PICICA: "Julia Kristeva, filósofa e psicanalista búlgaro-francesa, inicia o primeiro capítulo do livro Estrangeiros para nós mesmos
com uma sondagem poética da nossa xenofobia: “Estrangeiro: raiva
estrangulada no fundo de minha garganta, anjo negro turvando a
transparência, traço opaco, insondável.” Que entidade intransponível é
essa que nos impede a visão? É o diferente, o clandestino, aquele que
por estar fora da cultura, a nossa cultura, não se pode predizer – uma
espécie de invasor desarmado e silencioso que se muda para a casa ao lado,
separado de nós apenas por um muro, e me confronta com um mundo que não
é o meu. Do outro lado do muro há sempre uma terra para a qual nunca se
voltará, uma palavra exótica para expressar o luto pela pátria perdida,
ou um país que se apaga aos poucos da memória e do coração em um
processo irrefreável de esquecimento."
Poesia sem fronteiras: entrevista com Nathalie Handal
"Se tornou vital para mim apresentar as poetas árabes e mostrar a diversidade de suas poesias."
“my country comes to me, tells me:
Compatriota – I will always find you
no matter what language you are speaking”
- excerto de “Blues hours”
Compatriota – I will always find you
no matter what language you are speaking”
- excerto de “Blues hours”
Julia Kristeva, filósofa e psicanalista búlgaro-francesa, inicia o primeiro capítulo do livro Estrangeiros para nós mesmos com uma sondagem poética da nossa xenofobia: “Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo de minha garganta, anjo negro turvando a transparência, traço opaco, insondável.” Que entidade intransponível é essa que nos impede a visão? É o diferente, o clandestino, aquele que por estar fora da cultura, a nossa cultura, não se pode predizer – uma espécie de invasor desarmado e silencioso que se muda para a casa ao lado, separado de nós apenas por um muro, e me confronta com um mundo que não é o meu. Do outro lado do muro há sempre uma terra para a qual nunca se voltará, uma palavra exótica para expressar o luto pela pátria perdida, ou um país que se apaga aos poucos da memória e do coração em um processo irrefreável de esquecimento.
O que faz alguém abandonar uma história e submeter-se a um recomeço degradante em outro lugar? Deixar de lado algum tipo de estabilidade, seja ela econômica, política ou social, e experimentar as privações da clandestinidade? É uma reflexão inglória, fadada a se desdobrar em novas questões exponencialmente, mas tarefa digna na medida em que pensa um fenômeno que transcende nossa época. A imigração e o refúgio são provas que a história da humanidade é uma reprise ad aeternum dos mesmos sistemas opressores, apenas travestidos em novas roupagens.
É nesse contexto que surge a poesia de Nathalie Handal, poeta de origem palestina nascida em Belém, que viveu em muitos países – nos EUA, na Europa, Caribe, América Latina, no mundo árabe – e fala muitas línguas. Seus personagens, perdidos eternamente no ir e vir entre fronteiras, são marcados pela transitoriedade e pela nostalgia. O mundo é ainda uma Torre de Babel de línguas e etnias como era em outros tempos, mas agora com leis mais restritas que anulam em partes a liberdade de ir e vir – um mal necessário. Assim nasceram livros como The lives of rain ou Poet in Andalucia, releitura às avessas do clássico Poet in New York, de García Lorca. E foi assim que, anos antes, Nathalie teve a ideia que viria a se transformar na coletânea The poetry of arab women, dando visibilidade às mulheres poetas do mundo árabe, cujas produções são largamente preteridas por Ocidente e Oriente. Nathalie Handal ainda não possui traduções no Brasil, a despeito de seus poemas serem escritos em inglês e lidarem com temas atuais.
Algumas informações sobre a imigração no Brasil: apenas na cidade de São Paulo foram registrados trinta trabalhadores estrangeiros por dia no primeiro semestre de 2013. Por outro lado, até agosto 414 foram expulsos por terem cometido crimes ou por apresentar conduta “incompatível com os interesses nacionais”. Em 2012 o número de solicitações de refúgio recebidas pelo Brasil, um total de 2.008, foi o triplo de 2010 e estima-se que este ano terá aumento ainda maior devido, em partes, ao crescimento dos conflitos no Oriente Médio. Esses refugiados, de um modo geral, têm dificuldades para se integrar e são recebidos friamente pela população. É sobre eles que fala Nathalie Handal.
A autora concedeu ao Amálgama uma entrevista em que fala sobre sua cultura e influências, além de testemunhos de sua experiência de vida errante.
*
Nathalie Handal: A definição de pátria é frequentemente determinada pelas especificidades da nossa jornada. A minha é Belém, de onde sou originalmente. Mas tenho muitos lares, que são os lugares nos quais escolhi existir: Paris e Nova York. Também nunca estou muito distante das grandes capitais da América do Sul, que continuam a intrigar meu espírito frequentemente. Diferente de Pessoa eu não possuo um idioma materno, pois cresci com muitas línguas diferentes, mas, como ele, é no universo das palavras, mais precisamente na poesia, que encontro meu lado mais profundo.
Você frequentemente usa palavras de diferentes línguas em seus poemas. Isso facilita a identificação com seus personagens andarilhos. Particularmente, gosto muito do verso de “Caribe in Nueva York” em que o narrador caribenho diz “ando pelo Central Park usando luvas e com nossas ilhas em meus bolsos”. Esse sentimento de nostalgia, que nós brasileiros chamaríamos de saudade, é realçado por versos como “sonho com la tierra” e “não consigo ver as belas pernas bronzeadas de las mulatas”. Que reações você tem das pessoas cujas situações refletem os exilados e oprimidos de seus poemas?
São muitas as reações… Mas é claro, nostalgia, saudade, como dizem os brasileiros, ou la morriña, como dizem os galegos, é sempre a mais intensa. A ausência e a saudade de um lugar mexem com nossos corações de uma maneira que é ao mesmo tempo mística e tocante. Simone Weil escreveu: “Ter raízes é talvez a mais importante e menos reconhecida necessidade da alma humana”. Entretanto, a questão das raízes, do exílio, da identidade e do lar continua a ser um dos debates mais fundamentalmente complicados que temos. É uma questão que dura toda a vida.
A saudade está sempre comigo, ao meu redor. Estive no Peru há pouco tempo atrás, e quando retornei tudo que fazia era ouvir a música “La flor de la canela”, de Chabuca Granda. A canção é como um hino para Lima. O espírito dessa música me lembra as tradicionais cantigas árabes que continuo cantando e assobiando enquanto sinto a falta das colônias de oliveiras tão características do Levante – Palestina, Líbano, Síria, Jordânia – e do Mediterrâneo.
O mercado editorial brasileiro começa a se expandir para além das fronteiras americanas e da Europa ocidental, e há um aumento considerável no número de autores de origem árabe. Mas ainda há poucos poetas traduzidos. Nesse contexto, quais são suas principais influências? Há algum nome contemporâneo que gostaria de citar?
A literatura árabe é rica e diversa, desde o período pré-islâmico até os contemporâneos. São autores demais para listar. Mas não posso deixar de citar Mahmoud Darwish – um dos poetas contemporâneos mais extraordinários do mundo. Ele tem grande influência sobre mim. Depois de Darwish, o poeta do Oriente Médio para o qual sempre retorno é o maravilhoso assírio-iraquiano Sargon Boulus. Outros poetas árabes que admiro são Muhammad Bennus (Marrocos), Amal Dunqul (Egito), Nizar Qabbani (Síria) e Saadi Youssef (Iraque), para citar alguns.
O poeta egípcio Tamim al-Barghouti disse que a Primavera Árabe renovou o interesse por poesia nos países árabes. Muitos poemas eram cantados pelos manifestantes durante a revolução, e esses poemas tinham origens bastante diversas, vindos de outros países além do Egito. Sendo uma alma nômade em constante deslocamento, você identifica esse tipo de união em outras partes do globo? É uma característica árabe ou algo que possa ver ocorrendo em outros lugares?
É, de fato, uma característica árabe. Mas o poder da poesia é visível por toda a Ásia, África e América Latina. Alguns momentos me vêm à cabeça: Praça Tiananmen, em 1978. O incrível Bei Dao e seu amigo Mang Ke coeditaram e lançaram o jornal literário Jintian (Hoje, em tradução), que surgiu primeiro na forma de dazibao (forma de protesto que envolve grandes caracteres chineses feitos à mão e colados em paredes) no Muro da Democracia, em Beijing, onde as pessoas originalmente contavam suas histórias de sofrimento durante a Revolução Cultural. O jornal tinha de ser publicado em segredo, e Bei Dao e alguns voluntários rodavam Beijing de bicicleta para juntar as páginas – o que exigia grande coragem, por ser considerado um ato politicamente subversivo pelas autoridades chinesas. Quando o jornal surgiu no Muro houve uma grande reação aos poemas e ensaios. Havia espaços deixados em branco após cada trecho para que as pessoas pudessem escrever suas próprias respostas e comentários. Em pouco tempo a revista havia circulado por toda a China. Bei Dao disse: “O maior perigo era uma questão de linguagem. Nossa poesia foi escrita no que se configurava como uma nova linguagem, bastante diferente da linguagem oficial a que as pessoas estavam acostumadas. Foi isso que as animou. Era incomum ter tantas pessoas fazendo poesia”.
E no Chile de Neruda: em 2004, o poeta afro-americano Yusef Komunyakaa, o americano de origem latina Martín Espada e eu fomos convidados para celebrar os cem anos de Pablo Neruda. Fomos a inúmeras cidades e vilas, de Santiago a Isla Negra, e no caminho – nos trens, nas ruas, na praia – milhares e milhares de pessoas recitavam os poemas de Neruda. Foi surreal. Em alguns momentos parecia um show de rock, mas com poesias, e em outros uma cerimônia espiritual, ou como se história e memória convergissem.
E em Port-au-Prince: fui ao Haiti após o terremoto de 2010. No meio do desespero do povo haitiano, o que aparentemente os fez persistir na vida foram as canções. E por canção quero dizer palavra, fé no que é maior do que nós. Eles cantavam poemas. Aquele momento foi poesia.
Qual é a sua percepção sobre a presença de mulheres árabes na literatura? Pode nos contar um pouco sobre o processo de criação de The poetry of arab women?
Quando comecei [o projeto] The Poetry of Arab Women eu não sabia o que estava fazendo. Eu certamente não fazia ideia da imensa quantidade de trabalho que exigia, felizmente, porque poderia ter me desencorajado. Foi um aprendizado em muitos níveis. Quando estava em Paris, em 1992, comecei a trabalhar mais com o mundo árabe, e logo percebi que as mulheres eram marginalizadas na literatura e na cena literária árabe. Se tornou vital para mim dar à luz esse projeto para erradicar essa invisibilidade, apresentar as poetas árabes e mostrar a diversidade de suas poesias. Igualmente essencial era unir essas poetas independente da língua em que escrevessem e de terem nascido ou não no mundo árabe. Também era importante escrever uma introdução substancial sobre a literatura dessas mulheres e salientar as particularidades de cada país da região. Assim, a introdução apresenta o movimento feminista, a cena literária feminina, as diferenças e semelhanças entre essas poetas e os contextos políticos e sociais que as cercam.
Muita coisa mudou. Para começar, hoje as pessoas estão conectadas pela internet e redes sociais – é uma interação instantânea. Uma paisagem completamente diferente. Quando trabalhava na primeira edição eu era como uma detetive, uma caçadora, tentando reunir livros e autorizações. Usava o telefone, fax e o correio – dá pra imaginar quanto tempo levava. Foi uma verdadeira aventura. Lembro de pedir a uma amiga em Túnis, por carta ou telefone, para gentilmente me ajudar a ter certeza de que uma das poetas assinaria e enviaria a autorização. Depois descobri que ela dirigiu durante duas horas até o interior do país para pegar aquela assinatura. Eu jamais teria pedido se soubesse que seria tão trabalhoso. Para ela era normal. Esse é um exemplo da generosidade árabe.
Language for a new century: contemporary poetry from the Middle East, Asia and Beyond [outra coletânea de Nathalie Handal] foi concebido após os eventos de 11 de setembro de 2001. Meus coeditores e eu sentimos uma grande solidariedade pelas outras pessoas de origem oriental. Ficamos incomodados com as imagens negativas transmitidas pela mídia sobre o Oriente. E embora não tivéssemos soluções para o que estava acontecendo, nem pudéssemos explicar ou definir o Oriente tão rigorosamente, sentimos uma necessidade profunda de responder de qualquer forma que estivesse ao nosso alcance. Então escolhemos o que melhor conhecíamos, nossa prece natural, a poesia. Buscamos as vozes humanas que nos encantaram e mudaram nossas vidas e nossos espíritos na esperança de agregar algo ao diálogo em andamento entre Oriente e Ocidente.
Você acredita que ainda há um papel para os poetas e artistas em um mundo em constantes mudanças?
Todos precisam definir o seu papel. Acredito que a literatura e a arte nos desafiam e oferecem outra lente pela qual enxergar os detalhes do mundo. Uma canção, um livro ou uma pintura podem não derrubar um ditador de imediato ou resolver assuntos urgentes, mas com o tempo essas construções criativas se tornam partes fundamentais das mudanças sociais, políticas e culturais.
Douglas Marques
Curitibano, graduando em Psicologia, leitor assíduo e escritor nas horas vagas.
Fonte: Amálgama
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