PICICA: "O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Unifesp e diretor do
Proad, afirma que a política de drogas deveria combater as razões que
levam à dependência química e não as drogas em si". EM TEMPO: Aproveite e assista um debate promovido pela Folha de S.Paulo, em 2012, sobre legalização da maconha.
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O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Unifesp e diretor do
Proad, afirma que a política de drogas deveria combater as razões que
levam à dependência química e não as drogas em si
Por Felipe Rousselet
A edição 126 da revista Fórum, que já está nas
bancas e nas lojas da Livraria Cultura, traz um dossiê sobre a política
de drogas no Brasil. Uma das matérias, intitulada “Internação é solução?”,
aborda os métodos de tratamento disponíveis na rede pública de saúde no país e as formas mais eficientes para se
lidar com a questão da dependência química.
Uma das fontes entrevistadas foi o psiquiatra
Dartiu Xavier da Silveira, professor da
Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de
São Paulo) e diretor do Proad (Programa de Orientação e Assistência a
Dependentes), onde trabalha há 24 anos.
Para Silveira, o tratamento ambulatorial é mais
barato e eficiente que qualquer internação, seja ela voluntária, involuntária ou
compulsória. Segundo ele, o modelo focado em internações é artificial, uma vez
que “é muito fácil ficar longe de uma droga quando você está internado” e a
maioria dos dependentes recai quando voltam para sua rotina normal.
O psiquiatra também falou sobre ações de
descriminalização das drogas e afirmou que elas são positivas e não causam um
aumento do número de usuários nem inchaço do sistema de saúde pública.
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Leia a íntegra da entrevista com o Dr.Dartiu Xavier da Silveira:
Fórum – Qual a estrutura disponível hoje
para o tratamento da dependência química na rede pública de saúde no
Brasil?
Dartiu Xavier da Silveira – A estrutura para
tratamento de dependentes químicos disponível no Brasil é o Caps AD (Centro de
Atenção Psicossocial Álcool e Drogas). O problema não é que o modelo Caps seja
ruim. Ele é muito bom. O problema é que não tem número suficiente para as
pessoas e, segundo, nem todos os Caps AD estão devidamente capacitados. Existem
equipes que não são muito bem formadas, então, o que está faltando é aumentar o
número e capacitar melhor os que já existem.
Fórum – Em relação aos repasses de
recursos públicos para as chamadas comunidades terapêuticas nos últimos
anos, qual a opinião do senhor quanto à atuação destas entidades e também
quanto aos convênios com o poder público?
Dartiu – conheço algumas comunidades terapêuticas
que são grupos muito sérios, formados por gente preparada e que conhece o
problema. Mas isso é a exceção da exceção, a raridade. A maioria não está nem
perto disso. Muitas vezes não conhecem o básico partem apenas do princípio de
boa fé, das boas intenções, achando que isso vai resolver um problema complexo,
como é a dependência de álcool e drogas.
O que acontece é que, recentemente, houve uma
séria de investigações, sobretudo de conselhos regionais de psicologia, que
identificaram que diversas comunidades terapêuticas trabalham como um sistema
carcerário, onde as pessoas são submetidas a humilhações e torturas. Isso
desmoralizou ainda mais as comunidades terapêuticas.
Não tenho nada contra grupos terapêuticos leigos
fazerem propostas de reinserção social, mas eles não podem vender um pacote de
tratamento de dependência, que não é o que eles fazem. E muito menos receber
verba pública para isso.
Fórum – O que o senhor acha das políticas
de internações involuntárias e compulsórias?
Dartiu – A primeira coisa é que a maioria das
pessoas, da população em geral, acredita falsamente que o melhor método de
tratar a dependência química é a internação. Isso não é verdade. A eficácia das
internações é menor que a do tratamento ambulatorial.
Já partimos deste pressuposto de que não é o
melhor tratamento. Além de ser muito mais caro, se você pensar em dinheiro
público, fazer a internação de uma pessoa do que prover um tratamento
ambulatorial. Já não se justifica a prática como política pública, uma vez que
é muito mais cara e menos eficaz.
Agora, quando vamos para a questão da internação
involuntária ou compulsória, na psiquiatria estão muito bem caracterizadas as
situações em que se pode fazer a internação involuntária. São situações em que
a pessoa perdeu totalmente a noção de realidade, o que chamamos de psicose. A
imensa maioria dos dependentes químicos não é psicótica. Então, não se aplica a
necessidade da internação compulsória, ou involuntária, para a grande maioria
das pessoas.
Outra coisa, supervisiono um serviço de Caps AD
na Cracolândia. Quando existe um paciente que precisa de uma internação, mesmo
voluntária, a gente não consegue vaga. Então, é um contrassenso as pessoas
ficarem advogando uma internação compulsória, ou involuntária, quando não
existem nem vagas para pessoas com necessidade constatada por uma junta médica.
É muito mais um jogo político e midiático o que algumas pessoas fazem com a
internação compulsória do que um problema.
Fórum – Esses limites que determinam se
uma pessoa deve ser internada de forma compulsória, ou involuntária, estão
sendo respeitados? Especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro, que adotaram a
prática como política pública no enfrentamento da dependência química?
Dartiu – Não. Não estão sendo respeitados. A
gente vê que na rede pública existe esse problema de conseguir vagas. Mas, na
rede privada, nós vemos internações involuntárias a rodo. O resultado disso é
que a grande maioria recai um mês depois de sair da internação. É um tratamento
caríssimo e que tem o interesse financeiro dos hospitais psiquiátricos e da
classe médica ao defenderem um modelo caro e pouco eficaz.
Questiono sempre a ética desses grupos. Tenho
três pacientes meus que sofreram internação involuntária de outros médicos,
antes de serem atendidos por mim, e que hoje em dia estão com advogados movendo
ações contra as clínicas por cárcere privado. Eles ficaram internados contra a
vontade, mais de 10 meses, sofrendo uma série de humilhações e abusos, alguns
deles até agressões físicas.
Fórum – Qual a razão desta ineficiência
da internação?
Dartiu – Existem dois grandes motivos que podemos
destacar. O primeiro é que grande parte dessas internações é feita com usuários
de drogas, e não com dependentes. Na verdade, seria a mesma coisa se você
pegasse uma pessoa que usa álcool, interná-la contra a sua vontade e depois
querer que ele não volte a usar álcool. É claro que vai voltar, ele não era
dependente, era apenas um usuário. Ele gosta de álcool.
A nossa sociedade vê de uma maneira muito
preconceituosa as drogas ilícitas e as lícitas são vistas de uma forma
excessivamente tolerante. Na minha visão, grande parte das pessoas internadas
contra a vontade não são nem dependentes.
O outro problema é que, mesmo quando são
dependentes, é muito fácil ficar longe de uma droga quando você está internado.
Uma situação ideal, protegida. O difícil é não usar a droga quando você está
enfrentando seus problemas, o chefe que te enche a paciência, a mulher que te
deixa nervoso, o filho que te dá problema. Na hora de voltar para os problemas
do dia a dia é que pessoas recaem. Então, é por isso que se preconiza que o
processo de deixar a droga deve ser feito com o indivíduo levando sua vida
normalmente. É muito artificial o modelo de internações.
Fórum – Qual a opinião do senhor sobre o
uso de medicamentos no tratamento da dependência química?
Dartiu – É muito importante o uso de
medicamentos. O posicionamento contra a medicação é uma coisa muito de
antigamente e é baseado em preconceitos.
A grande justificativa é que a pessoa trocaria
uma droga por outra droga, nesse caso, uma droga farmacêutica. Mas isso não
acontece na prática. As pessoas não ficam dependentes destes remédios que, na
verdade, ajudam muito no processo de saída da dependência.
Considero que a maneira ideal de tirar alguém da
dependência é associar medicação com uma psicoterapia. Somente com a
psicoterapia fica muito difícil.
Fórum – A fiscalização das comunidades
terapêuticas por parte do poder público, em especial o Ministério da Saúde, é
suficiente para garantir a qualidade no atendimento ao dependente químico?
Dartiu – Não, acho que não. Acho que nem existe a
possibilidade de fazer este tipo de controle na medida em que elas não aplicam
o modelo que o próprio Ministério da Saúde preconiza.
Se o modelo do Ministério é baseado em equipes
multidisciplinares de atendimento integral a saúde, que é o modelo dos Caps AD,
as comunidades terapêuticas oferecem coisas absolutamente alternativas. Uma ou
outra se aproxima do modelo preconizado pelo Ministério, mas são exceções.
Dartiu – A política de redução de danos é algo
que as pessoas tiveram muito medo quando ela começou a ser implantada na década
de 80. Foi a época da epidemia de Adis e tinham muitos usuários de drogas
contaminados e contaminando outras pessoas.
Aí surgiram aqueles programa de troca de
seringas. Participei de um destes programas e muita gente dizia que a gente era
maluco porque iríamos incentivar o uso de drogas. Mas não é porque uma
pessoa tem uma seringa que ela vai se injetar. E depois tiveram vários estudos
em todo o mundo provando que as políticas de redução de danos não estimulam o
uso de drogas. Ela apenas protege o usuário de danos decorrentes do uso. Não é
uma postura de incentivo ao uso, pelo contrário, é de proteção à saúde de quem
não consegue parar de usar. Eu, por exemplo, uso no meu cotidiano estas
estratégias de redução de danos.
O mundo inteiro está se apropriando dessas
estratégias. Só os países mais fundamentalistas, mais radicais, como a China e
países islâmicos, que possuem uma postura muito moralista em relação às drogas,
não utilizam.
Fórum – Em que ponto o Brasil se encontra
em relação a políticas de redução de danos? Precisamos avançar?
Dartiu – Embora o Ministério da Saúde se declare
oficialmente a favor das políticas de redução de danos, a gente não vê elas
acontecendo na prática. Elas aconteciam muito mais na década de 90.
Atualmente, embora seja o mote oficial dizer que
vão favorecer as políticas de redução de danos, o que prevalece é o modelo
proibicionista, que já comprovadamente é ineficaz. O discurso é um e a prática
é outra.
Fórum – O senhor acha que o modelo de
combate às drogas, de encarceramento de usuários confundidos com traficantes,
aumenta o preconceito sobre as políticas de redução de danos?
Dartiu – Colabora muito. Vejo isso no meu
trabalho na Cracolândia. Quando teve aquelas ações desastrosas da prefeitura,
isso desestabilizou muito o trabalho que vinha sendo desenvolvido há anos.
Houve um prejuízo muito grande. A gente sabe que essas medidas repressivas
pioram muito a situação.
O maior país defensor, que implantou e serviu
como modelo dessa guerra às drogas, foi os EUA. Hoje, eles já estão
questionando todo o modelo. Tem dois estados americanos onde foi liberado o
consumo recreacional da maconha. Em 19 estados, o uso medicinal. Eles estão
muito mais próximos das políticas de redução de danos do que nós. e já
constataram que nós perdemos a guerra às drogas, que o enfoque não é mais esse.
Fizemos a guerra contra o inimigo errado. A
guerra não era para ser feita contra as drogas, e sim contra o que leva o
indivíduo a se tornar dependente. Essa é a guerra.
Fórum – O senhor pode citar algum exemplo
de país que mudou essa lógica proibicionista e teve bons resultados?
Dartiu – Tem vários países que fizeram isso em
experiências isoladas, mas nós temos o exemplo recente da política portuguesa.
Há dez anos, ela se modificou totalmente e descriminalizou o uso de drogas. Não
aumentou o número de usuários, diminuiu, permitiu o acesso deles aos serviços
de saúde, facilitou o tratamento e diminuiu as doenças relacionadas. Só teve
benefícios. Não conseguem listar um dano causado por esta mudança de política.
Fórum – O que o senhor, como profissional
da saúde pública, acha de iniciativas que caminhem na direção da descriminalização
ou legalização das drogas?
Dartiu – Olha, vejo que a descriminalização é um
grande progresso. O que a gente não sabe ainda, por que nunca foi feito, é a
legalização. Que é a proposta do Uruguai. Como a gente não tem nenhum modelo
anterior, não sabemos o que vai acontecer.
Embora, nós tenhamos alguns indícios como, por
exemplo, o que aconteceu com a Lei Seca nos EUA. Quando o álcool foi proibido
pela Lei Seca americana, no começo do século XX, foi um desastre. Ela foi
revogada 14 anos depois porque causou muito mais danos que benefícios. Acharam
que a lei ia resolver o problema do alcoolismo. Não resolveu, as pessoas em vez
de comprar a bebida no bar da esquina, iam ao alambique clandestino, o
“traficante”.
Agora, todas as medidas que visem a
descriminalização do uso são parte de uma tendência mundial. Diversos países
europeus já fazem isso. O indivíduo não é mais criminalizado pelo uso. Isso já
se faz há 20 anos nos países mais civilizados do mundo.
Fórum – O que o senhor acha do argumento
de pessoas contrárias a descriminalização das drogas de que a medida poderia
aumentar o número de dependentes químicos e “inchar” o sistema público de
saúde?
Dartiu – Acho que não tem fundamento nenhum. Não
vai aumentar o número de dependentes químicos. A única coisa é que você vai
deixar de perseguir quem é usuário. Agora, quem é usuário e não se tornou
dependente, esse indivíduo não precisa do sistema público.
(Foto de capa: Agência Brasil)
Fonte: Revista Fórum
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