PICICA: "Talvez um autêntico encontro entre as revoltas
social e cultural tenha se sobressaído pela primeira vez nas tendências
mais radicais da Reforma protestante do século XVI."
Quando a arte se torna política
Talvez um autêntico encontro entre as revoltas
social e cultural tenha se sobressaído pela primeira vez nas tendências
mais radicais da Reforma protestante do século XVI.
Paralelamente à revolta social que vem se expressando, desde a Idade Média, por meio de inquietações, rebeliões e movimentos de insurreição, em geral motivados por razões econômicas, tem existido sempre uma dissidência cultural e artística precedida de modo concomitante, mas sem uma relação direta com aquela.
A obra do poeta francês François Villon (1431-1463?) oferece uma ilustração disso, pelo aspecto tumultuoso da vida dos estudantes universitários. Por séculos, a existência de uma zona cinzenta entre o mundo do saber e as más condições de vida constituiu um aspecto singular da cultura de Paris, fazendo-se prolongar até quase os dias de hoje, e assim transformando Villon no arquétipo de todos os poetas e escritores malditos que o sucederam.
Talvez um autêntico encontro entre as revoltas social e cultural tenha se sobressaído pela primeira vez nas tendências mais radicais da Reforma protestante do século XVI. As suas diretrizes iconoclastas criaram em muitos artistas alemães um mal estar profundo diante de suas atividades, impulsionando-os à introdução de elementos auto-contestatórios em suas obras. Nas numerosas Lucrécias de Cranach, de Dürer ou de Baldung Grien, o punhal apontado para o corpo da personagem parece querer dilacerar inclusive a tela.
A figura emblemática desse mal estar é a do pintor Jörg Ratgeb (±1480-1526), que uniu-se aos revoltosos na Guerra dos Campesinos de 1525, ocupando cargos de direção e participando militarmente da luta. Repensando o sucesso das grandes revoluções entre o século XVIII e o século XX, a conexão entre os aspectos político-econômico e cultural-simbólico se apresenta diversa e complexa. Em muitas ocasiões, a cultura artístico-literária tem sido uma simples atividade de acompanhamento emocional dos fatos, bem como a caixa de ressonância de ações externas.
As histórias política e cultural seguiram lógicas e caminhos autônomos, que raramente se encontraram. Por conseguinte, de um lado se tem o risco de menosprezar a autonomia das produções simbólicas, interpretando-as segundo esquemas estranhos aos códigos de pertencimento; de outro, tenta-se outorgar a elas uma capacidade de influência sobre os acontecimentos históricos que é completamente ilusória, atribuindo aos pensadores e artistas responsabilidades que eles não têm.
A rebelião é o lugar por excelência do equívoco, sobretudo quando sai vitoriosa. Georg Büchner, no drama A morte de Danton (1835), escreveu uma frase destinada a tornar-se célebre: “A revolução é como Saturno, devora os seus próprios filhos”. Ademais, ações intencionais têm consequências imprevisíveis e com frequência opostas aos desejos de quem as leva a cabo.
Os anos sessenta do século XX assinalam a entrada de um novo regime de historicidade, no qual o protesto econômico-político, por um lado, e a dissidência artístico-cultural, por outro, se entrelaçam muito mais que no passado. O Maio francês de 1968 é considerado o epicentro desse matrimônio, haja vista que uma revolta de estudantes pôs em circulação uma greve selvagem com dez milhões de trabalhadores.
Sem dúvida, naquele tempo o encontro foi efêmero e fortemente condicionado pelos instrumentos de comunicação de massa. Hoje uma nova geração de rebeldes busca subtrair-se de todos os modos possíveis à espetacularização e aos meios de comunicação: rejeitando a lógica do consumismo e do crescimento quantitativo, eles se orientam para o pauperismo voluntário e o regresso a estilos de vida pré-modernos.
A filosofia que os incita é uma espécie de neo-existencialismo inconsciente, em que o essencial está na necessidade de relações sinceras e autênticas.
* publicado originalmente na Revista Metapolítica, México, abril de 2013.
reproduzido com autorização do autor. tradução: Rodrigo Cássio.
Mario Perniola
Filósofo italiano. Editor da revista Ágalma e autor, entre outros, de Ligação direta: Estética e política (UFSC, 2011).
Fonte: Amálgama
Nenhum comentário:
Postar um comentário