PICICA: "Ao mesmo tempo em que olha
para sua própria obra, aquilo que constitui o ambiente de Passion são
os conflitos do contemporâneo.
Nem importam os eventos, apesar de quase toda obra de Brian De Palma girar em torno de um mistério. Nem
importam os personagens, embora seus filmes geralmente tenham protagonistas de
envergadura acentuada. O que vai mesmo derrubar o espectador em Passion
é um ato poderoso em sua simplicidade, uma descida ao gesto fundacional: tudo
que parece é. Isso quebra as pernas de quem vê, pois ninguém espera um
jogo assim tão limpo, na maior cara de pau. Não há desvios morais para executar
diante dos acontecimentos. Já não existem “signos” com os quais o autor realiza
sua trapaça sorrateiramente. Mas ainda assim ele tem sua crueldade. E ela é
também seu atestado confidente: ele não quer ser puro; desses quer distância. O
universo no qual está localizado é erigido sob essa base draconiana intrínseca
aos mercados, algo frouxo, repleto de tapas nas costas, de fria competitividade
em busca do plano de carreira, de uma ética de super-heróis. Aí sim é tudo
mentira onírica. E se a trama de falsas amizades, dos jogos íntimos do poder,
de sexos de plástico e câmeras escondidas
já faziam parte de Crime de Amor (que é quase um anti-suspense), filme
dirigido por Alain Corneau que lhe serviu de base, em Passion tudo
aparece potencializado, literalmente com outro espírito de cinismo."
Passion
by Pedro Henrique Gomes
A banalidade do mal
A trama é bastante simples. No alto escalão de
uma grande agência de publicidade,
duas executivas iniciam uma relação permeada por ambiguidades. A aparente
amizade que transparece na primeira cena (risos, beijos, abraços) não tarda a
se confundir com interesses corporativos. Christine (Rachel McAdams) inicia
“por cima”, ditando as ações para Isabelle (Noomi Rapace), novata na empresa.
Quando a segunda ganha a atenção dos barões da companhia, a soberania de uma
sobre a outra logo se altera. O filme inteiro se organiza a partir desse jogo
de gato e rato e através de suas consequências. Mas De Palma é inventivo – e
então nenhuma trapaça é melhor que a outra e todo poder é diluído nele mesmo
quando os limites são rompidos. É a observação do quão frágil toda essa
aparelhagem é, espaço em que as peças se alteram inadvertidamente em um pequeno
mundo onde quase tudo é mero acidente de percurso. Ao mesmo tempo em que olha
para sua própria obra, aquilo que constitui o ambiente de Passion são
os conflitos do contemporâneo.
Nem importam os eventos, apesar de quase toda obra de Brian De Palma girar em torno de um mistério. Nem
importam os personagens, embora seus filmes geralmente tenham protagonistas de
envergadura acentuada. O que vai mesmo derrubar o espectador em Passion
é um ato poderoso em sua simplicidade, uma descida ao gesto fundacional: tudo
que parece é. Isso quebra as pernas de quem vê, pois ninguém espera um
jogo assim tão limpo, na maior cara de pau. Não há desvios morais para executar
diante dos acontecimentos. Já não existem “signos” com os quais o autor realiza
sua trapaça sorrateiramente. Mas ainda assim ele tem sua crueldade. E ela é
também seu atestado confidente: ele não quer ser puro; desses quer distância. O
universo no qual está localizado é erigido sob essa base draconiana intrínseca
aos mercados, algo frouxo, repleto de tapas nas costas, de fria competitividade
em busca do plano de carreira, de uma ética de super-heróis. Aí sim é tudo
mentira onírica. E se a trama de falsas amizades, dos jogos íntimos do poder,
de sexos de plástico e câmeras escondidas
já faziam parte de Crime de Amor (que é quase um anti-suspense), filme
dirigido por Alain Corneau que lhe serviu de base, em Passion tudo
aparece potencializado, literalmente com outro espírito de cinismo.
No papel a história é a mesma, mas na tela as diferenças são
abismais. No filme francês é Kristin Scott Thomas quem toma conta da personagem
que em Passion ficou a cargo de Rachel
McAdams. Lá existe todo um simbolismo marcando a presença da
“chefe” que, com a experiência de trabalho fincada em cada traço do seu rosto,
garante de antemão uma imponência em relação a pouca idade de Ludivine Sagnier
e seu olhar de inocência. De Palma inverte isso já ao apresentar a personagem
da chefia no corpo jovem de McAdams. Com a relação dela com sua funcionária, interpretada
por Noomi Rapace, Passion abole essa figuração, pois a lógica daquilo
tudo precisa se assentar em outro lugar, de outra forma. Se for claro que as
duas sabotam, traem, mentem e distorcem, não será menos evidente que os papeis
possam se inverter facilmente. O clima é de constante manipulação, de roubo de
ideias, de amantes, de vidas. Mas nem a traição importa, é tudo estratégia. Em
várias frentes, inclusive como armadilha para a crítica (e muitos têm invadido
o campo minado), este é um filme sedutor e perigoso.
Não só pela “amplificação dos sentidos” que o
cineasta sabe despertar no espectador, mas pela própria orgia na criação dessas
imagens, que vai além de Hitchcock (tem um pé em Otto Preminger e outro em
Fritz Lang) e do próprio classicismo formal de uma “estética da câmera”. No
fim, toda essa atmosfera plastificada, metida a besta, digital nos
dispositivos, mas analógica nas mentalidades, é antes uma radicalização do
estatuto da imagem, da reprodução e da dinâmica ingovernável de sua recepção.
Aliás, Redacted (2007) já anunciava essa vontade de pensar e produzir
imagens tais como elas são mais difundidas no presente. Filme que é uma
experiência compartilhada de uma violência que nos assalta, fetichizada,
realista, pois capta as coisas “como elas realmente são” em um ambiente de
guerra.
Já em Passion temos um universo
intuitivamente emborrachado, como uma transa que é filmada de forma amadora e
então retransmitida via Skype para a própria protagonista do sexo em uma
conversa online (numa viagem a trabalho, Isabelle transou com o amante de
Christine, e é isso o que ela vê). Nesse sentido, a sequência crucial é aquela
em que Christine, organizando imagens coletadas através das câmeras internas
(intenção semelhante a que o próprio De Palma buscou com Redacted),
realiza uma sessão particular para os funcionários da agência cujos filmes
exibidos têm eles mesmos como personagens em momentos de indignação com
qualquer coisa. Em uma das cenas, Isabelle bate o carro contra um pilar no
estacionamento do prédio, depois chora sua raiva e acaba dormindo lá mesmo. No
início, todos os espectadores dão risadas, depois se olham seriamente.
Passion é todo assim, caracterizado por
esse clima de suspensão do juízo em função de algum desdobramento muito rápido
que muda o curso e o tom das coisas. O voyeur, o observador distante, o ponto
de vista onipresente de Deus, é sempre descoberto, desnudo. A investigação que
decorre de um assassinato toma vários caminhos. A máscara que Christine faz o
parceiro vestir na hora do sexo (e que é moldada no seu próprio rosto; seu
Narciso) vai também ser utilizada para uma morte. Afinal, não é em De Palma que
a morte e o orgasmo carregam um peso semelhante em intensidade dramática? Ambos
são “atos” de um último movimento, francamente de mentirinha, e que se desde
sempre é tão aguardado, jamais perde sua força bruta e sua capacidade de
surpreender. Quer dizer, todo esse clima de farsa que se desenvolve é bem
direto. Se bem pontuamos, é a estrutura atomizada dos conteúdos, onde o
dualismo opacidade/transparência já não é capaz de dar conta da reprodução
voraz e sangrenta dessa abundância das formas de narrar e mostrar as coisas. É
preciso se chocar contra tudo.
(Passion, EUA, 2012) De Brian De Palma. Com Rachel McAdams, Noomi Rapace,
Karoline Herfurth, Paul Anderson, Rainer Bock, Benjamin Sadler, Michael
Rotschopf, Max Urlacher, Dominic Raacke, Trystan W. Putter, Melissa Holroyd,
Peer Martiny.
Fonte: Tudo [é] Crítica
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