PICICA: "Conjuntura rara permitiu que setores sociais com interesses
opostos estivessem juntos nas ruas. Tensões maiores virão no futuro
próximo"
Jornadas de junho: três enganos e uma hipótese
Conjuntura rara permitiu que setores sociais com interesses opostos estivessem juntos nas ruas. Tensões maiores virão no futuro próximo
Por Luís Fernando Vitagliano
Em se tratando dos fatos políticos recentes, nossas ciências sociais estão claramente em dívida. Não temos, ao largo do que se escreveu e/ou discutiu, uma explicação razoável sobre os fatos. Refiro-me especificamente às manifestações de junho no Brasil e quero centrar essa análise em suas interpretações e recentes desdobramentos.
Geralmente, um relativo consenso se estabelece a respeito dos fatos sociais que, com maior ou menor grau de radicalismo, nutrem a memória coletiva. Ao analisar diferentes visões sobre os acontecimentos, tenho o propósito de afastar-me dos desejos políticos que hoje motivam as paixões da grande maioria dos analistas. De tudo que foi publicado sobre as manifestações, seleciono pelo menos três perspectivas sintomáticas.
Uma das visões é defendida
por intelectuais como Marilena Chauí e outros professores de Ciência
Política, como os presentes no debate da Associação Nacional de
Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), em Águas de Lindoia em
setembro (entre eles Claudio Couto e Adriano Codato). Para esta linha, o
que ocorreu no Brasil foi um princípio de intolerância política com
fortes traços de fascismo. As manifestações foram interpretadas a partir
de fontes eminentemente conservadoras e com pautas que substituíram as
questões públicas pela defesa de moralismos perigosos à democracia. A
pauta acabou sendo sequestrada por reações antipartidárias que beiravam o
golpismo barato. Esta visão foca, portanto, nos traços reacionários que
se destacaram em vários momentos de junho. Mas não explica como estes
traços foram capazes de substituir as pautas inicialmente progressistas
(transporte público de qualidade, melhores condições sociais, políticas
universais de saúde, educação e cultura etc). Também não explica como a
direita tomou as ruas, já que este é um espaço de ação política usado
por uma maioria crítica ao capitalismo. Parece ser, portanto, uma
interpretação distorcida, ao forçar a sobreposição da pauta de direita
sobre a da esquerda — o que não ocorreu em proporções tão grandes, se é
que ocorreu.
Outra visão associa os
protestos de junho a manifestações mais amplas e de abrangência mundial
que começaram bem antes, com os movimentos antiglobalização de Seattle,
passando pelo recente Occupy Wall Street. Tratando de interpretar os acontecimentos por este rumo, surgiram (inclusive em Outras Palavras) vários
artigos. Intelectuais como David Harvey e Manuel Castells destacaram as
semelhanças entre os movimentos. Até Francis Fukuyama, à direita,
comparou as manifestações de junho no Brasil com a “Primavera Árabe” –
lógico que apresentou ambos os casos como sintomas de que a democracia
liberal está se expandindo pelo mundo. No Brasil sobressaiu-se, na
defesa deste ponto de vista, Vladimir Safatle. Mas há vários problemas
também com essa visão. Um deles é supor que os manifestantes faziam
ligações entre os acontecimentos locais e os globais, que grupos como
os Black Blocs do Brasil ligavam-se em rede aos outros movimentos
internacionais. O Brasil não viveu os efeitos da crise de 2008 como os
países desenvolvidos. Em grande parte da Europa atingida pela crise, o
desemprego entre os jovens é alarmante. Aqui, o máximo de
internacionalização do movimento que conseguimos foi relacionar as
políticas públicas com a Copa de 2014, como em um cartaz que ficou
famoso: “Queremos hospitais no padrão FIFA!” De resto, o antiglobalismo e
o anticapitalismo surgiram de forma muito mais autoritária e
antidemocrática que nos casos citados internacionalmente. Nem os
manifestantes daqui são iguais aos do “primeiro mundo”, nem os poucos
que se identificavam com movimentos internacionais de resistência
converteram-se em atores significativos – não foram convincentes e estão
muito mais para figurantes que protagonistas.
Poderíamos dizer que há uma
quarta visão: a crítica ao governo e suas medidas. Mas essa é,
principalmente, uma tecla ensaiada pelos partidos de oposição para
sequestrar o momento político. É simplista e não nos vale mais que
citar, por sua pobreza evidente… Ou esta visão está contemplada na
primeira — e apresentou faces autoritárias –, ou é apenas marketing
político que não colou.
Em busca de uma visão de síntese sobre junho, que supere os limites
apontados anteriormente, proponho partir das próprias contradições do
movimento. As manifestações de junho foram um evento sem precedentes,
único e irreprodutível nas suas origens. O inusitado de uma janela
histórica permitiu reunir contradições sociais muitos fortes, a ponto de
deixar as mentes mais perspicazes em paralisia — ou seja, com enorme
dificuldade para entender o que levou tanta gente diferente às ruas.Junho foi único. O Movimento Passe Livre (MPL) surpreendeu em termos de reivindicação e capacidade de mobilização. Mas sua atuação não explica o que se sucedeu. Seus sucessos iniciais estão ligados à dificuldade dos governos para ler as insatisfações — muito mais para lidar com elas. Os jornais falharam. A polícia ainda age como se estivesse em tempos de ditadura. Diante da paralisia das velhas instituições, as mídias sociais surgiram como grande novidade e tiveram um papel catalizador. A mídia alternativa foi fundamental para desbancar as maquiagens arquitetadas por governos e forças políticas antidemocráticas. O jogo mudou na medida em que o mar de descontentes reconheceu a legitimidade de protestar. Em algum momento, protestar por qualquer coisa ganhou vasto apoio da sociedade.
À mobilização dos grupos ligados à agenda social somaram-se as insatisfações das classes médias, que há muito ensaiavam ir às ruas. Ambos os vetores somaram-se porque, quanto maior a massa, mais as pautas ganhavam destaque. A direita empresarial do antigo movimento “Cansei” e o MPL nas ruas, lutando por transportes públicos de qualidade e contra a corrupção. Cada um a seu modo, mas todos nas ruas. Tanto é verdade que, tão logo as contradições começaram a tornar-se claras, o movimento geral perdeu fôlego e dispersou.
Porém, mais do que contraditórias, as pautas de junho eram genéricas, pouco claras. Congregaram interesses distintos, embora isso não tenha sido percebido, num primeiro momento. Vale a pena um esforço para entender as forças presentes nos protestos como de fato são — e não como se manifestam na aparência.
Não seria útil rotular
junho como movimento majoritariamente de direita ou de esquerda, social
ou político, mas como um momento epifânio de explosão de muitas pautas —
que, em situações de normalidade, nunca seriam postas nas mesmas ruas.
Como não havia uma mesa de negociações, esses muitos movimentos
inicialmente não se viram como contraditórios. No primeiro susto a
respeito do que se esperava com os protestos, parte dos militantes que
deram os primeiros passos em direção às ruas recuou.
Mas, não devemos ignorar a relação dialética entre os ganhos sociais e as classes. A visão das esquerdas mostra-se míope por não perceber que os setores abastados também foram afetados (ainda que indiretamente) pelos movimentos das classes subalternas. Seja no aumento das filas nos aeroportos, seja pelo custo dos serviços em geral ou pelo “ultrajante” resgate da cidadania, que permite ao oprimido reclamar seus direitos… A dialética sugere que nenhuma ação histórica existe sem sua antítese. E não se eleva o poder dos pobres sem alterar a correlação de forças com os ricos. O governo é o colchão que acomoda todas essas demandas. Nas ruas, em junho, foram os governos os alvos. Porque eles estavam na linha de frente da defesa dos interesses dos opressores e na retaguarda dos ganhos dos oprimidos.
Diante de todos esses contrastes, erraram todos os que viram, nas ruas de junho, consequências de longo prazo. Os protestos não desencadearam mudanças; por enquanto, eles expressaram reações diante do que houve anteriormente: maior acesso das maiorias a uma parcela da riqueza; incômodo de setores da classe média com isso. Talvez o próprio projeto de ampliar benefícios sociais sem alterar a estrutura de renda esteja no seu limite. É possível que manter a trajetória iniciada há dez anos não seja mais praticável, sem produzir fissuras nas estruturas que reproduzem desigualdade e privilégios. Isso, naturalmente, despertará reações no chamado “andar de cima”. Para escandalizá-lo, nem é preciso falar de reforma agrária — basta mencionar a reforma tributária…
Junho não pode ser visto como algo maior do que foi. Foi um momento de catarse, não de transformações sociais. Nenhum dos movimentos que se uniram naquela ocasião têm hoje força para lançar isoladamente uma convocação expressiva de protesto. Os fatores históricos que permitiram aqueles acontecimentos dispersaram-se e os diferentes setores, antes unidos em uma mesma luta, já não se reconhecem.
Se a pauta de reivindicações não pôde ser capturada pelas direitas, hoje na oposição, uma boa dose de realidade permitirá perceber a dimensão dos desafios com que se deparam as esquerdas, no futuro próximo. Para que sejam efetivos, os avanços sociais deverão atingir diretamente os privilégios das classes dominantes. Haverá vontade e força suficiente para tanto? Caso contrário, como isso comprometerá o projeto político que chegou ao governo há dez anos?
Luis Fernando Vitagliano
Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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