outubro 08, 2013

"Cantando na chuva", por Bruno Cava

PICICA: "A grande imprensa playboy perdeu a pauta. As redes de organização alcançam massa crítica antagonista, graças em parte ao tremendo erro de estratégia e avaliação dos governos." 

Cantando na chuva


O tempo estava propício para a fantasia do black bloc. Um friozinho de primavera com breves momentos de chuva. Os professores não estavam sozinhos. Muitos de seus alunos os acompanhavam em blocos de vinte, trinta, cinquenta mascarados, da ponta dos pés aos cabelos. Tiravam fotos com eles, e os incentivavam a todo momento. Dalguns não se viam sequer os olhos, tão paramentados marchavam. Movimentavam-se de maneira compassada e coordenada, para gerar o máximo efeito, magnetizando a manifestação. Em meio aos escudos “ação black bloc” e os panos pretos, também se viam bandeiras roxas do feminismo, as vermelhas da esquerda, dos partidos, sindicatos, movimentos sociais, bandinhas e grupos de intervenção artística. Sessenta mil pessoas, muitas cores, muitos grupos de afinidade e coletivos. Dançando. Pulando. Passavam e as luzes dos prédios piscavam. Papéis picados eram lançados. Cada qual com sua tática, sua experiência vívida de ardores e lutas de rua. E o gostinho de que o recomeço vai ser maior e mais qualificado, porque desta vez não tinha a patriotada e os slogans anticorrupção do 17J. A grande imprensa playboy perdeu a pauta. As redes de organização alcançam massa crítica antagonista, graças em parte ao tremendo erro de estratégia e avaliação dos governos. Pela primeira vez, aquela maquinaria complexa funcionava, como um relógio surrealista: unidade na performance, nas causas díspares reunidas do direito à cidade. A revolução, ali, era uma estética.

A grande imprensa e os governos farão de tudo para reduzir a manifestação ao “rastro de destruição”. Trabalham pela morte da beleza e da justiça. Acrítica e a-histórica. Fosse na Turquia, seriam cidadãos comprometidos com o seu país. Aqui, vândalos. O fingimento cada vez mais insuportável de que tudo iria bem não fosse o “bando de malucos quebrando tudo”. Bloqueiam qualquer mistura: querem ver professor na sala de aula, sindicato nas assembleias, manifestantes na Sapucaí. Extraem o mundo de seu devir histórico, numa cidade onde se é espancado, removido de casa, gaseado, perseguido e morto apenas por exprimir a insatisfação. Por desejar uma democracia onde a milícia não esteja legislando e os grandes empresários planejando e administrando a cidade, sempre com a mais deslavada cumplicidade oficial. Onde o tabu da violência só vale para reproduzir uma ordem assassina. 

Rangemos e nos confrangemos nas filas, nas esperas da emergência, nos ônibus e trens em hora do rush. A montanha de cobranças nos esmaga: precisamos de plano de saúde, escola particular, carro e casa próprias, porque — dizem — não temos mais o direito. Devemos aspirar ao sucesso, enquanto Amarildo é arrancado da própria casa, torturado com choque elétrico e desaparecido da história. Jamais de nossa memória, que se revolve nas ações diretas, numa tenacidade difícil de mensurar até onde pode ir. Cinco minutos da lucratividade dos bancos em cima do dinheiro alheio pagariam tranquilamente todos os “rastros de destruição”.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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