PICICA: "(En)Cena - A fotografia também é uma terapia?
Mardônio Parente - Acho
que a fotografia é um instrumento extremamente poderoso. De fato, no
CAPS de Porto Nacional, tive uma experiência bem interessante: coordenei
por cerca de dois anos e meio, uma oficina de fotografia, com alguns
usuários bem graves. Essa oficina chegou a ser veiculada em um programa
do Canal Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, e dela saiu uma exposição
fotográfica que rodou algumas cidades do Tocantins.
Alguns anos depois, escrevi um artigo sobre essa experiência. Na época
em que a oficina se deu, eu não me preocupava muito se aquilo era
terapêutico. Simplesmente nos reuníamos, trocávamos experiências, além
de tentarmos contemplar alguns objetivos que o grupo tinha se posto:
como a exposição, por exemplo. Chegamos a montar, dentro do CAPS, um
laboratório de revelação em preto e branco. Algo bem interessante...
Depois de um certo tempo, vi que - apesar de não haver exatamente um
referencial teórico claro que embasasse aquela oficina como estratégia
terapêutica – aquela experiência fez parte de uma ação de cuidado. Aí,
eu fui obrigado a pensar sobre isso, sobre porque a fotografia pode ser
interessante como proposta terapêutica. Na minha opinião, existem
milhões de motivos que fizeram daquela uma boa experiência, mas acho que
a fotografia dentro de um serviço de saúde
mental tem uma coisa fundamental: que é você pegar usuários de CAPS,
excluídos, vistos como perigosos e incapazes, meras vítimas do olhar dos
outros, e fazer com que essas pessoas comecem a olhar. Isso é uma
inversão muito interessante.
É como
se a fotografia fizesse com que o portador de sofrimento psíquico se
apoderasse novamente de uma coisa que lhe foi tirada. Ele passa, então, a
ser, ao invés de vítima, dono de um olhar. Ele começa a te olhar, a
olhar a cidade, a olhar o mundo. Fotografar é isso. É uma maneira de
dizer que eu também sou capaz de olhar e de dizer o que acho das coisas."
A lente fotográfica de Mardônio Parente
Por Bruna Naves
Acadêmica de Jornalismo do CEULP/ULBRA.
“Acho que a fotografia é um instrumento extremamente poderoso.”
Foto: Arquivo pessoal
Perfil
“- Pai, vou fazer psiquiatria!
- O quê?
- Vou fazer psiquiatria.
- Deixa de conversa, rapaz!
- Por quê?
- E psiquiatra é médico?”
Ele avisou e preparou o pai. A carreira estava escolhida.
Mardônio Parente de Menezes, 38 anos, fez medicina na Universidade Federal do Ceará. É especialista em psiquiatria
pelo Hospital de Saúde Mental de Messejana e especialista em Saúde
Mental pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.
Mestre e doutorando em psicologia pela Universidade Estadual Paulista.
Foto: Arquivo pessoal
Atualmente é médico psiquiatra do Governo do Estado de Tocantins e professor do curso de Psicologia
do Centro Universitário Luterano de Palmas. Além das funções como
médico e docente, é também fotógrafo, poeta e sócio fundador da
Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, Regional Tocantins
(SOBRAMES-TO).
E
foi num clima de poesia misturada com fotografia, que esta entrevista
aconteceu. O médico falou de sua vida profissional e, principalmente, do
trabalho e convivência no CAPS.
(En)Cena
- Você trabalha no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de Dianópolis
(sudeste do Tocantins, 340 km de Palmas). Lá tem casos de pessoas que
viviam em suas casas, trancadas? E hoje, com o tratamento recebido no
CAPS, é possível apontar mudanças? Como é percebido e como se dá o
progresso de um usuário do CAPS?
Mardônio Parente - Houve uma mudança muito radical em relação à saúde mental
aqui no Brasil, principalmente na década de 1980. Mas na década de
1970, já houve alguma mudança. Antes, qualquer problema era tratado no
hospital e, quase sempre, com internações. Algumas vezes, para a vida
toda. Na realidade, na década de 1970, isso começou a ser questionado e,
principalmente nas décadas de 1980 e 1990, começa a acontecer um
processo que ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica, que questiona,
entre outras coisas, essa história de atendimento às pessoas com
problemas psíquicos. Mas essa é apenas uma das dimensões da Reforma, que
a gente chama de técnico-assistencial. Nessa dimensão, a principal
proposta é a mudança, realmente, do hospital para serviços comunitários,
para que a pessoa não se desvincule de seu território, a fim de ter o
tratamento no lugar onde ela vive.
O
que se notou com o hospital psiquiátrico é que as internações longas
acabavam mais atrapalhando do que ajudando, pois – ao voltar do
tratamento - a pessoa estava desacostumada a viver em sociedade. Essa
mudança veio de uns tempos para cá e essa, hoje, é a proposta do
Ministério da Saúde. O atendimento deve se dar prioritariamente em
serviços territoriais e em regime ambulatorial. Como último recurso,
caso se precise de um hospital, que não seja um hospital psiquiátrico,
mas um hospital geral com enfermaria psiquiátrica. Aqui em Palmas, por
exemplo, o HGPP (Hospital Geral Público de Palmas) tem uma enfermaria
psiquiátrica e recebe pessoas em crise. Isso foi um avanço muito grande,
porque imagine o impacto que é pegar uma pessoa e internar em um
hospital psiquiátrico e essa pessoa passar anos internada. Depois disso,
dar um redirecionamento à vida dela para que ela consiga conviver em
sociedade é muito difícil.
Hoje, o
CAPS trabalha com a proposta de inclusão, para que a pessoa – por
exemplo - consiga voltar ao mercado de trabalho, à convivência entre as
pessoas etc. Pequenas ações de inclusão são muito importantes, porque
uma das coisas muito graves que aconteciam (e ainda acontecem) é que a
doença acaba por provocar a desvinculação do mercado de trabalho, das
amizades, das relações sociais.
O
CAPS, hoje, consegue tratar a doença e faz com que a pessoa continue com
sua rede de relações como sempre teve. A atenção à saúde mental de uns
tempos pra cá mudou muito e, em minha opinião, mudou para melhor.
(En)Cena - A sociedade está mais aberta a receber pessoas com problemas mentais?
Mardônio Parente -
Essa é outra dimensão da reforma, a sociocultural, que é você fazer
caber a loucura no nosso espaço, na cidade, no nosso dia a dia e essa
dimensão faz com que a sociedade fique mais aberta às pessoas com
transtornos mentais e visa a incluir o portador de problemas psíquicos
no lugar de cidadão, como qualquer outra pessoa. Essa é uma coisa que a
reforma tem conseguido, mas ainda de forma muito lenta, porque isso
requer uma mudança de opinião, o que leva muitos anos. Se a gente for
considerar o período em que a psiquiatria passou recomendando a
internação das pessoas portadoras de sofrimento mental, o que se deu do
final do século XVIII até o período pós-Segunda Guerra (aqui no Brasil
até a década de 1970), imagine o tempo necessário para que isso comece a
ser questionado! De 1970 pra cá é muito pouco tempo para a gente mudar
uma cultura inteira, para que as pessoas comecem a aceitar que lugar de
louco não é no hospício, que lugar de louco é na cidade. É difícil isso,
mas é uma coisa que se tem conseguido, principalmente os CAPS, que
fazem algumas ações no sentido de propiciar o contato entre a loucura e a
sociedade. Exemplos disso são: a parada louca, que acontece no CAPS de
Dianópolis, e o Dia Mundial da Saúde Mental, ocasião em que os CAPS
fazem ações que trazem o tema da loucura e da saúde mental para a pauta
de um debate social.
É uma coisa que
está acontecendo mas que precisa mudar muito ainda. Infelizmente, se a
gente sair perguntando, algumas pessoas vão dizer que louco é para ficar
no hospício mesmo, que louco é perigoso etc. Então, isso é uma mudança
lenta, mas que está acontecendo, sim.
(En)Cena - Você já se envolveu emocionalmente com algum caso?
Mardônio Parente - Antes,
existia um conceito de que o terapeuta, seja ele médico, psicólogo
etc., deveria ter uma postura de neutralidade em relação ao outro, ao
cliente, ao paciente, ao usuário.
Isso envolve uma terceira dimensão da reforma, que se chama dimensão
epistemológica e que diz respeito a uma mudança na forma como a própria
psiquiatria e outras ciências abordam a loucura, visando a uma real
mudança nos diversos campos do saber.
A psiquiatria – por exemplo - visava, antes, à neutralidade do
terapeuta, ao não envolvimento. A reforma tem mudado isso também, visto
que é impossível você pensar em um terapeuta completamente neutro. Hoje,
pensando em uma idéia ampliada de clínica, o envolvimento pode ser
matéria de trabalho em um processo terapêutico, pois não há como duas
pessoas se encontrarem sem se envolverem de alguma forma. Com o usuário
não pode ser diferente. Quando chega uma pessoa no CAPS, com quem quer
que ele troque relações, vai haver envolvimento de ambas as partes. É
claro que a gente precisa de um técnico que seja bem formado, tanto
tecnicamente como pessoalmente, para que esse envolvimento não
atrapalhe. Quando há uma espécie de envolvimento que provoca, por
exemplo, um cuidado excessivo, que acaba infantilizando o usuário, isso
pode atrapalhar a relação. Mas existem relações em que o envolvimento
pode ser positivo e deve ser positivo. Acho que o grande desafio não é
não se envolver, mas se envolver de uma forma que se construa algo, para
que a relação seja boa para as pessoas envolvidas. O terapeuta não deve
e não pode estar ali apenas como aquele que possui um saber que servirá
somente ao outro; o profissional também deverá sair enriquecido daquele
encontro. Enfim, o envolvimento é necessário deve trazer algo de
positivo para a relação.
(En)Cena - Como você procura agir para sofrer o menor impacto possível com as dores e dramas dos pacientes?
Mardônio Parente -
Isso, em geral, é difícil. Por exemplo, na minha residência
(especialização médica) entraram cinco pessoas. Uma delas desistiu e uma
outra esteve afastada por uns seis meses, deprimida. Nós entramos em
contato com muita coisa: coisas nossas e do outro.
É importante que se tenha a percepção da dor do outro sem que essa
sensação nos elimine, nos mate. Caso contrário, nós não iremos conseguir
cuidar de ninguém.
Não existe uma
técnica específica, mas eu fiz terapia durante quatros anos e isso me
ajudou muito a perceber o outro e a perceber também que o outro é o
outro, não sou eu. Pensar nisso me ajudou muito. Também é preciso que se
tenha uma válvula de escape, é preciso uma vida e que essa vida não
seja só a rotina do trabalho. É preciso que se tenha, paralelamente,
algo que produza vida, para que se consiga exercer sua capacidade de
cuidar. Caso contrário, o profissional acaba se esvaindo, cansando. Se a
pessoa não tem algo que lhe torne a vida interessante, viva mesmo, não
consegue produzir vida no serviço.
(En)Cena - Como aliar a medicina a tudo o que você faz?
Mardônio Parente -
Apesar das muitas coisas que eu faço, eu vejo um sentido nelas. Acho
que não são coisas tão diferentes. Vejo um fio comum que me conduz. Eu
não consigo separar, por exemplo, o trabalho de fotógrafo do trabalho de
psiquiatra. Eu acho que são coisas que se juntam.
Eu sempre gostei muito de ficar transitando. Por exemplo, fiz
especialização em saúde mental; fiz meu mestrado em psicologia, que -
teoricamente – é um campo distante da psiquiatria; estou fazendo
doutorado em psicologia e pretendo fazer meu pós-doutorado em outra
área, talvez em comunicação, que seja. Acho importante fazer esse
passeio e vejo que eu não daria conta de fazer pós-graduação, mestrado e
doutorado em uma mesma área. Penso que transitar em diversas áreas é
aumentar sua caixa de ferramentas; é você ter ferramentas para
trabalhar.
Eu gosto de fotografia e
me divirto muito com ela. Gosto de olhar, de fotografar... Isso me ajuda
muito a ter outros olhares a respeito das pessoas que me procuram. A
fotografia propicia isso. Portanto, não vejo incompatibilidades. Há,
claro, uma limitação quanto à falta de tempo, mas tento me
virar.
(En)Cena - A fotografia também é uma terapia?
Mardônio Parente - Acho
que a fotografia é um instrumento extremamente poderoso. De fato, no
CAPS de Porto Nacional, tive uma experiência bem interessante: coordenei
por cerca de dois anos e meio, uma oficina de fotografia, com alguns
usuários bem graves. Essa oficina chegou a ser veiculada em um programa
do Canal Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, e dela saiu uma exposição
fotográfica que rodou algumas cidades do Tocantins.
Alguns anos depois, escrevi um artigo sobre essa experiência. Na época
em que a oficina se deu, eu não me preocupava muito se aquilo era
terapêutico. Simplesmente nos reuníamos, trocávamos experiências, além
de tentarmos contemplar alguns objetivos que o grupo tinha se posto:
como a exposição, por exemplo. Chegamos a montar, dentro do CAPS, um
laboratório de revelação em preto e branco. Algo bem interessante...
Depois de um certo tempo, vi que - apesar de não haver exatamente um
referencial teórico claro que embasasse aquela oficina como estratégia
terapêutica – aquela experiência fez parte de uma ação de cuidado. Aí,
eu fui obrigado a pensar sobre isso, sobre porque a fotografia pode ser
interessante como proposta terapêutica. Na minha opinião, existem
milhões de motivos que fizeram daquela uma boa experiência, mas acho que
a fotografia dentro de um serviço de saúde
mental tem uma coisa fundamental: que é você pegar usuários de CAPS,
excluídos, vistos como perigosos e incapazes, meras vítimas do olhar dos
outros, e fazer com que essas pessoas comecem a olhar. Isso é uma
inversão muito interessante.
É como
se a fotografia fizesse com que o portador de sofrimento psíquico se
apoderasse novamente de uma coisa que lhe foi tirada. Ele passa, então, a
ser, ao invés de vítima, dono de um olhar. Ele começa a te olhar, a
olhar a cidade, a olhar o mundo. Fotografar é isso. É uma maneira de
dizer que eu também sou capaz de olhar e de dizer o que acho das coisas.
Mardônio Parente em exercício como fotógrafo.
Foto: Arquivo pessoal
(En)Cena
- Mudando de assunto, você integra a equipe do portal (En)Cena,
inclusive é um dos idealizadores. Como surgiu a idéia do portal
(En)Cena?
Mardônio Parente -
O portal surgiu basicamente da ideia de aproveitar experiências que
acontecem todos os dias nos serviços de saúde e de saúde mental, as
quais têm pouca visibilidade e que acabam por se perder por falta de
oportunidade e espaço para divulgação. Não é todo o mundo que gosta e
que quer escrever um artigo científico sobre suas experiências
profissionais, assim como e não é toda experiência que se adequa a um
artigo científico. O (En)Cena, então, seria um espaço para se divulgar o
trabalho realizado nesses serviços, assim como um espaço de troca de
experiências. Foi basicamente dessas ideias que surgiu o portal: como
uma oportunidade de trocar experiências e também como um espaço de
divulgação do que está acontecendo no campo da saúde mental.
Nos CAPS, por exemplo, existem muitas produções dos próprios usuários
que a gente não consegue divulgar. O (En)Cena é um espaço para isso
também. A coisa foi crescendo e outras ideias foram se juntando. A
proposta do portal se enriqueceu com o fato de que, para sua realização,
juntaram-se os cursos de Comunicação, Sistemas de Informação e
Psicologia. Só isso seria o bastante para tornar o projeto rico. É muito
interessante ver pessoas de outras áreas falando sobre loucura, que - a
priori - não tem nada a ver com sua formação. Se pararmos um pouco para
pensar, faz parte do papel da academia formar pessoas que saibam
discutir saúde e saúde mental, já que visto deveria ser um valor para
todo o mundo. Há uma seção, por exemplo, para a qual a gente chama
pessoas de outras áreas para falar sobre loucura. Essa seção se chama
“Desterritorialize-se”, que é isso, é você sair do território e passear
por um outro. Acho que essa é uma proposta muito legal do (En)Cena.
Hoje, pode-se dizer genericamente, que o portal pretende se tornar e já é um espaço de discussão sobre saúde mental.
Fonte: (EN)CENA
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