PICICA: "(En)Cena
- Hoje vemos duas vertentes simultâneas e que vão em sentido contrário à
Política de Redução de Danos, a Internação Compulsória e as Comunidades
Terapêuticas. Sabemos que muitas dessas Comunidades trabalham apenas
duas dimensões do homem: o trabalho e a religiosidade, e negligenciam
que outros aspectos como: a dimensão afetiva, a dimensão orgânica e a
implicação política desses sujeitos. Como você enxerga isso?
Domiciano - Historicamente
no Brasil só existem três olhares sobre as drogas. O primeiro é o olhar
da saúde, que vê no uso de drogas uma doença chamada dependência
química e propõe como tratamento a clínica psiquiátrica, felizmente a
gente vem descobrindo que hospital psiquiátrico não serve para nada, não
serve nem para louco. Há uma tendência em transformar o usuário de
drogas no novo louco. Como vivemos em uma sociedade capitalista, esse
conceito da saúde que vê no uso de drogas uma doença chamada dependência
química e que propõe a clínica psiquiátrica como forma de atenção,
divide a sociedade em dois grupos: quem tem dinheiro e vai ter acesso às
clínicas particulares, e quem não tem dinheiro e depende de serviços
como o Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas (CAPS
AD). Com o fechamento dos hospitais psiquiátricos os CAPS AD passam a
fazer o trabalho com os usuários de drogas, desinternando, atendendo
essas pessoas de uma nova maneira, baseada no conceito de redução de
danos. O segundo olhar sobre as drogas é o da justiça, que não a vê como
doença, mas sim como um delito. O tratamento, portanto, não é a clínica
psiquiátrica, é a punição. Essa visão também divide a sociedade em dois
grupos: quem tem dinheiro para contratar um advogado, e quem não tem e
vai preso. O terceiro e último olhar, é o mais antigo, o das religiões.
Ela não vê nem como doença, nem como um delito, ela vê como um pecado,
portanto, o tratamento não é nem a clínica psiquiátrica nem a punição, é
a conversão. A religião é, por sua vez, a única que não divide, não
separa ricos e pobres. Se você está convertido estará curado e o
problema está resolvido. Quem usa drogas ou é doente, ou é delinquente
ou é pecador, então ele raciocina e reage de acordo com aquilo. O olhar
que a redução de danos nos propõe é que o uso de drogas não é só uma
doença, não é só um delito, não é só um pecado, existe um quarto olhar, é
o olhar baseado no nosso conceito de cidadania. A cidadania vê como um
direito."
A política de Redução de Danos no Brasil e os direitos fundamentais do homem
Por Jonatha Rospide Nunes
Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal Fluminense, Professor do CEULP e Colaborador do CRP/09 .
Foto: Arquivo pessoal
O (En)Cena conversou com Domiciano Siqueira sobre a questão do enfrentamento do uso de drogas no Brasil e das Políticas de Redução de Danos.
Domiciano é consultor na área dos direitos humanos ligados aos
processos de exclusão social, com ênfase na questão do uso de drogas,
trabalhando com grupos de alta vulnerabilidade como; prisioneiros,
prostitutas, homossexuais, negros, índios etc.
(En)Cena - Domiciano, como se deu o seu envolvimento com a política de redução de danos?
Domiciano - A minha trajetória nessa área começou por volta de 1990, eu era sócio de uma agência de propaganda no interior de São Paulo,
e foi uma época que as empresas começaram a procuras as agências de
propaganda para se associarem e participar de campanhas contra a AIDS
que estavam surgindo com muita efervescência. O meu trabalho nessa
agência era no setor de criação e produção de textos, então eu era
aquele cara que estudava o assunto e fornecia dados para o restante do
pessoal da criação poder formar a campanha. Então comecei a pesquisar
essa relação da AIDS com as drogas, principalmente drogas injetáveis.
Até então, no Brasil, não se falava de uso de drogas injetáveis, era
coisa da Europa e Estados Unidos. Então começaram a aparecer nos
boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde as primeiras informações
desse grupo, que relatava ter adquirido o HIV em consequência do uso
injetável de drogas.
(En)Cena - O que te chamou a atenção?
Domiciano - Eu
comecei a ver que essa ligação era muito próxima. Os dados confirmam
que, cerca de 46% dos casos de AIDS, eram de pessoas que tinha relatado
ter compartilhado seringa e consumido drogas de forma injetável. Então
eu vi que a questão das drogas era mais problemática do que a própria
questão o HIV, mas que muitas empresas não queriam vincular sua marca à
questão das drogas, então eu fui procurar o Ministério da Saúde. Eles já
sabiam como reagir diante da transmissão pelas relações sexuais, mas
tinham dificuldades para trabalhar com os grupos de risco.
(En)Cena - Como surgiu a Política de Redução?
Domiciano - Resumidamente, as melhores técnicas/estratégias de enfrentamento dessas situações de drogas e do vírus HIV
foram chamadas: Programa de Redução de Danos, e já existiam na Europa.
Sabia-se que haviam nascido na Holanda na década de 1970, mas que tinha
um histórico bem mais anterior, por volta de 1920, 1930 em Rolleston.
Rolleston é um condado no interior da Inglaterra que tinha uma espécie
de um centro de saúde. Os profissionais médicos e enfermeiros ao ir para
o trabalho nesse centro de saúde tinha que obrigatoriamente passar por
um grupo de moradores de rua, usuários de heroína injetável e de álcool.
E aquilo começou a intriga-los, pois não tinham como ajuda-los. Então
esses técnicos resolveram distribuir heroína e álcool no centro de
saúde, assim os usuários iriam ao posto para poder pegar a droga,
chegando ao posto de saúde eles ganhavam, além da porção, o direito de
poder tomar um banho, lavar suas roupas e, se quisessem, podiam
conversar com esses médicos, com esses enfermeiros, psicólogos, enfim
eles passaram a usar essa possibilidade para atrair esse grupo. Os
resultados foram tão bons que o Condado de Rolleston tornou sendo o
berço da redução de danos no mundo, isso em 1930, 1940.
(En)Cena - É a partir daí ganhou o mundo?
Domiciano - Em 1970, na Holanda, usuários de drogas injetáveis
começam a se organizar politicamente porque muitos usuários de droga
começaram a morrer pelo vírus HIV. Os companheiros e os familiares
começaram a acionar a justiça e o Estado, alegando que os usuários
morriam porque não tinham acesso a nenhum tipo de tratamento. O estado
respondeu o que o Brasil responde até hoje: “Não, tem tratamento sim, se
ele quiser parar nós temos para onde mandar”. Mas como nem todos
queriam parar de usar drogas, um tratamento baseado na abstinência não
era suficiente e, como aumentaram as cobranças da população, o estado
teve que encontrar um meio de se ajustar a real necessidade do povo.
(En)cena - Qual a solução encontrada pelo governo holandês?
Domiciano - Dando
a eles a seringas novas (pois as pessoas compartilham seringa porque
não tem dinheiro para comprar uma nova, a prioridade para um dependente
de drogas é comprar drogas) foi assim que o estado fortaleceu as ideias
de redução de danos. Começaram então, na década de 1970, as famosas
trocas de seringas.
(En)Cena - No Brasil a Política de Redução foi bem acolhida, ou enfrentou alguma barreira para ser instalada?
Domiciano - No
Brasil os primeiros casos conhecidos de HIV datam da década de 1980, e
então se descobre essa ligação da doença com o uso de drogas injetáveis.
Mais tarde descobriu-se que as hepatites também podiam ser transmitidas
das mesmas formas, e que também precisavam de uma intervenção. O
Ministério da Saúde em 1990 assumiu o compromisso de intervir nessa
situação, a primeira intervenção aconteceu na cidade de Santos, em 1989,
eles implantaram um programa de troca de seringas para combater a
transmissão do vírus HIV. Houve um confronto do Ministério Público, da
Justiça e da Opinião Pública, contra esse tipo de intervenção, alegando
que essa medida estimularia o consumo de drogas. Entre 1989 e 1992,
houveram varias discussões no Brasil sobre o tema, essas discussões
substituíram, por um bom tempo, a Intervenção. E foi proibido fazer
trocas de seringas enquanto não se resolvia. Em 1990 o centro de
referência e tratamento de AIDS em São Paulo também foi proibido de
fazer a troca. Os jornais publicaram que o Ministério Público avisou que
prenderia qualquer médico que insistisse em distribuir seringas, já em
1992 o Ministério da Saúde assumiu esse compromisso e financiou cerca de
10 programas de troca de seringas no país.
(En)Cena - E como foi para você lidar diretamente com esse movimento, participar da instalação dessa politica nos país?
Domiciano - Em
1993 eu cheguei a Porto Alegre para trabalhar na Cruz vermelha
brasileira, que tinha um projeto na tentativa de fazer frente ao vírus
HIV pelo uso de drogas. A Cruz vermelha teve um projeto financiado pelo
Ministério da Saúde cujo objetivo era uma companha publicitária visando à
transmissão do vírus HIV. Para mim foi um prato cheio, pois eu era do
assunto, estudava essa área, então trabalhamos um ano e criamos uma
campanha publicitária que foi um sucesso, foi um show, cujo slogan foi
“A SERINGA PASSA, A AIDS FICA” não havia nenhum julgamento moral, não
estava dizendo “pare de usar drogas que o HIV vai te pegar”, “você vai
morrer disso”, não, simplesmente respeitando o consumo mas dando uma
informação importante “a seringa passa, a AIDS fica” acorde!
(En)Cena - Como era o seu trabalho?
Domiciano - Eu
fui uma das pessoas encarregadas de divulgar a campanha nas rádios,
emissoras de televisão, jornais, enfim, fazer a distribuição da campanha
nas ruas. Em 1994 a prefeitura de Porto Alegre, por meio da Secretaria
de Saúde obteve financiamento para a implantação de um programa de
trocas de seringas. Foi aí que eu fui chamado pela Cruz Vermelha para
trabalhar junto à Secretaria de Saúde e coordenar a implantação desse
programa. A novidade que Porto Alegre adicionou ao implementar o
programa foi que, se o usuário de drogas está diretamente ligado com o
problema, ele tem que se responsabilizar. Então o que a prefeitura de
Porto Alegre fez naquele momento foi assumir que as pessoas usam droga
mesmo, mas o fato de usarem não tiraria delas nem o direito e nem os
deveres como cidadãos. Colocar essas pessoas nas equipes de redutores de
danos, que são as pessoas que fazem esse trabalho nas ruas, criou um
diferencial, e foi o fez que o programa avançasse tão rápido.
(En)Cena - Os resultados em Porto Alegre surpreenderam?
Domiciano - Porto
Alegre, entre 1995 e 1996, trocava cerca de 10 mil seringas por mês.
Por meio de trabalho de vinte pessoas que visitavam semanalmente vários
pontos da cidade, montaram uma rede de usuários de drogas enorme. Porto
Alegre recebeu visitas do mundo todo, do país todo, as pessoas queriam
ver como é que funcionava aquilo? As notícias eram tantas sobre o
sucesso do programa que foi se desfazendo aquela ideia errada que
distribuir seringas podia estimular o consumo, era o contrário disso, a
gente começou a perceber, que os usuários de drogas que se vinculavam ao
programa, e passavam a trocar regularmente a seringa ou na rua com os
nossos redutores, ou nas unidades de postos de saúde ligadas ao
programa, e eles começavam a conversar com os redutores, e começavam a
procurar o programa querendo falar com os profissionais de saúde,
querendo deixar as drogas. E começamos a escrever, a fazer capítulos de
livros, publicar, o que tornou científica mesmo o nosso trabalho.
(En)Cena - Como nasceu a Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA)?
Domiciano - Em
1997 a gente se deparou com um problema, o estado não podia contratar
usuários de drogas para trabalhar no serviço público por conta da lei do
concurso publico. Foi aí que eu percebi que só o estado não poderia ser
responsabilizado pelo problema, a sociedade civil também deveria fazer
seu papel. Em 1997 fundamos então em São Paulo a Associação Brasileira
de Redução de Danos (ABORDA). Essa organização não governamental teria a
responsabilidade de formar a rede nacional de usuários de drogas, além
de fomentar a implantação de redução de danos, exigir mais do
financiamento, enfim, organizar essa rede.
(En)Cena - Você fundou a associação?
Domiciano - Eu
fui um dos fundadores da ABORDA e fui também o primeiro presidente
indicado para dirigir e essa ONG até oficializarem a fundação. Fiquei na
função como presidente por dois mandatos (quatro anos), até outro
presidente ser eleito. Atualmente sou presidente outra vez, até o ano
que vem, onde teremos mais um encontro nacional e novas eleições.
(En)Cena
- Hoje vemos duas vertentes simultâneas e que vão em sentido contrário à
Política de Redução de Danos, a Internação Compulsória e as Comunidades
Terapêuticas. Sabemos que muitas dessas Comunidades trabalham apenas
duas dimensões do homem: o trabalho e a religiosidade, e negligenciam
que outros aspectos como: a dimensão afetiva, a dimensão orgânica e a
implicação política desses sujeitos. Como você enxerga isso?
Domiciano - Historicamente
no Brasil só existem três olhares sobre as drogas. O primeiro é o olhar
da saúde, que vê no uso de drogas uma doença chamada dependência
química e propõe como tratamento a clínica psiquiátrica, felizmente a
gente vem descobrindo que hospital psiquiátrico não serve para nada, não
serve nem para louco. Há uma tendência em transformar o usuário de
drogas no novo louco. Como vivemos em uma sociedade capitalista, esse
conceito da saúde que vê no uso de drogas uma doença chamada dependência
química e que propõe a clínica psiquiátrica como forma de atenção,
divide a sociedade em dois grupos: quem tem dinheiro e vai ter acesso às
clínicas particulares, e quem não tem dinheiro e depende de serviços
como o Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas (CAPS
AD). Com o fechamento dos hospitais psiquiátricos os CAPS AD passam a
fazer o trabalho com os usuários de drogas, desinternando, atendendo
essas pessoas de uma nova maneira, baseada no conceito de redução de
danos. O segundo olhar sobre as drogas é o da justiça, que não a vê como
doença, mas sim como um delito. O tratamento, portanto, não é a clínica
psiquiátrica, é a punição. Essa visão também divide a sociedade em dois
grupos: quem tem dinheiro para contratar um advogado, e quem não tem e
vai preso. O terceiro e último olhar, é o mais antigo, o das religiões.
Ela não vê nem como doença, nem como um delito, ela vê como um pecado,
portanto, o tratamento não é nem a clínica psiquiátrica nem a punição, é
a conversão. A religião é, por sua vez, a única que não divide, não
separa ricos e pobres. Se você está convertido estará curado e o
problema está resolvido. Quem usa drogas ou é doente, ou é delinquente
ou é pecador, então ele raciocina e reage de acordo com aquilo. O olhar
que a redução de danos nos propõe é que o uso de drogas não é só uma
doença, não é só um delito, não é só um pecado, existe um quarto olhar, é
o olhar baseado no nosso conceito de cidadania. A cidadania vê como um
direito.
(En)Cena - Você entende a dependência química como doença?
Domiciano - A
redução de danos questiona as duas palavras chaves que organizam o
nosso pensamento em relação às drogas que são; prevenção e tratamento.
Vamos falar de álcool, por exemplo, os adolescentes olham para os
adultos que bebem numa boa e veem que a prevenção não foi cumprida, pois
a prevenção diz para não usar nunca, é por isso que a prevenção que as
pessoas tanto gostam é uma ilusão. É necessário que tanto estado quanto
sociedade civil se organize para permitir esse grupo intermediário, onde
está a maioria das pessoas. É possível usar drogas e cumprir com as
suas responsabilidades, quem duvidar disso que eu estou falando, dá um
passeio pela cidade e você verá quanta gente bonita, quanta gente rica,
quanta gente boa, quanta gente que estuda e trabalha e vai beber, e
depois volta para casa numa boa, não perde trabalho nem família, muito
menos não rouba ninguém... Nós temos que parar com essa ideia ilusória
de achar que o mundo é o mundo que a gente imagina. O mundo é diverso, a
ausência do exercício da democracia, tão importante para nós, é que
precisa ser restaurada para que a gente comece a lidar melhor com esses,
assim chamados, grupos de alta vulnerabilidade.
(En)Cena
- A droga sempre existiu e sempre vai existir, as pessoas usam drogas. O
problema não é a droga em si, mas é a relação que a gente estabelece
com ela, como você vê essa a relação que essa sociedade estabelece com
as drogas em geral?
Domiciano - Tem
uma frase histórica, do psiquiatra e professor na UNIFESP, Dr. Dartiu
Xavier da Silveira “o contrário de dependência não é abstinência, o
contrário de dependência é liberdade”. Isso explica porque somos
contrários à internação compulsória... A internação trata de uma doença
da liberdade. Nós, principalmente brasileiros, temos um histórico de
convivência com a democracia, consequentemente a gente não sabe viver
com liberdade, daí a influência tão forte e muitas vezes negativa da
ideia das religiões. Eu defendo a espiritualidade, é bom dizer isso,
como defensor dos direitos fundamentais,
eu defendo qualquer crença, mas agora estamos falando de políticas
públicas e quando estamos falando de políticas públicas, a gente não
pode pegar a fé individual e transforma-la numa política que vai atender
pessoas que não tem religião. Eu acho que a redução de danos é muito
polêmica, pois ela não traz só prevenção de doenças, ela traz toda a
liberdade à tona e mostra escancaradamente que as pessoas que não tem
direito sobre seus próprios corpos, não terão os seus deveres acionados,
trabalhados e mobilizados em prol da maioria. Para encerrar essa parte,
você vê que no Brasil uma das penas alternativas – e eu sou favorável
às penas alternativas – oferecidas é prestação de serviço à comunidade.
Prestar serviço à comunidade tinha que ser um prazer a todo mundo, mas
no Brasil isso é castigo.
(En)Cena - Como a redução de danos no Brasil lida com os três olhares sobre o usuário de drogas (Doença, Delito, Pecado)?
Domiciano - Então
nós temos para o quarto olhar, que é o da cidadania e que vê o uso de
drogas como um direito, como senso de solidariedade. E ele não é somente
religioso, ele não é somente partidário, o senso de solidariedade é
fruto do que nós chamamos de Transformação Paradigmática - e que não sou
eu que estou defendendo - existem muitos nomes, muitos grandes nomes
que vêm a bastante tempo defendendo que o mundo pode ser restaurado a
partir de uma ação individual gerida pela vivência em grupo, pelo
cuidado que cada um deve ter com o próximo.
(En)Cena - Não há como enfrentar essa questão sem questionar alguns valores da sociedade, concorda?
Domiciano - Exatamente...
Ninguém quer ter preconceito. Qualquer um que você saia na rua
perguntando vai negar ter preconceito. Mas como se que acaba com o
preconceito? É reconhecendo o conceito que organiza o preconceito.
Ninguém quer mexer no conceito de saúde, de religião, conceito de
justiça. Tem-se a sensação de que vai bagunçar se a gente mexer... Acho
que conseguir mexer nesses conceitos é o grande problema.
(En)Cena
- Domiciano, para encerrar, gostaria que você falasse um pouco sobre
suas perspectivas dos serviços de saúde e da relação, se é que existe, a
relação da Redução de Danos com a clínica de rua?
Domiciano - Em
minha opinião - e a minha opinião é fruto da minha observação, dos
livros que eu leio, dos filmes que eu assisto, das músicas que eu
escuto, do trabalho de campo, da rua - eu sou da rua. O que eu vejo, é
que deveria haver cada vez menos policiais, e cada vez mais cidadãos
estimulados a assumir a sua própria história. Estamos vivendo um momento
ruim no Brasil, e em parte eu acho que isso é fruto do desenvolvimento
capitalista. Estamos com muita dificuldade de perceber que não basta
termos dinheiro - não vamos fazer aqui uma discursão filosófica se
dinheiro traz ou não felicidade - acho que dinheiro traz felicidade
quando ele vai do rico ao pobre, quando vai do pobre para o rico ele
traz desespero. Não é dinheiro que está faltando, falta uma definição
política. Todo serviço público que você vai hoje em dia tem um guarda
municipal armado na porta, e aquela plaquinha: “maltratar funcionário
público é crime de 1 a 3 anos de prisão”... Eu vi um cara falando assim:
“Tira essa roupa sua de funcionário público, que eu quero acertar é a
cara do homem que veste esse uniforme”, acho que essa desconstrução tem
que ser acelerada. Precisa haver mais investimento nisso, acho que a
gente tenta. Temos muitas angústias... Eu acho que o Brasil, como eu
disse, o Brasil está vivendo um momento muito chato, mas também
reconheço que essa chatice é fruto do meu jeito angustiado de ver o que
está acontecendo, e eu confesso que tenho pressa, porque eu quero ter a
chance de ver um mundo um pouquinho melhor.
Transcrição: Ruam Pedro Francisco de Assis Pimentel
Edição: Hudson EygoFonte: (EN)Cena
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