outubro 31, 2013

"Por que o senhor atirou em mim?", por Marcelo Castañeda

PICICA: "Seria demais esperar que os governos reagissem às manifestações de junho pela via do diálogo, no lugar daquela vidraça do consenso imaginado, que foi estilhaçada pela potência das águas. Esperava algo mais do que uma vidraça, talvez algo como uma lona flexível e transparente. Uma que desse conta de não se quebrar à primeira pedra, que acolhesse as demandas colocadas pelas manifestações, dando conta de lidar com as tensões em jogo nas diferentes expressões delas.

Mas esta postura dialógica do governo com a população não interessa aos empresários e corporações mediados por uma mídia oligopolista. Os interesses assumidos e recuos governamentais parecem não estar em questão. O verdadeiro diálogo dos governos se dá com os empresários e as apostas governamentais vão no sentido de reprimir em favor dos interesses mercadológicos que são tratados nesses diálogos. É como se o escudo de aço da repressão dos governos e a nuvem midiática estivessem a proteger esses privilegiados, colocando o estado a seu serviço."


Por que o senhor atirou em mim?

30/10/2013
Por Marcelo Castañeda,


Por Marcelo Castañeda, sociólogo e UniNômade
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Esta pergunta, feita por Douglas Rodrigues, 17 anos, ao policial que nele acertara um tiro fatal, mostra o estado das relações de poder que vigoram no Brasil há tempos, em especial na periferia. Depois que a vidraça se quebra após uma chuva forte não adianta colar os cacos. Resta providenciar outra “proteção”, pois as frestas vão permanecer vazando a água da chuva que deságua da multidão, incomodando. Essa chuva da multidão vai e vem, em uma dança que continua a molhar e resfriar o poder constituído.

Passaram quase cinco meses de insurgência da multidão, com maior potência no Rio de Janeiro, mas espalhada pelo país inteiro. Basta ver a recente semana de mobilização pelo passe livre em São Paulo, onde teve até agressão a um coronel da PM, como ato final e principal aperitivo para a degustação da mídia corporativa. A vidraça estilhaçada de um Brasil rumo ao desenvolvimento, sexta economia do mundo, com a emergência de uma “nova” classe média, deu lugar à repressão, algo como um escudo de aço, desses que o Batalhão de Choque usa para avançar contra os manifestantes. 

É com repressão que os governos, em seus diversos níveis, tentam estancar os múltiplos movimentos que constituem a multidão, ganhando corpo a partir de junho. Isso ficou claro nesses cinco meses. E os movimentos não cessam, fluem como água. Foi a forma violenta de lidar com questões sociais que tirou a vida de (mais) um jovem da periferia, entre tantos que se vão, desta vez em São Paulo. Amarildo até agora continua desaparecido. Mortos e desaparecidos. E os protestos que se seguiram na periferia de São Paulo ganharam destaque na mídia menos pela vida ceifada e pela violência policial, do que pelo fogo que queimava ônibus e caminhões e pelos saques de lojas. Mais do mesmo de uma narrativa sórdida da mídia. Contra ela, a democracia que estamos constituindo nas ruas. As favelas e periferias lidam com a violência policial desde a origem, bem como com aquela praticada por milícias e pelo narcotráfico. São populações que nascem e crescem em um estado de exceção, sob a sombra da brutalidade e do terror. E quando se manifestam, passam a engrossar o coro sórdido do vandalismo, entoado pelos veículos de mídia. Tem que reprimir, é o que se pode ler mil vezes como mensagem central.

Seria demais esperar que os governos reagissem às manifestações de junho pela via do diálogo, no lugar daquela vidraça do consenso imaginado, que foi estilhaçada pela potência das águas. Esperava algo mais do que uma vidraça, talvez algo como uma lona flexível e transparente. Uma que desse conta de não se quebrar à primeira pedra, que acolhesse as demandas colocadas pelas manifestações, dando conta de lidar com as tensões em jogo nas diferentes expressões delas.

Mas esta postura dialógica do governo com a população não interessa aos empresários e corporações mediados por uma mídia oligopolista. Os interesses assumidos e recuos governamentais parecem não estar em questão. O verdadeiro diálogo dos governos se dá com os empresários e as apostas governamentais vão no sentido de reprimir em favor dos interesses mercadológicos que são tratados nesses diálogos. É como se o escudo de aço da repressão dos governos e a nuvem midiática estivessem a proteger esses privilegiados, colocando o estado a seu serviço. 

Essa lamentável aposta em uma intensificação repressiva dos governos traz um desafio para os movimentos que, ao menos no Rio e em São Paulo, passaram a adotar rotineiramente uma tática de ação direta específica frente à violência policial. Esta tática é legítima, mas está em questão, da mesma forma que a violência policial não pode sair de foco. Mais preocupante se torna o cenário quando Dilma, pela sua conta no Twitter, declara apoio incondicional a esta violência, como fez no sábado (26/10), ao se solidarizar com o coronel agredido em São Paulo.

É hora de os movimentos mostrarem inteligência, flexibilidade e mostrar que não é sempre que a ação direta vai acontecer, em especial para não se tornar previsível, tornando-se um alvo fácil num momento extremamente perigoso para as liberdades de manifestação, tendo em vista os caminhos que a repressão vêm tomando no sentido de criminalizar os movimentos, mobilizando diversos aparatos legais e midiáticos. O momento é tenso. 

Dito isso, a revolta popular como resposta à morte de Douglas Rodrigues em São Paulo é legítima. Desde sempre, os moradores da periferia recebem a violência dos policiais. Trata-se de um processo de rotinização da violência. Muitos já nascem condenados. E, como domingo e segunda (27 e 28/10) em São Paulo, quando decidem reagir são (sobre)condenados pela mídia por atearem fogo em caminhões, ônibus e carros em uma rodovia. Foram 90 presos. Esperavam uma manifestação ordeira e pacífica de quem é violentado cotidianamente? As pessoas se indignam da forma que elas conseguem expressar, e não da forma que achamos que eles devem se expressar. E qual foi a solidariedade dos governantes em relação ao jovem de 17 anos que teve sua vida ceifada? Onde está o reconhecimento dos governantes das práticas violentas da PM? 

Vou ficar com o aspecto mais visível, tratando das duas faces da solidariedade da presidenta Dilma Rousseff em sua conta no Twitter, pois nenhuma nota oficial foi emitida.
1. Dilma deixa a entender que a morte de Douglas Rodrigues, 17 anos, foi causada por duas abstrações: a violência e a desigualdade. Mas não fala do sujeito desta violência, que é a polícia militar. Sua solidariedade não atribui qualquer responsabilidade ao fato. 

2. Ao contrário, quando o objeto de solidariedade é o coronel agredido, além de apoio incondicional no que for preciso, a mensagem de solidariedade abriu espaço para apontar uma tática como responsável pela agressão. Foram “os black blocs”, que embora não sejam sujeitos constituídos (por ser uma tática), se transformaram em responsáveis na visão da presidente.

Para o coronel uma solidariedade quase imediata, no dia seguinte, mereceu 6 tweets. Para Douglas, 4 tweets e um intervalo de 3 dias para pensar sobre a questão, para o devido cálculo eleitoral, a conversa com o marqueteiro de plantão e nada de apontar responsabilidade da violência policial. Nem um discurso oficial sobre a barbárie estatal que vem varrendo o país com intensidade de junho para cá, quando a repressão parece ter sido o caminho escolhido pelos governos. Parece que está tudo muito bem acordado. Nem uma palavra sobre o Amarildo e desaparecidos. É pouco. Ou talvez seja o que a sensibilidade e os acordos da presidenta permitem.

Triste democracia brasileira baseada no cálculo eleitoral e no marketing, cujas decisões são feitas em reuniões de gabinete em que os interesses econômicos, em primeiro plano, e eleitorais, em segundo, são os principais aspectos a serem considerados. O interesse público e o diálogo com a população são varridos para debaixo do tapete. Só que a multidão ainda está a solta e, apesar do escudo de aço, continua fluindo potente e a procurar brechas, nem que seja para enferrujá-lo até ele ceder.

Divulgue na rede

Fonte: Universidade Nômade

"da proliferação, ou turbulência das lutas", por Ricardo Gomes

PICICA: "Todos que tem ido para a rua ou que tem sido afetados por esta intensificação política-inventiva que acontece desde junho não estão mais nos lugares esperados. Os partidos ficaram nus em todo seu dirigismo patológico, os sindicatos perderam a pouca legitimidade que ainda tinham e os jovens das favelas nos dão lições em todas as manifestações. Não se trata de romantismo, nem de eleger um novo bom selvagem, ao contrário, trata-se de perceber como a selvageria construtiva, que conjuga desejo destrutivo, solidariedade e devir minoritário, se efetiva constantemente nas manifestações criando brechas reais e isso se dá majoritariamente por obras do esforço destes jovens."


da proliferação, ou turbulência das lutas

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Por Ricardo Gomes

Erra quem pensa que a esperada traição dos sindicatos irá enfraquecer as ruas. Erra porque não sabem que, antes de tudo, não foram os sindicatos que levaram as pessoas para rua, ao contrário, ele, junto com boa parte dos partidos de esquerda, em vários momentos se opuseram de diversas maneiras às ruas.

Isso dito é preciso agora fazer um movimento, ou melhor, apontar uma proliferação. Se trata de, na impossibilidade de seguir devidamente tal movimento, fazer um rascunho desta impossibilidade e acenar para o acaso que lhe engendra. Enfim, como se dá uma proliferação? Desdobremos
Entre movimentos que podemos chamar de macroscópicos e microscópico existe uma diferença que não diz respeito só ao tamanho, mas sobretudo a forma de expandir ou perseverar, de tornar-se ou preservar, de partir ou permanecer. No macroscópico as formas ou coisas (neste momento as duas se equivalem), permanecem sobretudo, só mudam com uma decomposição final, a identidade e a unidade sobressaem. Por exemplo, uma cadeira, um corpo humano, um carro, o legislativo. Por outro lado, uma serie de substancias microscópicos quando estão em certo material são agitadas pelo acaso. Uma partícula que num dado momento faz parte de um material específico, como uma pasta de dente, em outro momento faz parte de uma relação absolutamente nova e já compõe outro material. Este material e estas partículas  são perpassados por variações aleatória de velocidades infinitas. Essa maneira de entender o movimento de proliferação de certas partículas é chamado de Turbulência, e foi descoberto a partir da insuficiência da mecânica newtoniana em responder a dinâmica complexa e aberta da realidade sem cair no circulo vicioso do determinismo.

Ora, essa descoberta da física nos lança numa série de questões que podem ser desdobradas no pensamento político. Mas sem fazer delas metáfora para nada, entendendo toda a realidade contida na explicação, ou melhor, entendemos que essa teoria física consegue apontar um certo movimento do real.

Não se trata de metáfora por que nas ruas pelo Brasil vemos um processo imanente e absolutamente descentralizado que perpassa e compõe diversas organizações majoritárias. Estes micros processos aleatórios, de resistência e luta se extendem por todos os lados, causando uma série de novas relações e possibilitando novas efetivações políticas, se esquivando e produzindo rachaduras na superfície do poder. Ou alguém esperava a popularidade do grito “não vai ter copa?”, ou alguém imagina que a visibilidade dos protestos pelo Brasil não é sinal também de uma aumento de contingência, tanto presencial quanto de outros tipo, internet por exemplo. Essa forma de proliferação aleatória é alimentada pelo que podemos chamar de turbulência das lutas. Mesmo que não possamos cravar um início, já que é legítimo entender várias experiências e conflitos anteriores como acúmulo. Podemos dizer que a partir de junho o processo se intensificou (intensificação e origem não são as mesmas coisas) e deu um salto, mudou o espaço-tempo de todos. Tivemos o aumento de velocidade do tempo para as experiências e fases políticas desenvolvidas pela multidão constituinte. Ao mesmo tempo os espaços foram tomados e da mesma forma passaram por experiências violentas de lutas, controles, invenções autónomas e etc. Também não há por que pensar que vai terminar, como falamos no início. Além da alteração no tempo-espaço o que nos chama atenção é a disseminação das revoltas, sua multiplicidade interna e sua forma de contágio e aglutinamento. Ninguém mais se cala. E, confirmando mais uma parte da tese do Movimento de Turbulência, podemos dizer que não há volta. Não há mais como fazer voltar o consenso violento dos grandes eventos, a paz armada para os pobres, o controle das modulações subjetivas pelo capital, enfim, todo aquele arranjo já não é mais viável na forma que existia antes de junho.

Todos que tem ido para a rua ou que tem sido afetados por esta intensificação política-inventiva que acontece desde junho não estão mais nos lugares esperados. Os partidos ficaram nus em todo seu dirigismo patológico, os sindicatos perderam a pouca legitimidade que ainda tinham e os jovens das favelas nos dão lições em todas as manifestações. Não se trata de romantismo, nem de eleger um novo bom selvagem, ao contrário, trata-se de perceber como a selvageria construtiva, que conjuga desejo destrutivo, solidariedade e devir minoritário, se efetiva constantemente nas manifestações criando brechas reais e isso se dá majoritariamente por obras do esforço destes jovens.

Mas, tratando destes últimos momentos temos pelo menos duas coisas bastante relevantes. Primeiro, existe sim, cada vez mais apoio popular para os manifestantes de todo o pais e uma grande quantidade de enfrentamento espalhados pelo Brasil. Não importa que a grande mídia tente forjar pesquisas dizendo que a criminalização do movimento promovido por ela tem surtido efeito. Pesquisas que dizem o contrário também existem e as ruas não mentem. Em São Paulo mais 2 jovens foram assassinado pelo PM, numa atitude de total desrespeito pela vida e confiaçnao num estado de coisas execrável, onde a exceção sempre foi a regra, onde a morte é a única forma de ação do estado. Tão aterrador quanto isso é o apoio dado a ação, canais de televisão se apressaram em legitimar a ação, em dizer que houve um erro individual do pm, que a arma disparou sem querer e logo voltou a falar de vândalos. Boa parte da população também exerceu sua vontade de punir e destruir o outro, processo comum neste pais fomentado pelo racismo e por uma elite que não abre mão de seu poder de dizer qual perda humana violenta deve ou não chocar. A Pm fez o que sempre fazia mas a população foi para as ruas, se ‘armou’ de black bloc e enfrentou o capital, parou a cidade. Enfrentou a mídia, não aceitando as imposições da criminalização, da propaganda dizendo que vida de pobre não vale nada, já que o problema é sempre o tráfego. Enfrentou a hipocrisia da maioria dos brasileiros (maioria aqui no sentido deleuziano, ou seja, aquele que detém o poder e assim se constitui como modelo), que só se preocupam quando o que é chamado de violência fere o poder constituído, aquele que causa as maiores atrocidades. Em Minas na mesma noite houve confronto numa desocupação de 100 famílias na região metropolitana de Belo Horizonte. No Rio de Janeiro, alguns dias atrás, a PM também matou mais um jovem de comunidade e população da Maré saiu as ruas para protestar, enfim, os desejos fazem emergir, proliferar e potencializar os diversos gritos e revoltas. Isso é sempre diverso, expande, clama, reclama como uma legião sem sujeito definido. Tem assim uma força, sem identidade unitária, é a própria ação do desejo insurgente (de)formando grupos. Tudo isso certamente não teria o mesmo impacto social se não estivéssemos inventando formas de apoio, abertura e visibilidade para estes gritos. Cabe lembrar que isso não é suficiente para nada, não garante vida nenhuma, mais abre uma possibilidade para melhor desdobramento desta revolta, e da resistência, o que é fundamental e que antes não havia.

A segunda coisas tem relação direta com a primeira, trata-se de ver como a mídia tem que se pautar agora pelas manifestações. Hoje em todas as rodas de amigos pela cidade o tema das manifestações surge. Não podendo mais pautar os desejos dos manifestantes a mídia tenta a todo custo criminalizar, num processo que, como já dissemos acima, não tem medo de desvalorizar radicalmente a vida de quem participa das manifestações. Com o governo tem acontecido coisa bem semelhante. Depois de prestar solidariedade a PM no patético caso do Coronel que, depois de espancar um manifestante foi alvo de uma ação de defesa cheia de acontecimentos estranhos, a presidente Dilma prestou no dia seguinte solidariedade aos mortos pela PM, demonstrando toda sua incoerência, ou melhor, todo seu oportunismo claramente reativo, já que nunca havia falado antes contra qualquer excesso que vem sendo cometido pelas policias militares.

Mas voltando a proliferação e a turbulência, lembramos que elas agem na formação de um bloco real de saída, onde o que sai passa por um processo de mobilização das diferenças onde o que possibilita a continuidade do movimento de saída, de invenção, é a indecidibilidade diferenciante. O momento em que um jovem não é mais apenas um morador da favela revoltado nem é mais um aluno desinteressado, ele passa a fazer parte de uma espécie de matilha que inventa seu lugar de atuação política na cidade, sem esperar que os partidos ou a tv lhe diga o que fazer, ele se vale de uma tática, a transforma e assim vai gerando outras formas de aglutinações múltiplas. O devir-educação dos black bloc e professores, é uma educação real e revolucionária, que efetivamente aconteceu e deu margem para a criação do Black Prof, e tudo já é outro, um devir não precisa se institucionalizar para demonstrar sua realidade. É a proliferação aleatória da favela como forma de luta e resistência, esta é a verdadeira potência da favelização, potência de uma multiplicidade rebelde.

Proliferação pela turbulência das lutas no lugar das casualidades dos aparelhos representativos, devir revolucionário no lugar da revolução como finalidade inalterada, disseminação da revolta efetiva e legítima no lugar das manifestações genéricas, paralisantes e cooptadas. Não, não se trata de pureza, se trata de por fogo e deixar o lugar feio, para os purinhos. Nenhuma morte será em vão. Viva a revolta popular das favelas e todas as minorias em luta!!!!

Fonte: PegaroSolComaMão

"Pascual Serrano: Ser de esquerda hoje" (Carta Maior)

PICICA: "Ser de esquerda hoje supõe situar-se e escolher em três âmbitos: o da alternativa política, o dos valores e princípios, e o do comportamento pessoal. Como posição política supõe a defesa de um estado social que intervenha para garantir os direitos e liberdades. Tendo claro que determinadas liberdades burguesas, resultado dos princípios da Ilustração, só têm sentido se são garantidas as condições sociais necessárias (alimentação, saúde, educação, moradia, trabalho, segurança, paz...)."

Pascual Serrano: Ser de esquerda hoje

Não falta quem diga que não é de esquerda nem de direita, ou que não entende de política, apenas quer um trabalho e uma vida digna.



Pascual Serrano 
Arquivo

As forças mais conservadoras e reacionárias, em seu entusiasmo após a queda do muro de Berlin, começaram a tentar terminar com a dicotomía esquerda-direita. O iniciaram com a tese do “fim da história”, de Francis Fukuyama, continuaram com “o crepúsculo das ideologias”, do franquista Fernández de la Mora e continua hoje com Silvio Berlusconi reivindicando a anti-política. Na Espanha, o ditador Francisco Franco, quando alguém de seu entorno lhe expressava alguma queixa, respondia, “você faça como eu, não se meta em política”.

A estratégia vem dando certo resultado entre alguns novos movimentos. Não falta quem diga que não é de esquerda nem de direita, ou que não entende de política, apenas quer um trabalho e uma vida digna. O avanço desta tese é mais uma prova da perda da batalha ideológica pela esquerda. Daí a necessidade de explicar que existem dois modos de enfrentar a economia como está organizada, a convivência e inclusive nosso comportamento privado e nossos sentimentos. E esses modos continuam estando bem representados nos termos de direita e esquerda, baseados na distribuição dos deputados na Assembleia Constituinte após a Revolução Francesa.

Ser de esquerda hoje supõe situar-se e escolher em três âmbitos: o da alternativa política, o dos valores e princípios, e o do comportamento pessoal. Como posição política supõe a defesa de um estado social que intervenha para garantir os direitos e liberdades. Tendo claro que determinadas liberdades burguesas, resultado dos princípios da Ilustração, só têm sentido se são garantidas as condições sociais necessárias (alimentação, saúde, educação, moradia, trabalho, segurança, paz...).

Para a esquerda, o exercício de uma liberdade que necessita dinheiro, nunca será um verdadeira liberdade. Isso será mercado. Essa é uma diferencia fundamental com a direita.  E apenas algumas instituições representativas do povo, ou seja, o Estado, podem garantir esses direitos e liberdades, que estarão orientados a garantir que se cubram as necessidades dos cidadãos e que existe um sistema de leis e distribuição da riqueza justa. Em termos marxistas, “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade”.

Ser de esquerda também supõe a adoção de alguns valores e princípios. Leva a renegar do mito da competitividade que impõe a direita e o neoliberalismo, para defender o da cooperação. A esquerda se inspira no compromisso com apoiar o mais débil da manada frente ao darwinismo social da direita. Igualmente, a esquerda entende que as lutas nunca são individuais, mas coletivas. Como afirmou Paulo Freire, “Ninguém se salva sozinho, ninguém salva ninguém, todos nos salvamos em comunidade”.

Por último ser de esquerda supõe adotar um comportamento coerente na vida pessoal. Para isso será imprescindível uma vida em harmonia com a sustentabilidade do planeta e o resto de seres vivos. Também informar-se, indignar-se e combater, como diria o Che a sua filha, qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. Supõe formar-se e capacitar-se para poder melhorar a participação e colaboração no avanço coletivo. E também enfrentar e combater em nossa vida cotidiana as tentações que o modelo neoliberal tenta nos impor pela via do consumismo, da frivolidade, do egoísmo e do individualismo.

Por último, diferente dos modelos de direita que podem ser impostos pela força, um projeto social de esquerda apenas será possível se é compartilhado pelas maiorias sociais. Daí que um compromisso individual do cidadão de esquerda é trabalhar para promover os princípios, os valores, as políticas e os líderes que os representem.

As linhas recém escritas são breves, mas as condições e obrigações que impõem à esquerda são poderosas. Devem ser, porque demasiadas vezes, demasiados governos, em nome da esquerda, cometeram demasiadas traições. Dizem que muitas vezes a política é como tocar o violino: se toma o controle com a mão esquerda, mas depois se executa com a direita.  Por isso devemos ter claro o que é esquerda, para que não confundamos tocar o violino com um governo de esquerdas.   

www.pascualserrano.net 

Tradução: Liborio Júnior


Fonte: Carta Maior

outubro 30, 2013

"14 dias" - Resenha 'Vinte centavos: a luta contra o aumento' (Quadrado dos Loucos)

PICICA: "A coerência, em boa parte, decorre da leitura esquemática de Ortellado. Elogiando o “profundo sentido de tática e estratégia”, ele erige o MPL a exemplo de luta autônoma e eficaz. Autônoma, porque soube se desvencilhar das formas representativas, livrando-se de agendas outras. Eficaz, porque não somente orientada a resultados imediatamente reconhecíveis pela população, como também operante em múltiplas temporalidades: a “tempo frio” no paciente trabalho de divulgação e conscientização, a “tempo quente” na ação direta nas ruas, resoluta, irreversível. Um movimento que reuniu as virtudes organizacionais da autonomia e acúmulo com a virtù, bem ao gosto renascentista, de apropriar-se do tempo e agir na hora certa. O que aconteceu em junho foi um “momento maquiaveliano”: o MPL fez uma ousada leitura da conjuntura e foi à luta com uma intensidade inédita e determinação inabalável, atropelando todos os prudentes prognósticos da ciência representativa.

Para Pablo, as razões do sucesso do MPL explicam igualmente o atoleiro em que patinaram as manifestações, depois da revogação do aumento. O esquema diferencia dois polos de uma tensão no interior dos movimentos: foco no processo ou foco nos resultados. O sucesso do MPL se deveu à capacidade de concentrar toda a força de seu processo de auto-organização, autonomia e autovalorização em resultados, por sua vez formulados a partir da percepção das condições sociais e econômicas de uma conjuntura. Evitou, assim, a dispersão em ações autofágicas, a renúncia a relacionar-se com o poder constituído na medida de seu antagonismo."

14 dias
Resenha Vinte centavos: a luta contra o aumento; São Paulo: Veneta, 2013. JUDENSNAIDER, Elena; PIAZZON, Luciana; ORTELLADO, Pablo.



A crônica cobre os quatorze dias entre o primeiro protesto convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL) e o anúncio da revogação do aumento das passagens de ônibus pela prefeitura de São Paulo. De 6 a 19 de junho, o livro suspende o juízo mais analítico para se concentrar numa narrativa panorâmica, no ritmo dos relatos, notícias e reportagens, conforme iam aparecendo dia a dia na grande imprensa e mídias alternativas. Coloca entre parênteses qualquer apriorismo ideológico, numa espécie de pragmatismo teórico, abrigando-o de desqualificações prontas. O método busca apreender o jogo tático dos governos e mídia corporativa, os vaivéns da organização, o termômetro político ao redor das primeiras manifestações. Uma introdução por Marcelo Pomar (Não foi um raio em céu azul“) e um posfácio de Pablo Ortellado (“Os protestos de junho entre o processo e o resultado”) completam o painel dessa que, até agora, é a mais coerente publicação “de chegada” sobre o assunto.

A coerência, em boa parte, decorre da leitura esquemática de Ortellado. Elogiando o “profundo sentido de tática e estratégia”, ele erige o MPL a exemplo de luta autônoma e eficaz. Autônoma, porque soube se desvencilhar das formas representativas, livrando-se de agendas outras. Eficaz, porque não somente orientada a resultados imediatamente reconhecíveis pela população, como também operante em múltiplas temporalidades: a “tempo frio” no paciente trabalho de divulgação e conscientização, a “tempo quente” na ação direta nas ruas, resoluta, irreversível. Um movimento que reuniu as virtudes organizacionais da autonomia e acúmulo com a virtù, bem ao gosto renascentista, de apropriar-se do tempo e agir na hora certa. O que aconteceu em junho foi um “momento maquiaveliano”: o MPL fez uma ousada leitura da conjuntura e foi à luta com uma intensidade inédita e determinação inabalável, atropelando todos os prudentes prognósticos da ciência representativa.

Para Pablo, as razões do sucesso do MPL explicam igualmente o atoleiro em que patinaram as manifestações, depois da revogação do aumento. O esquema diferencia dois polos de uma tensão no interior dos movimentos: foco no processo ou foco nos resultados. O sucesso do MPL se deveu à capacidade de concentrar toda a força de seu processo de auto-organização, autonomia e autovalorização em resultados, por sua vez formulados a partir da percepção das condições sociais e econômicas de uma conjuntura. Evitou, assim, a dispersão em ações autofágicas, a renúncia a relacionar-se com o poder constituído na medida de seu antagonismo.

O autor dá exemplos com a mesma grade. Em 1967, uma grande mobilização em Washington pelo fim da guerra do Vietnã (o resultado) acabou dispersando parte significativa das energias em grandes intervenções contraculturais em paralelo. Num exemplo de estimação do autor, é citado um happening organizado pelo beatnik Allan Ginsberg e outros: os manifestantes cercaram o Pentágono e, entoando um mantra, tentaram fazê-lo levitar. Ele anota outro exemplo, desta vez no ciclo alterglobalização, do final dos anos 1990 e começo dos 2000: o foco na democracia interna e prefiguração de outro mundo possível, “sem estratégia clara” de realização, culminou ao fim e ao cabo em “assembleias inócuas” e nenhuma eficácia para frear a expansão do capitalismo global-financeirizado, a destruição ambiental ou a segunda guerra do Iraque.

O último exemplo vem do recente ciclo global, disparado com as revoluções árabes na primavera de 2011. Na Tunísia e Egito, o enxame convergiu na exigência da deposição dos respectivos ditadores, com um resultado realizável e realizado, fulminando ditaduras em vigor há décadas. Quando, no verão, a peste atravessou o Mediterrâneo (com o 15-M europeu) e, no outono, o Atlântico (com o Occupy), a febre revolucionária esfriou em meio a  intermináveis processos internos de democracia direta e consenso, um assembleísmo anarcoide que, na prática, nada conquistou de duradouro. Um anarquismo ineficaz que, entusiasmado no início, inexoravelmente se esgota nas sucessivas purificações com que reafirma a sua identidade de princípios, até o cansaço e a imobilidade.

Para Pablo, não adianta apenas engravidar o presente do futuro, prefigurando-o mediante novos coletivos, movimentos e organizações. É preciso se engalfinhar com o discurso, a mídia, o “senso comum” das representações dominantes da sociedade. Confrontá-los, como faz o livro, ao repassar o noticiário. O antagonismo precisa ser conduzido em ações concretas com resultados palpáveis, por mais improváveis e imprudentes sejam, inclusive formulando demandas ao poder estabelecido, segundo uma estratégia de curto e longo prazo. Somente assim o “momento maquiaveliano” das jornadas de junho pode acontecer, gerando na práxis uma vanguarda, eu diria, leninista. Quer dizer, uma vanguarda que acontece, que não existe sem o acontecimento de que é deflagradora, sem a pretensão de liderar as “massas”, mas exprimindo ela mesma a arredia subjetividade que as atravessa. No fundo, uma vanguarda que esteja impregnada da expressão já qualificada das “massas”. Isto é, multidão, na acepção que emprestam à palavra autores autonomistas como Antonio Negri e Michael Hardt.

O MPL, desta forma, com seu sentido de tática e estratégia, pôde convocar uma greve da metrópole, exprimindo condições singulares de luta e resistência presentes na multidão. Pôde, assim, desbloquear uma produção de subjetividade que existia, imanente, entre as “massas”. Existente porém represada, à espera da contingência para se realizar no tempo e espaço. Certamente, o MPL não explica as jornadas de junho, — como não explicam, por si só, a Copa das Confederações, as remoções de favelas, ou o modelo perverso de progresso e inclusão social do “Brasil Maior”. Por si só, não tem como explicar o território existencial que levou transversalmente mais de um milhão de pessoas às ruas, a desafiar um dispositivo repressor alucinadamente brutal e colonial. No entanto, com seu foco na tarifa zero, na questão dos transportes coletivos, o MPL explica o contágio, a contingência expansiva: a exposição insofismável da metrópole como sofrimento, que deve e merece ser destituída.

O que não se pode concordar, no livro, é o clima de fim de feira. A crônica não termina em 19 de junho apenas por motivos cronológicos. A saída do MPL de cena significaria, também, o fim do “momento maquiaveliano”. As pautas se dissolvem, as energias se dispersam, e as coisas ficam estranhas. Pablo faz uma analogia com o ciclo alterglobalização, quando a ausência de “orientação política” levou a tática black bloc da época ao primeiro plano. Tudo passou a girar ao redor da violência da polícia e manifestantes, num iô-iô midiático. A comparação não só contorna o viés genuinamente anticolonial do fenômeno no Brasil, ao expor a violência impregnada no cotidiano e “senso comum”, e profundamente seletiva; como também se acerca de reproduzir o discurso dominante. Este que tem instalado o “vandalismo” no cerne do problema, somente para, em ato contínuo, desqualificar a ação (e criminalizá-la) como violenta, politicamente irresponsável e sem estratégia ou tática.

Essa tática, por sinal, não estaria presente desde o primeiro ato do MPL, indissociável de sua própria tática, em 6 de junho? Não seria o enfrentamento direto, cujas imagens furaram o cortinado jornalístico e sua civilidade maniqueísta para imantar os espectadores com sentido político e mesmo estético, não seria outra maneira inteligente de exposição do sofrimento da metrópole? Indissociável, portanto, de uma estratégia ampliada? Se a gestão da mobilidade urbana embute uma gigantesca violência de classe, não o faz, a sua maneira, a gestão da segurança pública nas grandes cidades? É complexo. São problemas, evidentemente, que a panorâmica do livro não teria como desenvolver. Precisaria ser integrada a outros planos e pontos de vista, a outros métodos: quem sabe narrativas-travellings e mesmo textos de “câmera na mão”, em meio às manifestações. O que não dá, em qualquer caso, é engrossar a narrativa do sucesso putativo das manifestações. Os resultados ainda estão abertos, e qualificando-se.

Fonte: Quadrado dos Loucos

"O PSOL e a OcupaCâmara (Rio)", por Luiz Cotinguiba

PICICA: "Vale a pena fazer um adendo ao texto que postei e que diz respeito ao fato de algumas pessoas ligadas ao PSOL terem condenado a atitude dos que decidiram sair e impor a saída aos outros lá dentro. Não foram muitas, é verdade, mas são pessoas que desde o início repudiaram o que foi feito lá dentro e que até hoje estão juntos conosco no Ocupa Câmara (Ocupa Câmara de laços humanos, porque o espaço físico como sabem foi destruído); pessoas que conseguem conciliar ter uma linha partidária e participar de um movimento sem querer cooptá-lo ou dominá-lo; pessoas que, mesmo sendo de um partido, estão naquele movimento porque acreditam nele e respeitam a horizontalidade que ele propõe."

O PSOL e a OcupaCâmara (Rio)

30/10/2013
Por Luiz Cotinguiba


Por Luiz Contiguiba(29/10)
contiguilo

Republicamos o comentário postado pelo autor no canal da UniNômade (FB), ao texto do Juntos!, ligado ao PSOL: Eu não escondo o meu rosto. O texto repercute a experiência pessoal do autor, que esteve acampado por direitos durante doze dias na Câmara dos Vereadores do Rio, e é elemento importante para contribuir no debate sobre as relações entre as formas da representação e a autonomia dos movimentos. Foi publicado, ainda, o comentário em adendo do mesmo autor.



Gente, esse texto do PSOL só corrobora com a impressão que eu, enquanto ocupante da parte interna do Ocupa Câmara Rio por 12 dias, bem como provavelmente todos os outros amigos que decidiram permanecer com a ocupação no dia 10 tivemos desse partido em especial.

No dia que eles saíram da ocupação estávamos muito fragilizados e por isso decidimos não denunciar o que eles fizeram lá dentro conosco, mas acho importante falar.

Era o segundo dia de ocupação (dia 10) e já ficamos satisfeitos com o fato de o presidente da Câmara ter aceito se reunir para discutir conosco a ocupação. Tínhamos uma pauta de 5 pontos que foi levada até ele. Como ele não queria receber as mais de 40 pessoas que se encontravam lá até esse momento, 12 voluntários se disponibilizaram para ir (desses 12, que eu me lembre, apenas eu, o Ciro e o Ninja não éramos de nenhum partido ou movimento estudantil). Fomos à reunião e o Jorge Felippe agiu conforme se esperava: negou o tempo todo poder fazer alguma coisa, adotou uma postura dita legalista e não discutiu nossa pauta.

Eu, que até então não tinha nenhuma experiência com ocupação e discussões em assembleias, saí da reunião achando ao menos positivo o fato de termos conseguido estabelecer um primeiro diálogo, imaginando que, com pressão popular nos próximos dias pudéssemos avançar o que queríamos (essa pauta inicial era restrita à questão da CPI dos Ônibus).

No entanto, ao sair de lá, umas figuras de “destaque” da galera das juventudes do PSOL e outros movimentos de esquerda aparentemente tiveram outra impressão. Uma delas disse que “precisava digerir tudo aquilo” e, por isso, ao voltarmos ao Plenário, sugeriu que fizéssemos uma pausa de 2 horas para comermos e depois nós 12 que havíamos ido à reunião contaríamos como havia sido. As pessoas concordaram e foi o que fizemos.

Porém, as coisas ficaram estranhas nesse ínterim. Sentei-me para comer no fundo da sala e conversar com um pessoal reunido ali. Não conhecia ninguém, estávamos ali conversando e eles me perguntaram: “você tá pensando em sair?” Eu disse que obviamente não, e perguntei o motivo da questão, ao que me disseram que “andaram perguntando” para várias pessoas se elas “ainda queriam ficar”. Achei aquilo esquisito, mas não dei muita bola, afinal o saldo da conversa com o Jorge Felippe não havia sido ruim.

Quando nos organizamos para falar sobre a reunião, veio a surpresa: praticamente todos os que haviam participado da reunião se colocaram a favor de desocuparmos naquele dia mesmo, pois a ocupação – que tinha pouco mais de 24 horas – “já havia atingido seu ápice na sociedade carioca”. Foi-nos repetido inúmeras vezes que ali dentro estávamos de mãos atadas e não teríamos como mobilizar do lado de fora e foram invocando um discurso jurássico de massificar o movimento na base da classe operária (nas linhas do texto desse cara aí). Ora, um argumento fraco, pois havíamos acabado de entrar dispostos a ocupar e sabendo das limitações de saída. Além disso, todo mundo ali tinha celular, tínhamos internet, uma página recém-criada e cada um dos ocupantes com certeza conhecia muitas outras pessoas que iriam, por sua vez, ampliar aquela rede de mobilização.

Enfim, criaram o alarme de que era melhor desocupar e propuseram votação acerca disso. Basicamente, nós que queríamos ficar expomos nossas posições uns para os outros, porque os “destaques” partidários já tinham posição formada, então pra quê debate, né? Ficaram lá no fundo comendo e rindo, enquanto eu e as pessoas incríveis que vim a conhecer (os Amarildos que decidiram permanecer) articulávamos argumentos para fortalecer aquilo em que acreditávamos.

A votação finalmente foi feita e os que decidiram pela desocupação (todos do PSOL, PSTU e movimentos estudantis votaram pela saída + algumas pessoas) venceram por 21 a 18. Em seguida, deveria-se discutir o “quando” da desocupação. Eu fiz uma proposta que saíssemos na terça porque teríamos mais tempo para pensar em uma saída que causasse algum impacto, porque sair 28 horas depois era também desmoralizador. A isso, a “destaque” da juventude do PSOL respondeu me chamando de antidemocrático, mau-caráter e dizendo que eu havia dissimulado o “quando”, uma vez que, segunda ela, todos ali haviam entendido que “quando” só poderia ser sábado ou domingo. Além disso, ela bradou que tinha muita experiência com ocupações e éramos nós que não entendíamos que aquilo ali não iria virar nada. Inclusive, sugeriu que eu buscasse artigos que ela havia escrito na internet para me informar.

Depois dessas agressões verbais e sensação de opressão, saí do plenário e meus amigos ficaram lá testemunhando a “tirania da maioria” imposta por uma ordem de alguém de fora que fechou aquela decisão em bloco. Não eram pessoas de mente independente movidas por uma crença na importância daquilo, mas meros funcionários partidários submissos.

Quando retornei, naturalmente o pessoal que queria continuar a ocupação se reuniu num canto para decidir o que fazer. Uns (poucos) estavam muito certos de querer ficar, e vários de nós não sabíamos o que fazer diante daquilo. Foi aí que um pessoal que soube que queriam terminar a ocupação apareceu nos portões do lado de fora, e os gritos deles nos deram muita força para permanecer.

Os mais ou menos 800/900 reais que havíamos arrecadado entre nós e através de doações de pessoas que apoiavam A OCUPAÇÃO ficou nas mãos dos que decidiram acabar com a ocupação. Deram parte para a ocupação Congo e a outra parte para uma menina (também do PSOL) que havia perdido a câmera dela. Chamaram a bandinha pelega para recebê-los na saída e foram comemorar na Lapa. Deram entrevista para o Estadão dizendo que SÓ SEIS PESSOAS decidiram continuar (éramos 14!!!) e ainda alguém saiu falando que como a ocupação tinha acabado, a nossa configurava uma NOVA ocupação, o que fazia com que a decisão de indeferimento de reintegração de posse feita por uma juíza no dia anterior caísse. O que obviamente não se deu, mas que denota o mau caratismo dos espíritos de porco.

Nunca mais deram as caras na ocupação (ainda bem) e em momento algum fizeram mobilização popular alguma conforme haviam prometido (o que mostra que era mero argumento para acabar com a ocupação simplesmente porque essa havia sido a “ordem”), além de terem qualificado os que decidiram permanecer de “anarcoloucos” publicamente no IFCS naquela semana.

Por fim, coisa que eu e a Joia descobrimos no oitavo dia de ocupação com uma jornalista da EBC: às 13:00 do primeiro dia da ocupação a imprensa já tinha a pauta de reivindicações de 5 pontos que nós supostamente estávamos escrevendo do lado de dentro e, iludidos, ficamos 5 horas discutindo acerca daquilo. Ela deu os nomes das três pessoas que passaram o documento (que para a gente só foi existir 5 horas depois) a ela: todos os 3 da juventude do PSOL.

Enfim, desculpem o relato longo, mas é que diante de tudo isso que sofremos lá dentro, não foi apenas um desmoronamento de ilusões e crenças com relação às instituições estabelecidas, mas também (e novamente) com os partidos de esquerda. Não dá mais para insistir nessas velhas fórmulas…



Adendo (30/10)


Depois daquele momento de fragilidade em que nos sentimos oprimidos e silenciados lá dentro, decidimos não focar nossas energias nesse problema e nos concentramos em trabalhar a página nova que criamos para dar visibilidade pro movimento bem como reconstruirmos a ocupação, dessa vez juntos com o fundamental apoio do pessoal que acampou do lado de fora.

Mas tendo em vista a arrogância e atitude de superioridade que essa galera continua pronunciando aí nesse e em outros posts de blogs contra os que se organizam independentemente, eu acho sim que as coisas precisam ser ditas, porque eles saíram de lá nos humilhando, levando todo o dinheiro da ocupação e nos difamando, e foi como se nada tivesse acontecido.

Vale a pena fazer um adendo ao texto que postei e que diz respeito ao fato de algumas pessoas ligadas ao PSOL terem condenado a atitude dos que decidiram sair e impor a saída aos outros lá dentro. Não foram muitas, é verdade, mas são pessoas que desde o início repudiaram o que foi feito lá dentro e que até hoje estão juntos conosco no Ocupa Câmara (Ocupa Câmara de laços humanos, porque o espaço físico como sabem foi destruído); pessoas que conseguem conciliar ter uma linha partidária e participar de um movimento sem querer cooptá-lo ou dominá-lo; pessoas que, mesmo sendo de um partido, estão naquele movimento porque acreditam nele e respeitam a horizontalidade que ele propõe.

Divulgue na rede

 

Fonte: Universidade Nômade

"A comunicação como direito fundamental", por Venício A. de Lima

PICICA: "Inúmeras têm sido as dificuldades enfrentadas pelos que lutam pela liberdade de expressão ao longo dos anos. Talvez a maior delas seja encontrar uma maneira simples e clara, capaz de traduzir para a linguagem comum, as diversas maneiras pelas quais o direito à comunicação diz respeito e afeta diretamente o cotidiano de cada um de nós."

LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A comunicação como direito fundamental

Por Venício A. de Lima em 29/10/2013 na edição 770

Apresentação de O direito humano à comunicação – Pela democratização da mídia, de Pedrinho Guareschi, Editora Vozes, 2013; R$ 36,00; intertítulos do OI




Inúmeras têm sido as dificuldades enfrentadas pelos que lutam pela liberdade de expressão ao longo dos anos. Talvez a maior delas seja encontrar uma maneira simples e clara, capaz de traduzir para a linguagem comum, as diversas maneiras pelas quais o direito à comunicação diz respeito e afeta diretamente o cotidiano de cada um de nós.

Não temos conseguido realizar esta tarefa básica. Em consequência, o indispensável envolvimento e a mobilização popular em torno da luta pela liberdade de expressão ainda não foram suficientes para provocar as mudanças estruturais necessárias no quadro institucional que regula a atividade de comunicações no Brasil.

Não há dúvida, todavia, que estamos avançando e o livro que o leitor(a) tem em mãos é um exemplo importante desse caminhar.

O que Pedrinho Guareschi consegue fazer, com sua habitual competência, neste O direito humano à comunicação – Pela democratização da mídia é exatamente uma tradução sumarizada da ampla questão que envolve o direito à comunicação, em suas diferentes dimensões – conceitual, histórica e ética – além de avançar na proposição de ações que possam conduzir, afinal, à conquista desse direito fundamental.

Ideia de liberdade

Escrito, como diz seu autor, em tempos de mudança (kairós), o leitor(a) encontrará aqui elementos que ajudam a desvendar o que ele apropriadamente chama de “estratégia de confusão”. Adotada – com sucesso – pela grande mídia e seus aliados, ela tenta esconder a natureza de um sistema cuja característica principal é a exclusão histórica das vozes da maioria dos brasileiros do debate público.
Na verdade, decisões tomadas ainda no início da década de 1930 definiram nossa radiodifusão como um serviço público explorado, preferencialmente, pela iniciativa privada. A partir daí, consolidou-se uma legislação assimétrica em relação a outros serviços públicos, omissa, desatualizada e, no que se refere a normas e princípios da Constituição de 1988, não regulamentada, vale dizer, não cumprida.

A total ausência de controle da propriedade cruzada dos meios e da formação de redes (de rádio e televisão) deu origem a poderosos oligopólios empresarias multimídia – nacionais, regionais e/locais – que exercem seu controle, não só sobre a maioria das concessões de radiodifusão, como também sobre a mídia impressa (jornais e revistas) e, mais recentemente, sobre os principais provedores de internet.

Paralelo a estes oligopólios, em decorrência da privatização das telecomunicações promovida pelos governos neoliberais da década de 1990, emergiram megaempresas globais que exploram os serviços de telefonia fixa e móvel e, em alguns casos, também os serviços de televisão paga (distribuição de conteúdo).

Diante deste quadro, Guareschi retoma a matriz “dialógica” elaborada pelo educador brasileiro Paulo Freire que se diferencia da tradição clássica ao retornar à raiz semântica da palavra e a ela acrescentar a dimensão política da igualdade e da ausência de dominação. Recorrendo ao mito do Gênesis, no qual o domínio de Adão sobre o universo é representado por sua ação de “dar nome” aos animais, Freire define a comunicação como “um encontro entre homens, mediados pela palavra, a fim de dar nome ao mundo” e, dessa forma, antecipa o que mais tarde seria chamado de “ação comunicativa” ou “ética do discurso”.

Ao restringir o significado da comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. A comunicação passa a ser, portanto, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de voz e o direito de ser ouvido, além do direito de acesso aos meios tecnológicos necessários à plena liberdade de expressão. E o próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social.

Até recentemente, este modelo da comunicação dialógica parecia inadequado para qualquer tipo de aplicação no contexto da comunicação midiatizada. Na verdade, Freire teorizou essa comunicação antes da revolução digital, antes da internet e antes das redes sociais. Hoje as TICs reabrem a possibilidade da interação permanente e on-line no próprio ato da comunicação. O modelo normativo construído por Freire, portanto, ganha atualidade e passa a servir de ideal para a comunicação publica midiatizada.

Guareschi, corretamente, nos lembra da necessidade de verticalizar o debate sobre o direito à comunicação que, em sua base, implica uma visão do ser humano e de sua liberdade. Recorrendo a Hanna Arendt, ele desnuda as diferenças entre a concepção liberal de liberdade – amoldada ao sistema capitalista – e outra liberdade que se constrói na relação com o outro.

Na verdade – sem que isso seja explicitado – Guareschi está falando da liberdade que encontra sua raiz na democracia ateniense e no humanismo cívico do republicanismo moderno. A mesma liberdade de que está impregnada a comunicação dialógica de Paulo Freire e que equaciona autogoverno com participação política, contrariamente à liberdade negativa do liberalismo clássico.
Como sabemos, a liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói a partir do século XVII na Inglaterra, depois como reação conservadora à Revolução Francesa e se consolida no século XIX em complemento à ideia de mercado livre, isto é, à liberdade privada de produzir, distribuir e vender mercadorias. Prevalece o caráter pré-político da liberdade, como um direito exclusivo da esfera privada. A versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a chamada liberdade negativa.

A liberdade republicana, ao contrário, se associa historicamente à democracia clássica grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da Idade Moderna. Nela prevalece a ideia de liberdade associada à vida ativa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno e à participação na vida pública.

Liberdade e democracia 

São tradições distintas: a republicana se origina em Atenas, passa por Roma e se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, John Milton, Thomas Paine e Hanna Arendt. A liberal, em Hobbes, Locke, Benjamin Constant e, mais recentemente, em Isaiah Berlin.

Para Hanna Arendt e Paulo Freire, o eixo principal da vida pública está na participação ativa, no direito à voz e a ser ouvido. A liberdade não antecede à política, mas se constrói a partir dela.
Por fim, Guareschi discute a TV pública, a internet e, sobretudo, os conselhos de comunicação – nacional, estaduais e municipais – como possibilidades de se avançar através da participação popular na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas – participativas e democráticas – de comunicação em seus diferentes níveis. Temos aí um longo percurso a ser percorrido, mas a direção está indicada.

Não há dúvida de que O direito humano à comunicação – Pela democratização da mídia de Pedrinho Guareschi constituirá, a partir de agora, referência obrigatória para todos e todas que lutam pelo direito à comunicação, fundamental para a liberdade humana e para a construção democrática. [Brasília, Outono de 2013]

Fonte: Observatório da Imprensa

"O marxismo da adversidade: Hannah Arendt e Walter Benjamin", por Cristina Portella

PICICA: "Um dos livros sobre os quais a estudiosa de Arendt se debruçou foi A Condição Humana. Nele, encontraríamos a “elaboração de um novo conceito de poder que recupera e implica novas noções, como a do espaço público como espaço de poder; a da legitimidade da organização comunitária assente num contracto social original; a do ser humano como animal político; a da esfera da ação humana como a esfera política e a relação desta com as outras atividades humanas, a saber, o labor e o trabalho”."

O marxismo da adversidade: Hannah Arendt e Walter Benjamin

O painel Transformações da teoria marxista, no II Congresso Marx, reuniu investigadores interessados em dois filósofos: Hannah Arendt e Walter Benjamin.



Cristina Portella
Cristina Portella
Lisboa - O sugestivo painel “Transformações da teoria marxista”, no II Congresso Karl Marx, reuniu investigadores interessados em dois grandes filósofos que, apesar de não poderem ser definidos como marxistas, a este pensamento não foram indiferentes. Trata-se de Hannah Arendt e Walter Benjamin.

Sofia Roque, doutoranda em Filosofia pela Universidade de Lisboa, considera que “no legado de Hannah Arendt encontramos uma original tentativa de pensar o presente sem se estar condicionado pelas condições do presente”. Para a filósofa alemã, só seríamos contemporâneos daquilo que a nossa compreensão alcançar.

“Afirmando a capacidade criadora da ação humana, ligada a uma faculdade capaz de formulação de juízos originais sobre o mundo, Hannah Arendt não anuncia nas suas obras a possibilidade da humanidade salvar-se de si mesma, antes defende que é o próprio mundo, enquanto artifício humano, que tem de ser transformado – essa é a resposta política, em todos os seus sentidos”, escreveu Sofia.

No trabalho apresentado, Sofia procurou refletir sobre a condição humana a partir do estudo de Arendt e “o seu estreito diálogo crítico com o pensamento de Karl Marx”. “Considerar a definição da política como a experiência performativa e positiva da liberdade, criticar a relação entre necessidade e liberdade, bem como uma visão determinista da História, e questionar a problemática distinção entre o social e o político, são alguns passos da investigação sobre a qual se baseia esta comunicação.”

Um dos livros sobre os quais a estudiosa de Arendt se debruçou foi A Condição Humana. Nele, encontraríamos a “elaboração de um novo conceito de poder que recupera e implica novas noções, como a do espaço público como espaço de poder; a da legitimidade da organização comunitária assente num contracto social original; a do ser humano como animal político; a da esfera da ação humana como a esfera política e a relação desta com as outras atividades humanas, a saber, o labor e o trabalho”.

O marxismo pela lente de Benjamin

Fabio Mascaro Querido, doutorando em Sociologia pela Universidade de Campinas, dedicou-se à obra de Walter Benjamin, mas pelo olhar de dois conhecidos intelectuais e militantes trotskistas, Michael Löwy e Daniel Bensaïd. Além do interesse pelo filósofo alemão, tinham muitos outros pontos de contato em sua história de vida.

Herdeiros do marxismo de Lênin, Rosa Luxemburgo e Trotsky, acabam por encontrar nas reflexões de Benjamin uma espécie de “bússola”, por meio da qual se orientar em meio às mudanças históricas do capitalismo global e ao refluxo das lutas sociais no pós-1968 em França. Militantes da Liga Comunista Revolucionária (LCR), seção francesa da IV Internacional, e vivendo desde os anos 60 em Paris, ambos inscrevem-se, segundo Fabio, numa mesma “geração intelectual” cuja marca fundamental foi a “passagem” de um mundo no qual a revolução social parecia iminente para outro no qual os horizontes pareciam cada vez mais estreitos.

Para enfrentar esta “passagem” de crise do pensamento marxista, o marxismo “herético” e “infiel” de Walter Benjamin parecia uma saída. Bensaïd afirmou: “A fim de nos aventurarmos neste labirinto, nós escolhemos Walter Benjamin, não como guia, mas como modesto passador. Quem, melhor que este outsider errante e rebelde, poderia religar as pistas da linguagem, da história e da política na encruzilhada das grandes tradições culturais europeias?” “Em Löwy, do mesmo modo, o 'marxismo da adversidade' de Benjamin atuava como meio de passagem, de abertura a novos horizontes, em uma palavra, como resposta ao enfraquecimento da esquerda política radical”, explicou Fabio. 

“Para Michael Löwy, a originalidade do pensamento de Walter Benjamin decorre de sua capacidade incomum de articular o marxismo (do qual ele se aproximou em meados da década de 1920), às raízes românticas e utópico-teológicos de suas reflexões de juventude. Segundo ele, marxismo libertário, romantismo e messianismo judaico combinam-se, no pensamento benjaminiano, no contexto de uma crítica radical às ideologias do progresso e ao paradigma civilizatório moderno.”


Fonte: Carta Maior

"Maconha: Colorado, muito obrigado pelo exemplo", por Pedro Abromovay

PICICA: "A regulamentação do uso recreativo apresenta desafios enormes. Evitar os erros que nossa sociedade comete com o álcool é o maior deles (nenhum dos modelo que estão sendo colocados em pratica aceita o consumo público ou a propaganda de maconha). Mas já sabemos que o modelo criminalizador que vigora atualmente não consegue reduzir o consumo, cuidar da saúde das pessoas e produz mortes em séries e cárceres superlotados."

Estados Unidos

Maconha: Colorado, muito obrigado pelo exemplo

A Medical Marijuana Enforcement Division, do governo de Colorado, disciplina a produção legal de quatro toneladas da erva por mês. Pedro Abramovay esteve lá e conta aqui a experiência
por Pedro Abramovay — publicado 25/10/2013 12:49, última modificação 25/10/2013 16:46 
 
Pedro Abramovay

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Galpão da Live Well, empresa autorizada pelo governo de Colorado que produz uma tonelada de maconha por mês

De Denver

Não é todo dia que a gente se sente no futuro. Nem é todo dia que fica tão claro que o futuro pode ser tão melhor do que o presente. Foi na periferia de Denver, no estado do Colorado, nos EUA. Uma fábrica de 300 funcionários envolvida em processo de produção absolutamente lícita que, no Brasil existe, mas não gera empregos, gera cadáveres.

O Colorado decidiu em 2012, por plebiscito, legalizar a produção e venda de maconha para fins recreativos. A maconha já tinha mais de 100.000 usuários medicinais no Estado. Mas a população do Colorado resolveu dar um passo além e aceitar o desafio do pioneirismo de questionar que a única forma possível de abordar o problema das drogas é por meio de prisões, armas, guerra.

Alias, é curioso perceber como essa trajetória –da maconha medicinal para a regulamentação do uso recreativo - parece ser uma tendência nos EUA. Há pelo menos mais uma dezena de Estados que já aceitam o uso da maconha medicinal e que, segundo as pesquisas, devem, nos próximos 3 anos, aprovar o uso recreativo.

Para mim a explicação para esse fenômeno parece óbvia. Como a maconha pode ter diversos tipos de uso medicinais, o número de pacientes pode ser muito alto. No caso da Califórnia fala-se em mais de um milhao de pacientes . No caso do Colorado, a média de idade dos usuários de maconha medicinal era de 41 anos. Assim, o fenômeno da maconha medicinal faz com que a imagem do usuário deixe de ser associada preconceituosamente ao jovem problemático. Ao se ver o uso por senhoras de idade ou por executivos de sucesso, os preconceitos vão se dissolvendo e o debate pode se dar em torno dos riscos e benefícios reais e não daqueles inventados pela ideologia da Guerra às drogas.

A retirada dos preconceitos, portanto, parece ter gerado um debate na sociedade norte-americana que mudou completamente a visão que a opinião pública tinha sobre o tema. O Instituto Gallup aponta que, se em 1997, 73% dos Americanos eram contra a legalização da maconha, em 2013, após a maioria da população do pais viver estados onde a maconha medicinal é regulamentada, 58% dos americanos apoiam a legalização e apenas 39% são contrários.

Revólveres e sangue

Este processo tornou possível o que eu vi aqui em Denver. Era parte de um evento que reuniu funcionários do estado do Colorado e do Uruguai – que está prestes a regulamentar o uso recreativo- para a troca de experiências e ideias sobre a implementação do modelo.

As apresentações dos funcionários do governo do estado do Colorado, mostrando uma tecnologia avançada para calcular o número de plantas, controlar a produção e cobrar impostos foi impressionante. Mas, para mim, o mais curioso era entrar por aqueles corredores, escaninhos, máquina de Xerox e ver a placa do setor daquela repartição: “Medical Marijuana Enforcement Division”. Isso mesmo. A telefonista atendia o telefone assim: “Marijuana Enforcement Division, good morning”. A maconha não era um problema de polícia. Era uma questão de política pública.
Isso ficou ainda mais claro na apresentação da responsável pela área de prevenção. A funcionária nos explicou que eles tinham dados de que as campanhas feitas na base do medo não funcionam com jovens (aqui nos EUA tinha uma famosa na qual mostravam um ovo fritando e dizia: “este é o seu cérebro quando você usa drogas”). Mas aquelas que mostram dados reais, que valorizam e informam a escolha do jovem sobre o tema, têm um efeito muito maior. Ela nos disse que, com o fim da proibição – mesmo que a proibição se mantenha para menores de idade-- eles vão poder fazer campanhas de prevenção mais eficientes e tem a expectativa de que caia o consumo entre adolescentes.

Se isso tudo já apontava que um caminho mais inteligente para lidar com esse tema parece ser possível. O grande choque veio com a visita que fizemos à Live Well. Uma enorme fábrica de produção de maconha.

Um galpão de 11.000 m2. Com 80.000 plantas adultas e uma produção de 1 tonelada por mês --um quarto da produção autorizada no estado. 300 funcionários trabalhando. Em janeiro serão 430. Por mais que eu já tenha lido e estudado muito sobre o assunto, é muito diferente quando você vê aquilo materializado na sua frente.

A primeira coisa que me veio à cabeça foi a ideia de que, no Brasil, este mesmo processo produtivo utiliza as mesmas centenas de pessoas (talvez até mais) – algumas no Paraguai- mas elas não tem carteira assinada. Têm revólveres. Têm uma expectativa de vida de menos de 25 anos. Alimentam uma história de violência que mancha de sangue a história recente do Brasil.

Fiquei me imaginando um jovem vindo do Brasil escravagista. Chegando a um pais que tinha a capacidade de se desenvolver economicamente sem a escravidão e pensando: “nossa, é possível um mundo sem escravidão”. Tenho poucas dúvidas de que no future se olhará para a guerra às drogas como hoje olha para a escravidão. Com uma vergonha dos antepassados. “Como foi possível terem aceitado isso?”

A regulamentação do uso recreativo apresenta desafios enormes. Evitar os erros que nossa sociedade comete com o álcool é o maior deles (nenhum dos modelo que estão sendo colocados em pratica aceita o consumo público ou a propaganda de maconha). Mas já sabemos que o modelo criminalizador que vigora atualmente não consegue reduzir o consumo, cuidar da saúde das pessoas e produz mortes em séries e cárceres superlotados.

Fonte: CartaCapital

outubro 29, 2013

"Para entender os Black Blocs", por Raphael Tsavkko Garcia

PICICA: "A autodefesa popular não pode jamais ser vista como "antipolítica" ou "apolítica", muito menos "despolitizada"."

Para entender os Black Blocs

A autodefesa popular não pode jamais ser vista como "antipolítica" ou "apolítica", muito menos "despolitizada".




Os Black Blocs não são um movimento ou um grupo organizado aos moldes tradicionais de coletivos e partidos, são uma ideia, um método. São indivíduos que podem ter algum tipo de organização primitiva (normalmente via redes sociais) e se juntam durante manifestações para servir como escudo para o movimento social. É possível que grupos adotem a tática Black Bloc, mas não há um “grupo” Black Bloc.

Como já escrevi antes, são uma arma defensiva útil e necessária em tempos de imensa brutalidade policial. Não à toa, foram elogiados pelos professores do Rio em greve e são visto como os salvadores por muitos que se encontraram diante da violência policial e veem neles um alento, uma proteção. Não faltam histórias na internet sobre quem dizia até mesmo temê-los, mas que, na hora do aperto, do quase sufocamento com o gás da PM ou quando na direção das balas da polícia, foram salvos por eles.

A função dos Black Blocs não é a de fazer a revolução, mas a de proteger o movimento social. E usam para este fim as “armas” que podem.

Ideologia

É um equívoco acreditar que a tática Black Bloc serve para derrubar o Estado. Ela é fruto de raiva e de necessidade. Não é organizada, e nem sempre é ideológica no sentido de ter um direcionamento anarquista ou marxista. É apenas uma forma que uma parcela da população encontrou de deixar fluir sua raiva contra o Estado e defender manifestações legítimas no processo.

Este aparente vazio ideológico, porém, não deve ser compreendido como alienação ou mesmo como algo que serve de massa de manobra. Não serve. Os integrantes podem não ter um direcionamento ideológico claro, mas sabem quem são seus inimigos.

E, claro, não podemos falar deste esvaziamento ideológico como um fenômeno uniforme entre os Black Blocs, que reúnem desde anarquistas autênticos, passando por estudantes, professores e mesmo moradores de favela e um ocasional desocupado.

Não é um grupo uniforme, até porque não é, enfim, um grupo. Formam-se grupos extremamente diversos durante manifestações (convocados via redes sociais ou espontâneos) com o intuito de autodefesa que adotam a tática de violência revolucionária (tática Black Bloc) e, passado algum tempo, extravasam a raiva nos símbolos mais claros da opressão a que muitos ali são submetidos, notadamente bancos, bens públicos e um ocasional Clube Militar.

A autodefesa popular não pode jamais ser vista como “antipolítica” ou “apolítica”, muito menos “despolitizada”, assim como o repúdio por parte de alguns elementos que formam as linhas Black Blocs dos partidos tradicionais não é antipolítica. O repúdio às instituições carcomidas do Estado e críticas localizadas à atuação partidária (em especial do PT, PMDB e PSDB, todos que se declaram falsamente de esquerda) não podem ser encaradas com uma crítica generalizada à política. Nada poderia ser mais incorreto e distante da realidade.

É inegável, porém, que grupos podem se apropriar deste discurso e o transformar naquilo que muitos temem, num discurso esvaziado e de tons fascistas, mas estes grupos não estão nas ruas (estiveram em algum momento em junho, mas já voltaram para suas casas, para seus grupelhos de galinhas verdes e similares), não representam a maioria daqueles que saem para a luta.

Um grupo não pode ser responsabilizado pela apropriação que outro faz de suas teses, ideias e pensamentos (e ações), assim como o pensamento Black Bloc não pode ser responsabilizado pelo fascismo que uns buscam impor à ideologia.

Ponto importante presente em análises honestas sobre os Black Blocs é o problema da perpetuação do caráter difuso destes, e na possibilidade da violência se tornar um fim em si mesma, da revolta e raiva presentes representarem a totalidade da “alternativa” apresentada pelos grupos que utilizam a tática Black Bloc.

Por outro lado, não é pertinente a crítica de que os Black Blocs, compreendidos por muitos como um grupo, não levariam propostas aos fóruns legítimos, como os fóruns grevistas do SEPE, sindicato dos professores do Rio. Ora, tal afirmação demonstra um profundo desconhecimento do que é a tática Black Bloc e do que ela representa.

Protagonismo

Ao meu ver não é papel dos Black Blocs se preocupar em primeiro lugar com marketing pessoal, senão agir em defesa daqueles que vão às ruas (também é válida a discussão sobre ações ofensivas e defensivas). Até porque, repito, não são um grupo.

Não há erro algum no emprego da tática. A grande questão, no entanto, é a falta de cobertura dada por partidos de esquerda a quem vai para a linha de frente defendê-los. Como já discuti algumas vezes, me parece ser apenas o ranço de algumas correntes marxistas que necessitam sempre estar à frente, sempre ser vanguarda.

Não é produtiva a briga de egos entre grupos que se veem na vanguarda e se sentem acuados frente a perda de protagonismo para os Black Blocs. Um sentimento até mesmo burro, visto que partido/movimento social é diferente de Black Bloc, e não eles não disputam entre  si o(s) mesmo(s) espaço(s). Na verdade, caberia aos partidos se aproximar dos Black Blocs, buscando canalizar a raiva dos grupos que adotam esta tática, buscando direcionar e mesmo facilitar a politização de muitos dos adeptos.

Em suma, cabe aos movimentos organizados, aos partidos e movimentos sociais compreender a tática Black Bloc e, ao invés de subirem em pedestais ideológicos e lamberem as feridas da vanguarda perdida, buscar abrir um canal de diálogo com aqueles mais afeitos a isto, criando táticas conjuntas e buscando aprimorar a autodefesa popular.

Esquerda e falsa vanguarda

O que temos hoje são Black Blocs numa ponta, e partidos/movimentos em outra, empedernidos, incapazes do diálogo e da compreensão. Ora, temos uma infinidade de grupos e tendências de esquerda que sequer conseguem sentar numa mesa e dialogar, que o diga quando surge algo mais radicalizado e absolutamente fora de suas órbitas de controle (ou mesmo compreensão).
Ou seja, o grande problema aqui sequer é a incapacidade de partidos dialogarem com os adeptos do Black Bloc, mas a incapacidade da esquerda conversar entre si.

O SEPE, sindicato dos professores em greve no Rio, foi a única organização capaz de compreender até o momento o que são e como agem os Black Blocs. O SEPE abriu diálogo, homenageou e foi defendida pelos Black Blocs.

Setores do PSOL e o PSTU preferem permanecer na posição de falsa vanguarda, enquanto o PT, parte do Estado repressor e aliado de primeira grandeza dos políticos responsáveis pela repressão no Rio, permanece na pura e boçal criminalização (não só dos Black Blocs, mas de todo o movimento social e grevista).

Por mais que “queimar lixos” não contribua para nenhuma revolução, é um primeiro passo para a radicalização do movimento social. Mais produtivo buscar dialogar e entender que simplesmente criminalizar – e nisso realizar o trabalho da mídia, do PT, do PMDB e do PSDB.

E a mídia?

Se dependermos da Globo (ou da Record, ou de qualquer outro veículo da grande mídia) para nos informar sobre as ações Black Blocs, sem dúvida a imagem será negativa, mas a imagem dos professores em greve ou de qualquer movimento social organizado é igualmente negativa pelo prisma da grande mídia, salvo em ocasiões específicas onde apoiar um movimento social ou uma pauta possa ser interessante no ataque a inimigos selecionados em momentos bem específicos.

O que vemos são professores agradecendo aos Black Blocs por sua proteção.

São milhares de pessoas que saem às ruas vendo que os Black Blocs funcionam como uma linha de defesa – ainda que fraca – frente à violência e brutalidade policiais. Como foi dito no Twitter (infelizmente me escapa a autoria), quantas pessoas foram mortas pela polícia e quantas pelos Black Blocs? Ou seja, se estamos falando em “violência”, em “assustar” e mesmo em afastar pessoas de manifestações, creio que a mera presença da PM seja mais “eficaz” que a dos Black Blocs.

Quantos conhecem pessoas que foram agredidas pelos Black Blocs? Aliás, as manifestações pelo país, em especial no Rio, onde a ação Black Bloc vem se mostrando mais intensa, não param de crescer e se radicalizar de diferentes maneiras. Logo, nem a violência repressiva da PM e nem a resposta Black Bloc tem tido “sucesso”, se tomarmos o prisma liquidacionista de setores fanatizados do PT e da mídia, que objetiva enfraquecer as mobilizações. Cai por terra mais uma mentira dita aos quatro ventos.

No fim das contas, “assustar” ou mesmo não ser do agrado da “população em geral” não é definidor de moralidade, utilidade ou viabilidade, pois precisamos compreender por qual prisma essa “população em geral” tem acesso à informação.

Vejam, por exemplo o discurso da mídia sobre protestos na França, com carros queimados. Vandalismo? Não. Apenas manifestações.

Quem está nas ruas lutando sabe do papel dos Black Blocs. E a mídia encontraria qualquer outra desculpa para deslegitimar e esconder as manifestações de professores em greve ou de quaisquer outros grupos sociais em luta nas ruas. Os Black Blocs são apenas a desculpa do momento. Em junho, antes da violência generalizada contra jornalistas obrigar a grande mídia a alterar seu discurso, não eram as reivindicações dos manifestantes a pauta, e sim a violência da PM, que era glorificada.

Além disso é preciso também ter em mente o papel desinformador e mesmo criminosos de quem fica em casa gritando contra o “PIG”, mas fazendo coro a ele durante manifestações, criminalizando professores, Black Blocs e movimentos sociais que se insurgem contra os governos a que estes fanáticos são simpáticos.

Violência Black Bloc versus Violência Estatal

Uma discussão válida, porém, é o papel defensivo versus o ofensivo dos Black Blocs (já declarei minha posição contrária a ações ofensivas enquanto em manifestações, ainda que não descarte o uso da violência revolucionária em casos e momentos específicos), mas jamais culpar a autodefesa popular pela ação policial. E digo ação e não reação por um simples motivo: na ampla maioria das vezes, a PM começa com provocações e violência, respondida pelos Black blocs. A mera presença de pessoas nas ruas é uma provocação para a PM e para o Estado.

Logo, declarar que os Black Blocs “servem” ao Estado na legitimação da violência é descambar para o debate do ovo e da galinha. Um falso debate. E um debate que serve aos propósitos do opressor, pois pinta um quadro em que, sem os Black Blocs, tudo seriam flores e não haveria violência. Os protestos de junho comprovam que este declaração é pura mentira: bastava cruzar uma linha imaginária que a violência policial começava; bastava encarar um PM e a violência começava; bastava ficar parado, que um P2 estratégico lançava um molotov contra seus próprios companheiros… e a violência começava.

Qualquer um que tenha mínima história junto aos movimentos sociais e não esteja no processo de penhora ideológica por este ou aquele partido sabe perfeitamente que a violência estatal é uma constante, independe de “provocação”.

Esta tese quase marilenachauiana de “provocação Black Bloc” não procede. Na verdade é uma falácia tremenda. A PM bate, não importa a presença de resistência organizada.

Conclusão

A principal linha auxiliar da direita no país, hoje, chama-se Partido dos Trabalhadores, cuja maioria de eleitos vota junto com Paes e Cabral, cujos representantes eleitos são responsáveis por violações (caso da Bahia, do Rio Grande do Sul), oferecem a Força Nacional para a repressão a movimentos populares, cuja direção está ligada carnalmente ao PMDB e outros partidos da mesma espécie e, ainda, cuja militância em peso silencia ou mesmo aplaude ações violentas da PM contra a população.

Culpar os Black Blocs por responderem à violência que invariavelmente viria por parte do Estado é culpar a vítima pela agressão sofrida. Temos, sim, é de cobrar uma posição dos partidos estabelecidos, em especial da esquerda, em relação à violência policial. E não apenas uma posição, mas maneiras de se organizar a população para a autodefesa.

Qual o projeto de setores do PSOL, do PSTU, do PCO, dentre outros, para a defesa daqueles que saem às ruas para reivindicar seus direitos frente à violência do Estado? Atacar os Black Blocs não é uma resposta válida.

Sim, os Black Blocs precisam de direcionamento, precisam de maior organização, mas não podem, jamais, ser culpados pela violência do Estado. Cabe aos partidos que se enxergam como vanguarda descerem de seus pedestais e aceitarem o trabalho de politizar as massas, de direcionar e canalizar raivas e anseios.

O Estado é repressor e chegou a hora de alguém se levantar contra isto. E qualquer um que aplauda a repressão, que defenda o uso da Lei de Segurança Nacional, não passa de um fascista.

Fonte: Amálgama