pêndulo no
exercício da hegemonia inclina-se, de forma decisiva. De um período em
que consentimento suplantava a coerção, passa-se a outro em que a
coerção volta a ser a forma natural e rotineira de assegurar o
consentimento. Esse deslocamento interno do pêndulo da hegemonia – de
consentimento para coerção – é uma resposta do Estado à crescente
polarização (real e imaginária) das forças de classes. É, exatamente
assim, que uma “crise de hegemonia” se expressa… O lento desenvolvimento
de um estado de coerção legítimo, o nascimento de uma sociedade de “lei
e ordem”… Todo teor da vida social e política é transformado (neste
momento). Um novo ambiente ideológico, claramente distinto, é urdido. (Policing the Crisis, pp. 320-321).”
Esta é também uma descrição exata da atual conjuntura.
Estamos testemunhando a transição de um estado de bem-estar social para
um estado de controle social, em todo o mundo. Estamos diante de uma
crise global sem precedentes, dada sua magnitude, seu alcance global, a
extensão da degradação ambiental e da deterioração social e a escala dos
meios de violência. Nós realmente estamos enfrentando uma crise da
humanidade, entramos em um período de grandes agitações, de mudanças e
incertezas. E esta crise é distinta dos episódios anteriores de crises
mundiais – a de 1930 ou a de 1970 – precisamente porque o capitalismo
mundial é fundamentalmente distinto, no início do século 21.
Entre as transformações qualitativas que ocorreram no
sistema capitalista, em face da globalização das últimas décadas, há
quatro que quero destacar. A primeira é a ascensão do capital
transnacional e a integração de todos os países dentro de um novo
sistema financeiro de produção globalizada. A segunda é o surgimento de
uma nova Classe Capitalista Transnacional (TCC, sigla em inglês para Transnational Capitalist Class).
Este grupo apoia-se em novos circuitos globais de acumulação, ao invés
dos velhos circuitos nacionais; A terceira transformação é a ascensão da
que eu chamo de aparatos estatais transnacionais. A quarta, o
aparecimento de novas relações de desigualdade e dominação na sociedade
global, incluindo a crescente importância das desigualdades sociais e de
classe, relacionadas aos desequilíbrios Norte-Sul.
A atual crise
A crise atual combina aspectos estruturais similares aos
das crises anteriores (dos anos 1970 e 1930) com características
únicas, a saber:
- O sistema está atingindo rapidamente os limites
ecológicos de sua produção. Já temos vários cientistas ambientais que
fazem referência ao “ponto de inflexão”. Esta dimensão não pode ser
subestimada;
- O magnitude brutal da violência e do controle social,
bem como a extensão do controle sobre os meios de comunicação globais e
de produção e circulação de símbolos e imagens. Neste sentido, nós somos
testemunhas de novos e assustadores sistemas de controle social e
repressão que precisamos analisar e aos quais devemos resistir;
- Estamos chegando ao limite da expansão do capitalismo –
ou seja, não há mais novos territórios significativos a serem
integrados ao sistema. A desruralização já é bem avançada; a
mercantilização do campo e dos espaços pré e não-capitalista são
intensas;
- O surgimento de uma população “excedente” que habita um “planeta de favelas“,
afastada da economia produtiva, jogada às margens e sujeita a
sofisticados sistemas de controle social e à destruição – a um ciclo
mortal de expropriação, exploração e exclusão.
- O descolamento entre economia globalizada e um sistema
de estados-nações baseado em uma política autoritária. Os aparatos
estatais transnacionais são incipientes. Eles não foram capazes de
desempenhar o papel que os estudiosos do sistema capitalista mundial
designam por “hegemon”, ou um estado-nação líder com poder e autoridade
suficientes para organizar e estabilizar o sistema.
Neste contexto, vamos rever como a atual crise se
desenvolveu. O capital transnacional emergente passou por uma grande
expansão nas décadas de 1980 e 1990. Isto envolveu o que poderíamos
chamar de hiper-acumulação, alcançada por meio de uma série de fatores.
Envolve a introdução de novas tecnologias, sobretudo da informatização e
da utilização da internet; políticas neoliberais que abriram o mundo
para o capital transnacional; novas modalidades de mobilização e
exploração da força de trabalho global, com novo ciclo de “acumulação
primitiva” maciça – a expulsão e deslocamento de centenas de milhões de
pessoas, especialmente das áreas rurais do terceiro mundo, que se
tornaram migrantes nacionais e transnacionais.
Mas no final da década de 1990, a estagnação instalou-se
na economia global. O sistema enfrentava novamente uma crise. A nítida
polarização social global e as desigualdades crescentes em todo o mundo
alimentavam o problema crônico da “sobre-acumulação”. Muito simples, as
desigualdades globais e o empobrecimento de uma ampla parcela da
sociedade significam que o capital transnacional não pode encontrar
saídas produtivas para descarregar as enormes quantidades de excedentes
que acumulou. No início do século 21, a Classe Capitalista Transnacional
procurou enfrentar a estagnação e a sobre-acumulação por meio de
diversos mecanismos.
Um desses mecanismos é o que chamo de acumulação
militarizada. Trata-se de fazer guerras e realizar intervenções que
desencadeiam ciclos de destruição e reconstrução, além de gerar enormes
lucros para um, cada vez maior, “complexo
financeiro-militar-prisional-industrial-de energia-e-segurança”. Estamos
vivendo agora em uma economia global de guerra, que vai além de
“guerras quentes” como a do Iraque, do Afeganistão ou da Síria. Outro
mecanismo é a invasão e saque dos orçamentos públicos. A Classe
Capitalista Transnacional usa seu poder financeiro para assumir o
controle das finanças do Estado e impor mais “austeridade” à maioria dos
trabalhadores. Emprega seu poder estrutural (por controlar a economia
global) para acelerar o desmantelamento do que ainda resta do salário
social e do estado de bem-estar. E o terceiro mecanismo é a frenética
especulação financeira em todo mundo – transformando a economia global
em um gigantesco cassino. A TCC descarregou trilhões de dólares em
especulação imobiliária, em alimentos, energia, mercados dos commodities
globais, em mercados de títulos em todo o mundo (ou seja, nos
orçamentos públicos e nas finanças estatais), e em outros tantos setores
e seus derivados.
A ameaça do “fascismo do século 21″
Como as forças políticas e sociais em todo o mundo estão
respondendo à crise? Ela resultou em uma rápida polarização na
sociedade global. Forças de direita e de esquerda estão em ascensão.
Entre outros, quero destacar três respostas para a crise que parecem
estar em disputa.
Uma delas é o que poderíamos chamar de “reformismo de
cima”. Este reformismo tem como finalidade estabilizar o sistema,
salvando-o de si mesmo e de alternativas mais radicais, vindas de baixo.
No entanto, nos anos que se seguiram ao colapso do sistema financeiro
global de 2008, parece que esses reformadores não tiveram a capacidade
(ou a vontade), de prevalecer sobre o poder do capital financeiro
transnacional. Uma segunda resposta é a resistência popular e de
esquerda, a partir de baixo. À medida em que conflitos sociais e
políticos eclodem em todo o mundo, parece surgir uma revolta global
organizada. Embora essa resistência pareça insurgir-se após 2008, ela
ocorre de modo bastante desigual, nos distintos países e regiões e
enfrenta muitos problemas e desafios.
A última resposta é a que eu chamo de fascismo do século
21. A ultra-direita é uma força emergente em muitos países. Em linhas
gerais, busca-se fundir o poder político reacionário com o capital
transnacional e organizar uma base de massas entre os setores
historicamente privilegiados da classe trabalhadora mundial – como os
trabalhadores brancos, no Norte do planeta e as velhas classes médias do
Sul. Elas vivem hoje sensação de insegurança agravada, temerosas de
mobilidade social decrescente, ou mudança de status. São tentadas ao
militarismo, masculinização extrema, homofobia, racismo e uma
mobilização racista contra bodes expiatórios — o que inclui a própria
busca de bodes expiatórios, como os imigrantes e, no Ocidente, os
muçulmanos. O fascismo do século 21 evoca ideologias mistificadoras,
muitas vezes envolvendo supremacia racial e ou cultural e xenofobia.
Abraçam um passado idealizado e mítico. A cultura neofascista banaliza e
exalta a guerra e a violência social. Procura gerar fascínio pela
dominação, ao retratá-la como heroica.
É importante salientar que a necessidade dos grupos
dominantes em todo o mundo, para garantir segurança e organizar o
controle social em massa sobre a população excedente e as forças
rebeldes, dá um impulso poderoso a projetos de fascismo neste século.
Simplificando, as imensas desigualdades estruturais da economia política
global não podem ser facilmente contidas por meio de mecanismos
consensuais de controle social – ou seja, por meio de dominação
hegemônica. Com isto em mente, vamos concluir com cinco pontos para o
debate futuro sobre sobre o capitalismo global policiante.
Um estado policial global
Primeiro, um capitalismo global policiante, por meio de
novas modalidades de controle social globalizado e repressão não é
apenas um projeto desse fascismo do século 21. Na verdade, ele está
sendo antecipado pelas elites e Estados liberais e reformistas. É um
imperativo estrutural do capitalismo globalizado, ligado aos imperativos
de manutenção do sistema.
Segundo, ao pensamento sobre o capitalismo global
policiante, devemos nos perguntar quem precisa ser policiado, no
sistema. Aqui, quero chamar a atenção para a crescente onda de mão de
obra excedente. Ao invés de incorporar os marginalizados, o sistema
tenta isolar e neutralizar suas reais ou potenciais rebeliões,
criminalizando o pobre e despossuído – com tendências, em certos casos,
para o genocídio. Os mecanismos de exclusão coerciva incluem a detenção
maciça em complexos industriais-prisionais (Prison-Industrial Complex
ou PIC, o termo em inglês é usado para atribuir a rápida expansão da
população carcerária dos EUA que influência as políticas das empresas de
privatização de cárceres e empresas que fornecem bens e serviços para
agências de prisão do governo); o policiamento generalizado, leis
repressivas anti-imigrantes; novas formas de manipulação de espaços,
para que tanto os condomínios murados quanto guetos sejam controlados
por verdadeiros exércitos de segurança privada e vigilância de alta
tecnologia; campanhas ideológicas voltadas à sedução; passividade por
meio do consumo e da fantasia.
Novas formas de controle social e modalidades de
dominação ideológicas cruzam barreiras. Por isso, pode haver um
neo-fascismo constitucional e normalizado, com instituições de
representação, partidos políticos e eleições formais, enquanto o sistema
político é rigidamente controlado pelo capital transnacional e seus
representantes. Qualquer divergência que ameace o sistema é
neutralizada, quando não liquidada.
Em terceiro lugar, devemos reconhecer que a
criminalização e o controle militarizado de estruturas marginalizadas,
como mecanismo de contenção preventiva, são altamente racializados. Isso
nos traz de volta para Stuart Hall e seus colegas. Os autores de Policing the Crisis destacaram
a natureza altamente racializada do policiamento e da criminalização de
comunidades negras e imigrantes no Reino Unido. Eles desconstruíram o
processo ideológico complexo de fabricar a criminalização dos oprimidos
como uma função do controle social, em momentos de crises de hegemonia.
Aqui vemos fortes paralelos entre o embrionário “Estado
excepcional” na década de 1970 e a atual deriva para tais Estados, nos
EUA e em outros países. O deslocamento das ansiedades sociais para o
crime e populações racialmente criminalizadas origina-se na crise dos
1970. Nos EUA, após as rebeliões de massa da década anterior, os grupos
dominantes promoveram campanhas culturais e ideológicas sistemáticas de
“lei e ordem” para legitimar a mudança de um Estado de bem-estar social
para um Estado de controle e a ascensão de um complexo
industrial-prisional.
“Lei e ordem” passou a significar a reconstrução e
reforço das hierarquias raciais, sociais e da ordem hegemônica, após as
rebeliões de 1960. Isso coincidiu com a reestruturação econômica global,
o neoliberalismo e a globalização capitalista da década de 70 e anos
posteriores. Agora, a criminalização ajuda a deslocar as ansiedades
sociais, decorrentes da crise estrutural da estabilidade, segurança e
organização social, geradas pela crise atual. Em seu chocante livro, The New Jim Crow, a jurista Michelle Alexander revela
que o encarceramento em massa, nos EUA, é “como um sistema
incrivelmente abrangente e bem disfarçado de controle social
racializado”.
De fato, a natureza racializada das “guerras contra as
drogas” hipócritas, dos encarceramentos em massa e das sentenças de
morte social proferidas é tão cruel que choca os sentidos. Em uma
abstração analítica, os encarceramentos em massa tomam lugar dos campos
de concentração. O sistema submete uma população excedente de milhões,
potencialmente rebeldes, a um aprisionamento sob violência estatal. As
chamadas (e declaradas) “guerra contra as drogas” e “guerra contra o
terrorismo”, bem como as não declaradas “guerra contra a juventude
pobre” e a “guerra contra os imigrantes”, precisam ser colocadas neste
contexto.
Em quarto lugar, em seu brilhante e ainda assustador estudo “Cities under Siege: The New Military Urbanism” ["Cidadas sitiadas: o novo Urbanismo Militar], Stephen Graham mostra
como estruturas e processos de controle controle social militarizado
constituem um projeto glogal que é, por definição, transnacional. É
importante notar que cada país enredou-se no policiamento da crise
global, assim como da economia global torna-se cada vez mais imbricada
com o negócio da guerra, violência social e coerção e repressão estatal
organizadas.
Quinto e último ponto: a militarização e a violência
organizada tonaram-se estratégias de acumulação, independente de
qualquer objetivo político, e aparecem como características estruturais
do novo capitalismo global. Guerras, sistemas de encarceramento em
massa, militarização das fronteiras, detenção de imigrantes,
desenvolvimento de sistemas de vigilância globais – e assim por diante –
são imensamente rentáveis para a economia corporativa global, para as
multinacionais, os banqueiros transnacionais, investidores e
especuladores. As forças populares de base devem estar conscientes da
ameaça que enfrentam, mas há necessidade de uma mudança fundamental no
poder e nas relações de propriedades do capitalismo global, se queremos
atingir a paz e a justiça.
_
As ideias deste ensaio serão desenvolvidas em detalhe no livro Global Capitalism, Global Crisis, a ser publicado em 2014 pela Cambridge University Press. Este texto baseia-se numa fala à Conferẽncia sobre Poder e Justiça, em Nova York
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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