PICICA: "A
“lentidão” de Tanta Água não expressa um defeito. Os relatos que se
produzem e as transformações das cenas provam que os tempos narrativos são bem
manejados, com sutileza e com determinantes. Surpreendemo-nos positivamente com
um filme que se refugia numa irresponsável admiração pelos invisíveis detalhes."
Cinema
Os detalhes invisíveis
O
sociólogo Deni Rubbo analisa a "irresponsável admiração dos
pormenores" no filme “Tanta Água”, de Ana Guevara e Letícia Jorge
por Deni
Ireneu Alfaro Rubbo
Cena do
filme "Tanta Água", de Ana Guevara e Letícia Jorge
Há uma
ideia comum sobre o cinema segundo a qual um bom filme não deve construir-se
com cenas “mortas”. Trata-se de uma regra universal implícita. Por exemplo,
imaginem uma sequência de filme morosa, sem música, em que o personagem troca
de roupas e, escova os dentes e não dá a menor pista sobre o que isso tem a ver
com a trama. Poderia ser imperdoável para os espectadores. O público exige um
personagem de roupas trocadas e dentes escovados, sem delongas. A afirmação,
sempre pejorativa, de que “não gostamos do filme porque é lento” assenta-se
justamente nessa ideia.
Essa
concepção tem sido profundamente reavaliada por alguns diretores, e tem
transformado, para dizer o mínimo, supostos defeitos em virtudes. Não é por
acaso que Tanta água – que rema nessa vertente –, primeiro longa
metragem das uruguaias Ana Guevara e Letícia Jorge, tenha agradado tanto a
crítica quanto o público.
No filme,
Alberto, um quarentão divorciado, aproveita as férias para levar o filho
pequeno (Federico) e a filha adolescente (Lucia) a uma estância termal, Arapey,
mas a família acaba encontrando-se presa, sem muito o que fazer, por conta da
forte chuva que não cessa.
É através
da cotidianidade “banal”, “morta” que se tece pouco a pouco a relação entre os
três personagens, em um ambiente de tédio, de visível indiferença, de poucas
palavras. De alguma maneira, todos afetam a todos com seus atos. Todos também
anseiam por um descanso ativo. Muitas vezes, especialmente no começo, existe
uma disposição para o conflito entre o pai e filha, mas ao mesmo tempo uma
indisposição para continuar o conflito.
Há uma
atenção especial à personagem de Lucia, embora seja difícil afirmar que ela
seja a personagem principal. É possível que o filme suscite o debate sobre a
adolescência e a maneira de ser pai, sem cair nos lugares comuns, mormente
conservadores, sobre o tema. Possíveis fracassos dos personagens não são
trágicos e as vitórias não são glorificadas, mas, em ambos, são sentidas.
No fundo,
a escolha de centralizar a relação entre o cotidiano e tempo, considerado
“pequeno”, é uma tentativa de colocar à prova – e desafiar – uma linguagem em
que os planos possam falar, em lugar dos personagens. Como afirmou uma das
diretoras do filme, Ana Guevara, “Os personagens de ‘Tanta Água’ não falam
sobre si mesmos. Não é óbvio o que eles são. Existe uma intenção de falar sobre
eles mostrando as coisas que fazem”.
A
“lentidão” de Tanta Água não expressa um defeito. Os relatos que se
produzem e as transformações das cenas provam que os tempos narrativos são bem
manejados, com sutileza e com determinantes. Surpreendemo-nos positivamente com
um filme que se refugia numa irresponsável admiração pelos invisíveis detalhes.
Pode-se
interpretar que a relação entre personagens e temporalidade é algo
expressamente uruguaio. Talvez. Afinal, como disse o crítico José Geraldo
Couto, os uruguaios têm uma singular capacidade de captar e expressar a
melancolia do tempo que passa, da “vida que poderia ter sido e que não foi”.
Não
estaria Tanta Água próximo a Martín Santomé, personagem de A trégua,
de Mario Benedetti (ao menos no plano filosófico)? Em uma passagem de seu
diário o personagem do escritor uruguaio reflete: “Há dentro de mim um senhor
que não quer forçar os acontecimentos, mas também há outro senhor que pensa
obsessivamente na pressa”.
Simpático
e gracioso. Quem disse que o cinema uruguaio não faz do cinema algo belo,
precioso e irreverente?
Fonte: CartaCapital
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