PICICA: “Si vas para Chile, te ruego viajero, que digas a ella, que de amor me muero”
O DIA EM QUE FIZ UM CAFÉ PARA ALLENDE (SEGUIDO DE VERSIóN EN ESPAñOL UN CAFECITO PARA ALLENDE)
José Ribamar Bessa Freire
15/09/2013 - Diário do Amazonas
Eu estava lá, em janeiro de 1970, lá na avenida Bulnes, em Santiago de Chile, lá no meio da multidão, no comício da Unidad Popular, quando
o senador Salvador Allende, do Partido Socialista, foi proclamado o
candidato das esquerdas. No palanque, ao fundo, gigantesco painel branco
sobre o qual uns trinta artistas plásticos pintaram ali, na hora,
coletivamente, um mural colorido. Apenas dois oradores: Pablo Neruda, do
Partido Comunista, que em breve discurso renunciou a sua
pré-candidatura e em seguida Allende que falou já como candidato. O
resto foi festa.
Com alguns brasileiros exilados, entre eles o titiriteiro Euclides
Souza, o Dadá, que hoje mora em Curitiba, e o jornalista Tarcisio Lage
que virou holandês, eu estava lá, eu e os meus 22 anos. Entoamos com a
multidão: Se siente, se siente, Allende presidente! Ouvimos as palavras de ordem: Jota, Jota, Ce Ce: Juventudes Comunistas de Chile! Crianças cantavam em jogral: Pica el ajo, pica el ají, sale Allende, claro que sí!
Cantores e grupos musicais alegravam a festa: Isabel e Ángel Parra,
Victor Jara, Quilapayún, Intillimani e outros menos conhecidos.
A
avenida Bulnes fervilhava como um formigueiro humano, da Alameda até o
Parque Almagro, com gente pendurada nos galhos das árvores para ver
melhor o palanque. Bandeiras, cartazes, faixas. As pessoas, em pequenas
rodas, bailavam cueca e refalosa, rodopiando e girando
graciosamente um lenço na mão. Cantavam e festejavam o sonho de
construir uma pátria sem injustiça, sem miséria, sem exploração. Os
chilenos estavam enamorados da vida. Nutriam esperanças. Transbordavam
alegria. Santiago era uma festa. Os exilados brasileiros estávamos
ébrios de civismo (e do bom vinho chileno).
El cafecito
A
campanha eleitoral durou uns oito meses. Acompanhei parte dela de um
lugar privilegiado, ao lado do poeta Thiago de Mello, que até o golpe
militar de 1964 havia sido adido cultural do Brasil no Chile, onde
escreveu o Estatuto do Homem e conquistou a amizade de
intelectuais e artistas chilenos, entre eles Neruda, Violeta Parra,
Allende, o pintor Nemesio Antúnez - diretor do Museu Nacional de Belas
Artes, Isidora Aguirre - dramaturga e autora de La Pérgola de las flores, a atriz Inés Moreno e tantos outros intelectuais.
Os
chilenos, solidários, acolheram Thiago com carinho em seu exílio.
Isabel, uma das filhas de Allende - hoje senadora por Atacama - que
estava de férias em Valparaíso, cedeu seu apartamento de Santiago, em
uma torre no bairro La Providencia, para Thiago e Lurdinha que me
haviam perfilhado. Naquele verão, morei com eles dois meses. Num
domingo à tarde, acho que em fevereiro, toca a campainha. Abro a porta e
tomo um susto: diante de mim, em carne e osso, Salvador Allende,
acompanhado de Inés Moreno.
Eu, ali, em pé, diante dos dois, na soleira da porta. Allende - "El pije" - porte elegante, vestia sua tradicional guayabera
branca de linho, manga comprida, com discreto bordado nos quatro
bolsos. Inés Moreno, atriz e poeta, já era minha conhecida, pois residia
no mesmo prédio, em outro andar, e frequentava os saraus da casa de
Thiago. Era uma bela mulher, magra e espigada, aparentando uns quarenta e
poucos anos. Vinham visitar Thiago. Informei que o poeta tinha ido
passar o fim de semana em Viña del Mar. Eu estava sozinho. E de tão
espantado, nem sabia como agir.
Allende
em pé, na porta, e eu paralisado diante dele, bloqueando sua passagem.
Foi quando com fino humor, me perguntou se podia entrar na casa de sua
filha. Estava em plena campanha e havia decidido tirar uma folga naquela
tarde. Entraram. Conversamos sobre política, Chile, Brasil, literatura,
música e amenidades. Ele conhecia a bossa-nova e gostava de João
Gilberto. No meio da conversa, com um toque de ironia, perguntou:
- No hay café en casa de brasileño?
Com o maior prazer, passei, então, um café, al tirito, nomás,
como minha mãe me ensinou: jogando o pó dentro da água fervendo para
imediatamente coar num filtro de papel na falta de coador de pano.
Tomamos café os três, eu ali, de quase-penetra, intrometido num pedaço
da História, pegando uma carona naquele momento singular, olhos bem
abertos, apreendendo tudo e dando gracias a la vida por me haver dado tanto.
Chirimoya alegre
Inés recitou algo tocando violão, talvez um poema retirado do seu livro Mi mano en tu mano, do
qual não consigo me lembrar. Eu já conhecia seu talento de declamadora,
sua voz aveludada. Na primeira vez em que a ouvi, num jantar oferecido
por Thiago, ambos recitaram juntos, alternando vozes, o Romancero Gitano de Garcia Lorca. Um espetáculo! Naquela sala, cabia toda a Andaluzia. Irromperam os dois rios de Granada que "bajan de la nieve al trigo", o Guadalquivir "con sus barbas granates", as meninas mirando a lua, os gitanos, a guarda civil, os carabineiros com "sus negras capas ceñidas" e até o cadáver de Antoñito el Camborio.
"Ay, amor, que se fue por el aire!"
A tarde acabou, despedimo-nos de Inés que subiu para seu apartamento.
Com um gesto inesperado, Allende retribuiu o café me convidando a tomar
sorvete. Ele próprio dirigiu o carro, comigo no banco do carona, até uma
sorveteria da moda, no sopé da Cordilheira dos Andes, em Las Condes. Em
poucos meses, seria o presidente da República e três anos depois
morreria no Palácio La Moneda, resistindo ao golpe. Agora, estava ali,
sem qualquer segurança, nem mesmo um motorista.
Ocupamos uma mesa. Saboreamos sorvete de ‘chirimoya alegre’, o que me permitiu matar as saudades do Amazonas. A chirimoya
é irmã do nosso biribá e prima da graviola. Fica alegre quando sua
polpa é misturada com suco de laranja, um pouco de passas e nozes.
Alegres também estavam as pessoas que vinham até a mesa abraçar Allende,
embora Las Condes e o vizinho Vitacura fossem bairros de ricos, sede de embaixadas com luxuosas mansões. Aos que conheciam o poeta, ele me apresentava: “Un brasileño, amigo de Thiago”.
Eu
estava ali como Pilatos no Credo, mas consciente de estar vivendo
aquele momento ao lado de um homem bom, límpido, decente, de tanta
importância para a história dos povos humildes de nossa América. No
início de setembro, Allende era eleito e dois meses depois assumia a
presidência. O resto nós já sabemos.
Si vas para Chile
Dizem
que o moribundo, na hora da verdade, recorda momentos vitais de sua
existência. Suspeito que quando chegar minha vez, cenas que vivi no
Chile ocuparão boa parte do filme. Minha estadia durou menos de um ano,
mas foi um momento histórico muito intenso. Nos anos 1960-70, milhares
de brasileiros saíram do Brasil, muitos foram recebidos fraternalmente
pelos chilenos que compartilharam conosco casa, pão, vinho, música,
poesia, alegria, sonhos. Como foram generosos esses chilenos! Dormi em
casas de desconhecidos, que me acolheram como um parente querido.
Quando
finalmente deixei o Chile, na despedida Inés Moreno rasgou no meio um
bilhete de 1 (um) escudo chileno, que tinha no centro a figura de Arturo
Prat, um herói naval do século XIX. Ela ficou com a parte que continha o
Arturo e me deu a outra metade. Se alguém a procurasse com o Prat na
mão, significava que ia enviado por mim. Era mais um gesto de
solidariedade, de proteção, muito mais simbólico que prático.
Passei
pelo Chile vinte e cinco anos depois, em meados dos anos 90, quando
Thiago lá estava de volta como adido cultural e organizou um encontro
com Inés. Encontrei Inés, mas o Arturo não encontrou Prat, ambos
havíamos perdido nossas metades (o escudo já nem era mais a moeda do
Chile).
Tudo
isso lembrei agora nesta semana, ao acompanhar a cobertura da mídia
brasileira e internacional sobre a rememoração dos 40 anos do golpe
militar, quando Allende foi homenageado como merece. Com o coração na
mão, li o artigo La sombra de Inés Moreno escrito em 2003 pelo jornalista Luis Alberto Mansilla na revista Punto Final, noticiando a morte da atriz:
- Nos
últimos dias, ela já não podia falar. Comunicava-se escrevendo em
pedaços de papel que entregava às suas filhas. Um deles era uma citação
de Borges, que expressava suas últimas percepções: "toda pessoa que
viveu projeta uma sombra que nunca acaba".
Deixo aqui e no Diário do Amazonas a sombra de Salvador Allende e de Inés Moreno, com aroma de café e sabor de chirimoya alegre. “Si vas para Chile, te ruego viajero, que digas a ella, que de amor me muero”.
EL DIA EN QUE LE SERVÍ UN CAFECITO A ALLENDE
Era enero de 1970 y yo estaba allí, en la avenida Bulnes, Santiago de Chile, en medio de la multitud, en el mitin de la Unidad Popular, cuando
el senador Salvador Allende del Partido Socialista fue proclamado como
candidato de las izquierdas. Al fondo de la tribuna había un gigantesco
mural blanco en el que unos treinta artistas plásticos pintaron en aquel
momento, colectivamente, una obra de diversos colores. Solamente dos
oradores: Pablo Neruda, del Partido Comunista, que en breve discurso,
renunció a su pre-candidatura y en seguida Allende que se pronunció ya
como candidato. Después, todo fue fiesta.
Con algunos brasileños exilados, entre ellos el titiritero Euclides Souza, Dadá,
que hoy vive en Curitiba, y el periodista Tarcisio Lage, que se ha
vuelto holandés, estaba allí yo, con mis 22 años. Entonamos con la
multitud: Se siente, se siente, Allende presidente! Oímos las palabras de orden: Jota, Jota, Ce Ce: Juventudes Comunistas de Chile! Niños cantaban en coro: Pica el ajo, pica el ají, sale Allende, claro que sí!
Cantores y grupos musicales alegraban la fiesta: Isabel y Ángel Parra,
Victor Jara, Quilapayún, Intillimani y otros menos conocidos.
La Avenida Bulnes parecía un hormiguero humano, desde la Alameda
hasta el Parque Almagro, con gente colgada en los árboles para ver mejor
la tribuna. Banderas, afiches, carteles. Las personas, en pequeños
círculos, bailaban la cueca y la refalosa, flameando con
gracia el pañuelo en la mano. Cantaban y festejaban el sueño de
construir una patria sin injusticias, sin miseria, sin explotación. Los
chilenos estaban enamorados de la vida. Nutrían esperanzas.
Transbordaban alegría. Santiago era una fiesta. Los exilados brasileños
estábamos ebrios de civismo (y del buen vino chileno).
El cafecito
La campaña electoral duró unos ocho meses. La seguí desde un lugar
privilegiado, al lado del poeta Thiago de Mello, que hasta el golpe
militar de 1964 había sido agregado cultural de Brasil en Chile, donde
escribió el Estatuto do Homem. Cultivó la amistad de
intelectuales y artistas chilenos, entre ellos Neruda, Violeta Parra,
Allende, el pintor Nemesio Antúnez - director del Museu Nacional de
Bellas Artes, Isidora Aguirre - escritora y autora de La Pérgola de las flores, la actriz Inés Moreno y tantos otros intelectuales.
Los chilenos, solidários, acogieron Thiago con cariño en su
exílio. Isabel, una de las hijas de Allende - hoy senadora por Atacama -
que estaba de vacaciones en Valparaíso, dejó su departamento en una
torre del barrio de La Providencia, en Santiago, para Thiago y
Lurdinha, que me habían prohijado. En aquel verano, vivi con ellos dos
meses. Un domingo por la tarde, creo que en febrero, toca el timbre,
abro la puerta y me doy con la figura de Salvador Allende en persona,
acompañado de Inés Moreno.
Yo alli, de pie ante los dos, en el dintel de la puerta. Allende - "El pije" - porte elegante, vestía su tradicional guayabera
blanca de lino, manga larga, con discreto bordado en los cuatro
bolsillos. Inés Moreno, actriz y poetisa, que yo ya conocía, pues vivía
en otro piso del mismo edifício y solía ir a los saraos en la casa de
Thiago. Era una bella mujer, esbelta y espigada, aparentando unos
cuarenta y pocos años. Venían a visitar a Thiago. Les dije que el poeta
había ido a pasar el fin de semana a Viña del Mar. Yo estaba solo. Y de
tan aturdido, no sabía que hacer.
Allende de pie, en la puerta y yo, paralizado frente a él
impidiendo su pasaje. Fue cuando, con fino humor, me preguntó si podia
entrar a la casa de su hija. Estaba en plena campaña política y habia
decidido descansar esa tarde. Entraron. Conversamos sobre política,
Chile, Brasil, literatura, música y amenidades. Conocia bien la bossa-nova y le gustaba João Gilberto. Entonces, con un toque de ironía, preguntó:
- No hay café en casa de brasileño?
Con gran placer, preparé un café, al tirito, nomás,
como mi madre me enseñó: poniendo el café molido en el agua hirviendo
para inmediatamente pasarlo por un filtro de papel a falta de uno de
tela. Tomamos café los tres, yo alli, de entrometido en un
pedazo de la Historia, aprovechando de gorra aquel momento singular,
ojos bien abiertos, aprendiendo todo y dando gracias a la vida por haberme dado tanto.
Chirimoya alegre
Inés recitó algo al son de la guitarra, creo que un poema de su libro Mi mano en tu mano que
ahora no consigo recordar.Ya conocia su talento de declamadora, su voz
de terciopelo. La primera vez que la escuché, en una cena ofrecida por
Thiago, ambos recitaron juntos, alternando voces, el Romancero Gitano de Garcia Lorca. Un espectáculo! En la sala, cabía toda Andalucía. Irrumpieran los dos rios de Granada que "bajan de la nieve al trigo", el Guadalquivir "con sus barbas granates", las niñas mirando la luna, los gitanos, la guarda civil, los carabineros con "sus negras capas ceñidas" y hasta el cadáver de Antoñito el Camborio.
"Ay, amor, que se fue por el aire!" La tarde acabó, nos
despedimos de Inés que subió a su departamento. En un gesto inesperado,
Allende retribuyó el café invitándome a tomar un helado. Él mismo
condujo el coche, conmigo al lado, hasta una heladería de moda ubicada a
los pies de la Cordillera, en Las Condes. En pocos meses sería el
presidente de la República y tres años después muerto en el Palacio de
La Moneda, resistiendo al golpe. En ese momento, estaba alli, sin ningún
sistema de seguridad, ni siquiera un chofer.
Nos sentamos en una mesa. Saboreamos un helado de ‘chirimoya alegre’, lo que me permitió recordar el Amazonas. La chirimoya es hermana de nuestro biribá
y prima de la guanábana. Se alegra cuando su pulpa se mezcla con jugo
de naranja, un poco de pasas y nueces. Alegre también estaba la gente que se aproximaba para saludar a Allende, aunque Las Condes y el vecino Vitacura eran barrios de ricos, sedes de embajadas con mansiones lujosas. A los que conocían al poeta, me presentaba: “Un brasileño, amigo de Thiago”.
Yo estaba allí como Pilatos en el Credo, pero conciente de estar
viviendo aquel momento al lado de un hombre bueno, límpido, decente, de
tanta importancia para la historia de los pueblos humildes de nuestra
América. A comienzos de setiembre, Allende ganaba las elecciones y dos
meses después asumía la presidencia. Ya sabemos el resto.
Si vas para Chile
Dicen que el que va morir, a la hora de la verdad recuerda
momentos vitales de su existencia. Sospecho que cuando me toque, las
escenas que vivi en Chile ocuparán buena parte de la película. Mi
estadía duró menos de un año, pero fue un momento histórico muy intenso.
En los años 1960-70, miles de brasileños salieron de Brasil, muchos
fueron recibidos fraternalmente por los chilenos, que compartieron con
nosotros casa, pan, vino, música, poesía, alegría, sueños. Como fueron
generosos esos chilenos! Dormí en casas de desconocidos, que me
acogieron como si fuera de la família.
Cuando salí de Chile, en la despedida Inés Moreno rasgó em dos
partes un billete de 1 (un) escudo chileno, que tenia al medio la figura
de Arturo Prat, un héroe naval del siglo XIX. Ella se quedó con la
mitad que contenía Arturo y me dió la otra. Si alguien la buscara con el
Prat en la mano, significaba que iba de mi parte. Se trataba de un
gesto de solidariedade, de protección, mucho más simbólico que práctico.
Pasé por Chile veinte y cinco años después, a mediados de los 90,
cuando Thiago volvió a ser agregado cultural. Encontré entonces a Inés y
ambos habíamos perdido, ella, Arturo y yo, Prat (El escudo ya no era
más la moneda de Chile).
Todo eso me vino a la memoria esta semana al ver la cobertura de
la mídia brasileña e internacional sobre la rememoración de los 40 años
del golpe militar, cuando Allende recibió merecidos homenajes. Con el
corazón en la mano, leí el artículo La sombra de Inés Moreno escrito en 2003 por el periodista Luis Alberto Mansilla en la revista Punto Final, que daba la notícia de su muerte:
- En los últimos días ya no podía hablar. Se comunicaba con
papelitos que entregaba a sus hijas. Uno de ellos fue una cita de
Borges, que expresaba sus últimas percepciones: “Toda persona que ha
vivido proyecta una sombra que nunca acaba”.
Dejo aqui y en el Diário do Amazonas, la sombra de Salvador Allende y de Inés Moreno, con aroma de café y sabor de chirimoya alegre. “Si vas para Chile, te ruego viajero, que digas a ella, que de amor me muero”.
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