outubro 13, 2013

Cartografia do 7-O no Rio: “o manifestante é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo”, por Talita Tibola, Bruno Cava

PICICA: "[...] quem lê os jornais ou assiste à TV pode ter a impressão que o problema da violência no Rio de Janeiro é causado por um punhado de vândalos niilistas, inebriados pela própria energia destrutiva. Noutras palavras, por um “bando de malucos quebrando tudo”, tentando se infiltrar nos movimentos legítimos. Fica parecendo que o Rio vive uma época de paz e prosperidade, em que apenas grupos extremistas insistem em exprimir insatisfação, gratuitamente. Seriam inimigos da bela democracia brasileira. É, verdadeiramente, uma mentalidade colonial, em vigor no século 21, e cujo bom tom consiste em elogiar e defender a convivência saudável entre todos os sujeitos sociais. Segundo essa mentalidade, opressores e oprimidos deveriam caminhar tranquilamente de mãos dadas em direção ao progresso, que assim, ao fim e ao cabo, seria melhor para todo mundo."

Cartografia do 7-O no Rio: “o manifestante é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo”

12/10/2013
Por Talita Tibola, Bruno Cava


Por Talita Tibola e Bruno Cava
multitude

Ouvem-se algumas explosões na câmara dos vereadores, fogos de artifício, todos se exaltam, percebem que o alvo não são as pessoas que manifestam, mas o próprio prédio, os coros continuam. Aplausos. Na linha de frente, alguns já escrevem nas paredes da câmara: “+ livros, – bombas”, “Fora Cabral”, “Cadê o Amarildo?”. As portas estão sendo arrombadas, enquanto guardas no interior lançam bombas de efeito moral e jatos extintores de incêndio contra os manifestantes.

Ao mesmo tempo, mais pessoas continuam a chegar da Rio Branco, avenida que o cortejo havia percorrido desde a igreja da Candelária, num trajeto de quase 2 km. No exato momento do ataque à câmara, está passando pela avenida um grande grupo que anima a manifestação, com sambas, “Oh, Cabral é ditador, Cabral é ditador”, o refrão reforça o sentido das explosões, ainda que se expressando de maneira diferente. No centro da praça da Cinelândia, em frente à câmara, acendem uma fogueira e são entoados cantos. É a presença dos indígenas também mostrando mais uma vez que a Aldeia Maracanã1 resiste. Na praça são muitos, vestidos de preto pulam e gritam em coro, “Não vai ter Copa!”. De crianças a idosos, da mulher que declara ser “black avó” àquele que se desculpa com os black blocs por anteriormente ter condenado essa tática, a jovens de preto que não param de gritar: “o professor é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo” ou, em sentido simétrico, professores e outros entoando: “o black bloc é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”. 

A marcha é grande, uma dos maiores no Rio de Janeiro desde junho, os noticiários anunciam 3 mil pessoas, no dia seguinte são menos despudorados e falam em 10 mil. Um cálculo sem qualquer sustentação, levando em conta que, durante o carnaval, esses veículos anunciam que a mesma avenida lotada chega a atingir a casa dos milhões de pessoas. A quantidade de pessoas preenche a rua com cartazes e gritos, assim como, ao longo da marcha, os muros também são preenchidos por pixações: “isto é só tinta no tapume, vândalo é o estado”, “mulher bonita é a que luta”, “acabou o amor”, “A.C.A.B.” (sigla para all cops are bastards)

Caminhando pela Rio Branco, dá pra notar uma composição heterogênea da marcha que, no entanto, não se reduz a invocações cívicas pelo Brasil, ou genéricas denúncias anticorrupção, como eram comuns nas grandes manifestações de junho. Em nenhum momento, caiu em apelos vagos “contra-tudo-o-que-está-aí”. A marcha era não só uma das maiores desde então, mas também mais organizada e menos “espontânea”. Um grande diferencial em relação às marchas gigantes de junho. O fato é que, nesses quatro meses de intensas mobilizações, os protestos percorreram um longo arco colhendo demandas, indignações e transformações, articulando lutas antes mais dispersas.

De fato, as pautas eram concretas e estavam encarnadas nos sujeitos. Desde o começo do ciclo de protestos, no outono, parte da esquerda brasileira, dentro do governo ou na oposição, tem demonstrado uma impaciência e até exasperação ao não conseguir identificar (e menos ainda controlar) a direção e o conteúdo das manifestações. Isto levou, por vezes, a um argumento defensivo de que haveria uma “saída à direita”, quer dizer, que no final das contas o efeito das mobilizações seria enfraquecer governos e planejamentos da esquerda, tensionando-os à direita. Se, para desmobilizar revoltas e manifestações, a classe dominante costuma mobilizar o medo do caos e da baderna, para então elogiar (e assim conservar) a ordem estabelecida; essa esquerda acabou adotando a sua própria versão do medo, de uma “ameaça sorrateira e oculta”, o perigo do “fascismo” que os mascarados representariam. Tanto os tradicionais defensores do status quo, quanto a esquerda que (supostamente) seria pela transformação social, mostram assim estarem afetadas do medo, aderindo imediatamente ao argumento chantagista do “menos pior”. Mostram-se, portanto, desinteressadas de leitura ou pesquisa real das forças sociais na base dos protestos, apressando-se nas conclusões ou acatando as figuras midiáticas e maniqueístas de que mais seguro é manter as coisas essencialmente como estão.

Desta vez, contudo, a manifestação não deixou nenhuma margem de dúvida para que veio. O discurso da rua se polarizou ao redor da questão da educação, a partir da greve dos professores e outros profissionais da rede municipal. E não deixou de se ramificar em função dos diferentes grupos, passando pela oposição às três esferas de governo (federal, estadual e municipal), a resistência contra a criminalização dos protestos e manifestantes, a afirmação LGBT (“sem travesti não há revolução!”), a luta da moradia e contra as remoções, o feminismo (“sem mulheres não há revolução!”), o questionamento sistemático dos gastos e projetos para os megaeventos, a luta indígena, o movimento negro, entre outros. Muitos signos e bandeiras, — vermelhas, pretas, coloridas, roxas — coabitavam a avenida, desde a mais convencional organização sindical ou partidária, até grupos autonomistas oriundos das ocupas de 2011-12, anarcopunks e frentes autônomas — tudo isso ao som de bandinhas, cantorias, megafones e apitos. Quem esteve lá conferiu a positividade alegre do movimento, a sua grande força como uma junção improvável de diferenças e antagonismos, esvaziando quaisquer acusações à direita, de que se trataria de desordem e niilismo, e de parte da esquerda institucional (principalmente do PT), para quem o movimento careceria de direção política. 

Mas o que permitiu tão improvável composição, a ponto de os black blocs terem sido acolhidos abertamente antes, durante e depois da marcha dos professores? Sem serem isolados? 

Sobre esse tema, ainda é cedo para avaliações precisas, mas é possível comentar alguns elementos. Pra começar, é possível reconhecer o caráter irredutível da tática black bloc no Brasil. Ela brotou ao longo da sequência de manifestações, sem uma ideologia, centro ou liderança específicos, como uma resposta contingente, uma auto-organização diante das necessidades imprimidas por uma realidade de repressão brutal e criminalização permanente. É difícil precisar o grau de referência da tática black bloc brasileira, em relação a sua tradição nas lutas globais, além do nome e da indumentária. Desde as primeiras grandes marchas, em meados de junho, se formou uma linha de frente com manifestantes mais dispostos a resistir às ações repressivas das polícias. A fim de não ser criminalizados por um poder punitivo extremamente assanhado pela mídia, esses manifestantes começaram a cobrir-se com máscaras ou camisetas enroladas. Mais ou menos avulsos, em composição variável, eles acabaram gradativamente se reconhecendo e sendo reconhecidos como pertencentes a uma singularidade mais aguerrida, diretamente responsável pela autodefesa da manifestação. A abertura constitutiva, isto é, a possibilidade de qualquer um participar, desde o princípio, caracterizou essa prática. Quer dizer, o que fica sugerido é que se é black bloc durante a atuação enquanto tal, num protesto específico. Não se fecha um grupo. Talvez funcione numa lógica de enxame: se reúne para ações particulares mas, imediatamente depois, dispersa até a próxima ocasião oportuna.

Diferentemente do argumento que afastaram outros manifestantes, foram os black blocs um fator de sustentação dos protestos de rua, ao efetivamente dar consistência à resistência. Chegaram, inclusive, a dar ritmo aos protestos quando os números começaram a baixar. Ao assumir o exercício da autodefesa da multidão nas ruas e, às vezes, chegar a revidar com ataques a símbolos do capitalismo, o black bloc imediatamente atraiu o ódio da classe dominante. Capazes de sustentar os protestos na rua mesmo sob bombardeio policial, passaram à condição de principal pedra no sapato do poder punitivo, cujas engrenagens incluem a mídia corporativa, o sistema penal e as milícias (máfias) que controlam territórios, contratos públicos e serviços. A continuação dos tumultos passou a ameaçar os negócios ultralucrativos do mercado imobiliário, da indústria do turismo, da venda massiva de bebidas alcoólicas em virtual monopólio.

Evidentemente, a tática black bloc não tem o condão de confrontar à altura um estado super-violento e super-armado. Na realidade, sua ação concreta sequer se orienta nesse nível de embate, na medida em que depende totalmente de uma grande mobilização, em que está integrado, para poder atuar. 

Se a rejeição dos black blocs pela direita organizada já poderia ser esperada; causou espanto, porém, a rapidez com que pessoas e grupos à esquerda, — seja no governo, seja, em menor grau, na oposição, — esconjuraram-nos como seus inimigos. Sem procurar entendê-los minimamente, amiúde com informações tiradas da grande imprensa; essa esquerda oscilou entre a reprovação por serem rebeldes sem causa, irresponsáveis, ingênuos, e a acusação mais grave de servirem a “forças ocultas”, manipulados e perigosos à democracia. Também houve, em meio à desqualificação, uma tentativa de classificá-los como “coxinhas”: pessoas da classe média sem consciência política, movidas por pautas morais anticorrupção ou contra a política em geral, de qualquer forma descomprometidas com a mudança da sociedade. 

Qual não foi a perplexidade, entretanto, quando apareceram entre blacks blocs jovens da periferia, de escolas públicas, e um tímido (porém insofismável) apoio de parte da população pobre, especialmente em comunidades ameaçadas de remoção, sob o jugo da polícia, ou simplesmente depauperadas. Esta participação dos pobres, entre os black blocs, também pode ser explicação para a coragem e tenacidade deles em continuar voltando para a linha de frente. Pode parecer absurdo para quem vive em apartamentos num bairro bem situado, mas para muitas garotas e garotos mascarados nas manifestações, ainda é mais seguro desafiar a tropa de choque e encarar as balas de borracha, do que viver em suas comunidades sitiadas por milícias, tráfico armado e violência policial. No momento em que o enxame se reúne, os pobres não se sentem isolados, não sofrem a discriminação a que são submetidos nos territórios que habitam, e podem experimentar um “viver juntos” que é imediatamente pessoal e político, como sensação de apoio mútuo e produção de propósito coletivo. 

Tudo isso demonstra a magnitude do impasse exposto pelas manifestações no Brasil. Comprimidas à direita e à esquerda, sob intenso monitoramento e criminalização, surpreende como ainda tem a capacidade de renovar-se, chegando até o protesto dos 50 mil do 7-O. Ali, os black blocs estavam integrados aos professores, não apenas bem organizados, mas aparentemente motivados para continuar lutando e se qualificando. Eles podem ser uma resposta, ou pelo menos o terreno da pergunta, sobre saídas ao impasse. Isto porque os black blocs estão inscritos no meio de uma constelação de questões envolvendo os pobres, os negros, os LGBT e outras pautas minoritárias que, no conjunto, são a maioria da cidade. 

A novidade no 7-O esteve na acolhida que os professores deram aos black blocs e vice-versa. O que acabou transmitindo uma mudança de sensibilidade para o contexto das manifestações como um todo. Se antes os black blocs exerciam a sua tática com a anuência tácita da grande maioria dos demais manifestantes, agora se tornaram ostensivamente protagonistas lado a lado com as pautas afirmativas de direitos. Desta vez, essa mistura foi abertamente reconhecida, gerando um efeito de agenciamento de desejos, demandas e formas expressivas. Depois da remoção do acampamento de professores e outros ativistas, chamado OcupaCâmara, em 28/9, e da duríssima repressão do 1º/10 na Cinelândia, — quando a lei proposta pelo prefeito e indesejada pelos professores grevistas foi aprovada a toque de bombas, — muitos professores que não queriam ombrear com os black blocs perceberam que, sem eles, seriam simplesmente esmagados pelo governo, e a seguir esquecidos. Se antes avaliavam que as táticas poderiam prejudicar as negociações da greve, perceberam que, sem essa força político-estética, não haveria mais negociação alguma: apenas um “rodo” governamental cada vez mais ignorante.

No 7-O, pela primeira vez desde junho, os black blocs estiveram afetivamente integrados aos outros movimentos presentes, e não somente como braço tático da manifestação. Muitos professores não apenas agradeceram e incentivaram os jovens de preto, como formaram eles próprios um bloco híbrido: o “Black Prof”. Com escudos pretos onde se lia “Tropa de Profs”, eles compuseram a linha com os muitos grupos autônomos de jovens mascarados. Muitos professores, inclusive do sindicato, depois da manifestação, também se pronunciaram a favor dos black blocs, desmentindo a linha editorial da grande imprensa (e de parte da esquerda institucional), que descolava os grupos, segundo um maniqueísmo que opõe o “manifestante de bem” ao vândalo. Com efeito, o noticiário do dia seguinte concentrou-se quase exclusivamente nas imagens sensacionalistas do conflito com a polícia e das propriedades danificadas no capítulo final do protesto. Os fatos realmente não importavam, curvados ante à absurda hipótese midiática de que haveria “infiltrados” na manifestação, com o único objetivo de causar “pânico” e praticar a “violência pela violência”. 

A grande imprensa (e parte da esquerda institucional) se esmeraram em apagar um acontecimento singular na história das lutas no Rio de Janeiro. Como se não tivesse ocorrido uma marcha de, pelo menos, 50 mil pessoas, num caldeamento potente e inédito de sujeitos, agrupando a constelação de lutas pelo direito à cidade. É como se existisse um batalhão de colunistas nas redações apenas esperando a hora para derramar acriticamente a condenação geral dos “atos de vandalismo”, encaixando os lugares comuns que, acreditam eles, repercutiriam nos “leitores médios”. As manchetes, as notícias e colunas se limitaram a forjar a imagem do medo, da balbúrdia, do caos, para tentar tirar mais gente das ruas e dividir o movimento.

Quem estava na praça da Cinelândia quando começou a repressão policial, — e teve o dissabor de provar as colunas de fumaça lacrimogênia e do gás de pimenta, e enregelar com as primeiras bombas e tiros de borracha —, viu algo muito diferente. A ação dos “arruaceiros” e “niilistas” não parecia tão caótica assim. Os alvos, aliás, pareciam selecionados segundo uma lógica clara: a câmara municipal onde dias antes a polícia havia massacrado os professores, agências bancárias, a fachada do prédio do megaempresário Eike Batista, o consulado norte-americano, algumas lojas de grandes marcas, e assim por diante. A coordenação das ações, igualmente, era evidente, segundo uma tática de enxame, agrupando e reagrupando-se enquanto manifestantes se orientavam uns aos outros, protegiam-se, e coibiam prontamente alguns comportamentos (como atacar o pequeno comércio, ou qualquer ofensa física a pessoas). Nada disso aparece nas narrativas jornalísticas, que nada tem de qualquer jornalismo digno do nome, feitas sob medida para mover as engrenagens do poder punitivo, satisfazendo a ânsia por “pacificação”. Em momento algum, a grande imprensa (e parte da esquerda institucional) vai além de um maniqueísmo vazio, onde os momentos de recusa e negatividade parecem destacados de todo um contexto social, histórico e político, sua positividade, sua produtividade.

Realmente, quem lê os jornais ou assiste à TV pode ter a impressão que o problema da violência no Rio de Janeiro é causado por um punhado de vândalos niilistas, inebriados pela própria energia destrutiva. Noutras palavras, por um “bando de malucos quebrando tudo”, tentando se infiltrar nos movimentos legítimos. Fica parecendo que o Rio vive uma época de paz e prosperidade, em que apenas grupos extremistas insistem em exprimir insatisfação, gratuitamente. Seriam inimigos da bela democracia brasileira. É, verdadeiramente, uma mentalidade colonial, em vigor no século 21, e cujo bom tom consiste em elogiar e defender a convivência saudável entre todos os sujeitos sociais. Segundo essa mentalidade, opressores e oprimidos deveriam caminhar tranquilamente de mãos dadas em direção ao progresso, que assim, ao fim e ao cabo, seria melhor para todo mundo. 

A terrível ironia consiste que a violência seja considerada tabu, numa cidade em que a polícia mata 500 pessoas por ano (sendo esmagadora maioria de jovens pobres e negros), e faz desaparecer outros tantos. Onde um favelado pode ser sequestrado, torturado e morto, sem maiores comoções, uma situação que as próprias manifestações vêm mudando, como se viu na campanha “Cadê o Amarildo?”2, ou no episódio da chacina da Maré3. Numa cidade cujo prefeito não tem vergonha de adotar o título “Choque de Ordem” para sua política de ordenação do território, recolhendo e espancando sem tetos, camelôs, artistas de rua, dependentes químicos, e qualquer um que esteja na rua violando alguma “postura municipal”. Esse mesmo prefeito empenhado em “higienizar” bairros inteiros e remover brutalmente favelas, expropriando os moradores, para passar grandes obras viárias para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. E como se a população carioca fosse “pacífica” (no máximo, ela é pacificada) diante da violência do cotidiano nos transportes coletivos, na saúde pública, na própria educação. Só no mês de setembro, foram duas revoltas violentas de final do expediente, com depredação e incêndio de trens e ônibus. 
Nesse cenário, as manifestações, para muitas pessoas, significam uma chance de lutar pela própria paz. O medo, para elas, já aconteceu, e elas não vão se intimidar com ameaças de punição, se a punição é a normalidade de suas vidas. A luta que o poder punitivo sempre reduz a “vandalismo”, para muitos, é uma chance de construir uma paz que não seja pacificação. Os Amarildos do Brasil são anônimos muito antes de qualquer grupo assim identificado, muito antes da adoção da máscara de Guy Fawkes. Se, finalmente, Amarildo pôde ter um nome, foi porque os manifestantes conquistaram o direito de nomeá-lo e, em seu nome, continuar lutando. Amarildo é o nome de muitos.

Numa realidade profundamente violenta, — onde se apresenta não só a violência traumática da polícia, mas também a violência de classe nos serviços públicos — é paradoxal que o maior incômodo, inclusive de parte da esquerda, continue sendo as manifestações, com algumas vidraças quebradas, paredes pixadas, lixeiras incendiadas e uma ou outra grande loja atacada. Uma única morte causada pelo estado é violência maior. Colocados em perspectiva, violentos e fascistas, afinal, não são os manifestantes, cujo sentido político do “vandalismo” é muito claro. Enquanto a sequência de protestos se reinflama, mais qualificados e novamente beirando a casa da centena de milhar, poucas vezes foi tão atual a frase de Brecht, “do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem.”

No 7-O, os professores reconheceram nos black blocs os seus alunos, conquanto não fossem, rigorosamente, frequentadores da mesma sala de aula. Da mesma forma, os black blocs viram nos professores seus próprios professores. Uns e outros se ensinaram e aprenderam, construindo um sentido além das pautas setoriais ou da tática black bloc. Isso é um exemplo de um comum possível, um comum na diferença construído nas ruas, nas lutas por alternativas à pacificação do “novo Rio”, contra um consenso sucessivamente mais autoritário e impermeável.

A transformação de postura entre professores e black bloc produz, por si mesma, uma mudança da sensibilidade geral. Reconhecidos por comporem um comum de lutas, se tornam um signo potente para uma nova fase das manifestações, que se auto-organiza e se requalifica continuamente. Essa mudança sensível podia ser percebida na manifestação com o aumento das camisetas pretas, a atitude “somos todos black blocs”, e através dos cartazes, como no de uma manifestante carregando os dizeres: “Deixei de ser Luther King, hoje sou Malcolm X!”.

A mudança de sensibilidade não coloca mais os black blocs como algo à parte, mas como algo que faz parte, e que passa a constituir a própria luta. Isso é percebido pelo próprio governo, que no 7-O mudou a estratégia, subtraindo-se da cena num primeiro momento. A polícia deixa as indignações ganharem livre curso apenas para, posteriormente, investir com carga total numa nova série de criminalizações e intimidações, o que está acontecendo agora.

O desafio continua sendo persistir na luta apesar dos recursos desesperados de quem assiste às novas misturas e composições da cidade. Como disse uma professora: “Agora que a juventude está com a gente, por que iríamos fazer de tudo para nos diferenciar deles? Não! Estamos juntos nessa.”

Para quem estava na Cinelândia, a ausência calculada da polícia é desconcertante. Enquanto a passeata chega ao final da Rio Branco e a câmara dos vereadores é assediada pelos manifestantes, pode-se descortinar um estranho silêncio, além do barulho das explosões e helicópteros. É o silêncio da espera, a anteceder uma brutalidade prestes a se abater sobre a manifestação. São os poucos segundos em estado de suspensão, antes de se ouvirem as bombas de efeito moral e das primeiras lágrimas. O lapso de tempo quando ainda podemos estar juntos. Vamos continuar assim. 


NOTAS

1A Aldeia Maracanã é o nome da ocupação indígena do antigo Museu do Índio, num prédio do século 19, localizado ao lado do estádio do Maracanã, no bairro homônimo. Ocupada desde 2006 por indígenas de várias tribos, a aldeia havia sido removida em maio deste ano, numa operação marcada pela brutalidade policial, porque estaria interferindo com as obras de ampliação do estádio para a Copa de 2014. O local foi reocupado no começo de agosto, embora as antigas moradias tenham sido demolidas quando da operação de remoção. Além do calendário de atividades e servir de ponto de encontro dos índios em trânsito pelo Rio de Janeiro, a Aldeia trabalha no sentido de criar a primeira Universidade Indígena. Aldeia (R)existe! é um dos coletivos organizados para defender a autonomia da ocupação, contando com militantes indígenas e não-indígenas em seus quadros.

2O inquérito concluiu que, visto pela última vez levado de casa numa viatura, Amarildo foi morto pelos policiais da Unidade Policial Pacificadora (UPP) da favela da Rocinha, depois de uma sessão de torturas com choques elétricos e sufocamentos. O corpo não foi encontrado. A justiça em primeira instância determinou o pagamento de uma indenização mensal de um salário-mínimo (R$ 678,00, cerca de 220 euros) à família constituída pela mulher e seus seis filhos. O governo do estado recorreu da decisão, a fim de não pagar nada.

3Pelo menos dez pessoas morreram depois de uma manifestação na Avenida Brasil, em 23 junho de 2013. Um sargento do BOPE foi morto ao invadir a favela e, como resposta, o território foi invadido e submetido a uma “noite de terror”. Nessa noite, centenas de casas foram devassadas sem mandato judicial, as pessoas humilhadas e torturadas. O fato de um policial do BOPE ter morrido serviu de pretexto “natural” para a chacina dos moradores, alguns dos quais assassinados por degolamento.



Talita Tibola é pesquisadora em estudos da subjetividade e doutoranda no no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Bruno Cava é mestre em filosofia do direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e autor de ‘A vida dos direitos: ensaio sobre modernidade e violência’. Publica o blogue Quadrado dos loucos (quadradodosloucos.com.br).

Ambos os pesquisadores participam da rede UniNômade.

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Fonte: Universidade Nômade

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