PICICA: "Seria
demais esperar que os governos reagissem às manifestações de junho pela
via do diálogo, no lugar daquela vidraça do consenso imaginado, que foi
estilhaçada pela potência das águas. Esperava algo mais do que uma
vidraça, talvez algo como uma lona flexível e transparente. Uma que
desse conta de não se quebrar à primeira pedra, que acolhesse as
demandas colocadas pelas manifestações, dando conta de lidar com as
tensões em jogo nas diferentes expressões delas.
Mas esta postura dialógica do governo
com a população não interessa aos empresários e corporações mediados
por uma mídia oligopolista. Os interesses assumidos e recuos
governamentais parecem não estar em questão. O verdadeiro diálogo dos
governos se dá com os empresários e as apostas governamentais vão no
sentido de reprimir em favor dos interesses mercadológicos que são
tratados nesses diálogos. É como se o escudo de aço da repressão dos
governos e a nuvem midiática estivessem a proteger esses privilegiados,
colocando o estado a seu serviço."
Por que o senhor atirou em mim?
30/10/2013
Por Marcelo Castañeda,
Por Marcelo Castañeda, sociólogo e UniNômade
Esta pergunta, feita por Douglas Rodrigues, 17 anos, ao policial que nele acertara um tiro fatal, mostra o estado das relações de poder
que vigoram no Brasil há tempos, em especial na periferia. Depois que a
vidraça se quebra após uma chuva forte não adianta colar os cacos.
Resta providenciar outra “proteção”, pois as frestas vão permanecer
vazando a água da chuva que deságua da multidão, incomodando. Essa chuva
da multidão vai e vem, em uma dança que continua a molhar e resfriar o poder constituído.
Passaram quase cinco meses de insurgência da multidão, com maior potência no Rio de Janeiro,
mas espalhada pelo país inteiro. Basta ver a recente semana de
mobilização pelo passe livre em São Paulo, onde teve até agressão a um
coronel da PM, como ato final e principal aperitivo para a degustação da
mídia corporativa. A vidraça estilhaçada de um Brasil rumo ao
desenvolvimento, sexta economia do mundo, com a emergência de uma “nova”
classe média, deu lugar à repressão, algo como um escudo de aço, desses
que o Batalhão de Choque usa para avançar contra os manifestantes.
É
com repressão que os governos, em seus diversos níveis, tentam estancar
os múltiplos movimentos que constituem a multidão, ganhando corpo a
partir de junho. Isso ficou claro nesses cinco meses. E os movimentos
não cessam, fluem como água. Foi a forma violenta de lidar com questões
sociais que tirou a vida de (mais) um jovem da periferia, entre tantos
que se vão, desta vez em São Paulo. Amarildo até agora continua
desaparecido. Mortos e desaparecidos. E os protestos que se seguiram na
periferia de São Paulo ganharam destaque na mídia menos pela vida
ceifada e pela violência policial, do que pelo fogo que queimava ônibus e
caminhões e pelos saques de lojas. Mais do mesmo de uma narrativa
sórdida da mídia. Contra ela, a democracia que estamos constituindo nas
ruas. As favelas e periferias lidam com a violência policial desde a
origem, bem como com aquela praticada por milícias e pelo narcotráfico.
São populações que nascem e crescem em um estado de exceção, sob a
sombra da brutalidade e do terror. E quando se manifestam, passam a
engrossar o coro sórdido do vandalismo, entoado pelos veículos de mídia.
Tem que reprimir, é o que se pode ler mil vezes como mensagem central.
Seria
demais esperar que os governos reagissem às manifestações de junho pela
via do diálogo, no lugar daquela vidraça do consenso imaginado, que foi
estilhaçada pela potência das águas. Esperava algo mais do que uma
vidraça, talvez algo como uma lona flexível e transparente. Uma que
desse conta de não se quebrar à primeira pedra, que acolhesse as
demandas colocadas pelas manifestações, dando conta de lidar com as
tensões em jogo nas diferentes expressões delas.
Mas esta postura dialógica do governo
com a população não interessa aos empresários e corporações mediados
por uma mídia oligopolista. Os interesses assumidos e recuos
governamentais parecem não estar em questão. O verdadeiro diálogo dos
governos se dá com os empresários e as apostas governamentais vão no
sentido de reprimir em favor dos interesses mercadológicos que são
tratados nesses diálogos. É como se o escudo de aço da repressão dos
governos e a nuvem midiática estivessem a proteger esses privilegiados,
colocando o estado a seu serviço.
Essa
lamentável aposta em uma intensificação repressiva dos governos traz um
desafio para os movimentos que, ao menos no Rio e em São Paulo, passaram a adotar rotineiramente uma tática de ação direta específica frente à violência policial.
Esta tática é legítima, mas está em questão, da mesma forma que a
violência policial não pode sair de foco. Mais preocupante se torna o
cenário quando Dilma, pela sua conta no Twitter, declara apoio
incondicional a esta violência, como fez no sábado (26/10), ao se
solidarizar com o coronel agredido em São Paulo.
É
hora de os movimentos mostrarem inteligência, flexibilidade e mostrar
que não é sempre que a ação direta vai acontecer, em especial para não
se tornar previsível, tornando-se um alvo fácil num momento extremamente
perigoso para as liberdades de manifestação, tendo em vista os caminhos
que a repressão vêm tomando no sentido de criminalizar os movimentos,
mobilizando diversos aparatos legais e midiáticos. O momento é tenso.
Dito
isso, a revolta popular como resposta à morte de Douglas Rodrigues em
São Paulo é legítima. Desde sempre, os moradores da periferia recebem a
violência dos policiais. Trata-se de um processo de rotinização da
violência. Muitos já nascem condenados. E, como domingo e segunda (27 e
28/10) em São Paulo, quando decidem reagir são (sobre)condenados pela
mídia por atearem fogo em caminhões, ônibus e carros em uma rodovia.
Foram 90 presos. Esperavam uma manifestação ordeira e pacífica de quem é
violentado cotidianamente? As pessoas se indignam da forma que elas
conseguem expressar, e não da forma que achamos que eles devem se
expressar. E qual foi a solidariedade dos governantes em relação ao
jovem de 17 anos que teve sua vida ceifada? Onde está o reconhecimento
dos governantes das práticas violentas da PM?
Vou
ficar com o aspecto mais visível, tratando das duas faces da
solidariedade da presidenta Dilma Rousseff em sua conta no Twitter, pois
nenhuma nota oficial foi emitida.
1.
Dilma deixa a entender que a morte de Douglas Rodrigues, 17 anos, foi
causada por duas abstrações: a violência e a desigualdade. Mas não fala
do sujeito desta violência, que é a polícia militar. Sua solidariedade
não atribui qualquer responsabilidade ao fato.
Para
o coronel uma solidariedade quase imediata, no dia seguinte, mereceu 6
tweets. Para Douglas, 4 tweets e um intervalo de 3 dias para pensar
sobre a questão, para o devido cálculo eleitoral, a conversa com o
marqueteiro de plantão e nada de apontar responsabilidade da violência
policial. Nem um discurso oficial sobre a barbárie estatal que vem
varrendo o país com intensidade de junho para cá, quando a repressão
parece ter sido o caminho escolhido pelos governos. Parece que está tudo
muito bem acordado. Nem uma palavra sobre o Amarildo e desaparecidos. É
pouco. Ou talvez seja o que a sensibilidade e os acordos da presidenta
permitem.
Triste
democracia brasileira baseada no cálculo eleitoral e no marketing,
cujas decisões são feitas em reuniões de gabinete em que os interesses
econômicos, em primeiro plano, e eleitorais, em segundo, são os
principais aspectos a serem considerados. O interesse público e o
diálogo com a população são varridos para debaixo do tapete. Só que a
multidão ainda está a solta e, apesar do escudo de aço, continua fluindo
potente e a procurar brechas, nem que seja para enferrujá-lo até ele
ceder.