outubro 30, 2013

"14 dias" - Resenha 'Vinte centavos: a luta contra o aumento' (Quadrado dos Loucos)

PICICA: "A coerência, em boa parte, decorre da leitura esquemática de Ortellado. Elogiando o “profundo sentido de tática e estratégia”, ele erige o MPL a exemplo de luta autônoma e eficaz. Autônoma, porque soube se desvencilhar das formas representativas, livrando-se de agendas outras. Eficaz, porque não somente orientada a resultados imediatamente reconhecíveis pela população, como também operante em múltiplas temporalidades: a “tempo frio” no paciente trabalho de divulgação e conscientização, a “tempo quente” na ação direta nas ruas, resoluta, irreversível. Um movimento que reuniu as virtudes organizacionais da autonomia e acúmulo com a virtù, bem ao gosto renascentista, de apropriar-se do tempo e agir na hora certa. O que aconteceu em junho foi um “momento maquiaveliano”: o MPL fez uma ousada leitura da conjuntura e foi à luta com uma intensidade inédita e determinação inabalável, atropelando todos os prudentes prognósticos da ciência representativa.

Para Pablo, as razões do sucesso do MPL explicam igualmente o atoleiro em que patinaram as manifestações, depois da revogação do aumento. O esquema diferencia dois polos de uma tensão no interior dos movimentos: foco no processo ou foco nos resultados. O sucesso do MPL se deveu à capacidade de concentrar toda a força de seu processo de auto-organização, autonomia e autovalorização em resultados, por sua vez formulados a partir da percepção das condições sociais e econômicas de uma conjuntura. Evitou, assim, a dispersão em ações autofágicas, a renúncia a relacionar-se com o poder constituído na medida de seu antagonismo."

14 dias
Resenha Vinte centavos: a luta contra o aumento; São Paulo: Veneta, 2013. JUDENSNAIDER, Elena; PIAZZON, Luciana; ORTELLADO, Pablo.



A crônica cobre os quatorze dias entre o primeiro protesto convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL) e o anúncio da revogação do aumento das passagens de ônibus pela prefeitura de São Paulo. De 6 a 19 de junho, o livro suspende o juízo mais analítico para se concentrar numa narrativa panorâmica, no ritmo dos relatos, notícias e reportagens, conforme iam aparecendo dia a dia na grande imprensa e mídias alternativas. Coloca entre parênteses qualquer apriorismo ideológico, numa espécie de pragmatismo teórico, abrigando-o de desqualificações prontas. O método busca apreender o jogo tático dos governos e mídia corporativa, os vaivéns da organização, o termômetro político ao redor das primeiras manifestações. Uma introdução por Marcelo Pomar (Não foi um raio em céu azul“) e um posfácio de Pablo Ortellado (“Os protestos de junho entre o processo e o resultado”) completam o painel dessa que, até agora, é a mais coerente publicação “de chegada” sobre o assunto.

A coerência, em boa parte, decorre da leitura esquemática de Ortellado. Elogiando o “profundo sentido de tática e estratégia”, ele erige o MPL a exemplo de luta autônoma e eficaz. Autônoma, porque soube se desvencilhar das formas representativas, livrando-se de agendas outras. Eficaz, porque não somente orientada a resultados imediatamente reconhecíveis pela população, como também operante em múltiplas temporalidades: a “tempo frio” no paciente trabalho de divulgação e conscientização, a “tempo quente” na ação direta nas ruas, resoluta, irreversível. Um movimento que reuniu as virtudes organizacionais da autonomia e acúmulo com a virtù, bem ao gosto renascentista, de apropriar-se do tempo e agir na hora certa. O que aconteceu em junho foi um “momento maquiaveliano”: o MPL fez uma ousada leitura da conjuntura e foi à luta com uma intensidade inédita e determinação inabalável, atropelando todos os prudentes prognósticos da ciência representativa.

Para Pablo, as razões do sucesso do MPL explicam igualmente o atoleiro em que patinaram as manifestações, depois da revogação do aumento. O esquema diferencia dois polos de uma tensão no interior dos movimentos: foco no processo ou foco nos resultados. O sucesso do MPL se deveu à capacidade de concentrar toda a força de seu processo de auto-organização, autonomia e autovalorização em resultados, por sua vez formulados a partir da percepção das condições sociais e econômicas de uma conjuntura. Evitou, assim, a dispersão em ações autofágicas, a renúncia a relacionar-se com o poder constituído na medida de seu antagonismo.

O autor dá exemplos com a mesma grade. Em 1967, uma grande mobilização em Washington pelo fim da guerra do Vietnã (o resultado) acabou dispersando parte significativa das energias em grandes intervenções contraculturais em paralelo. Num exemplo de estimação do autor, é citado um happening organizado pelo beatnik Allan Ginsberg e outros: os manifestantes cercaram o Pentágono e, entoando um mantra, tentaram fazê-lo levitar. Ele anota outro exemplo, desta vez no ciclo alterglobalização, do final dos anos 1990 e começo dos 2000: o foco na democracia interna e prefiguração de outro mundo possível, “sem estratégia clara” de realização, culminou ao fim e ao cabo em “assembleias inócuas” e nenhuma eficácia para frear a expansão do capitalismo global-financeirizado, a destruição ambiental ou a segunda guerra do Iraque.

O último exemplo vem do recente ciclo global, disparado com as revoluções árabes na primavera de 2011. Na Tunísia e Egito, o enxame convergiu na exigência da deposição dos respectivos ditadores, com um resultado realizável e realizado, fulminando ditaduras em vigor há décadas. Quando, no verão, a peste atravessou o Mediterrâneo (com o 15-M europeu) e, no outono, o Atlântico (com o Occupy), a febre revolucionária esfriou em meio a  intermináveis processos internos de democracia direta e consenso, um assembleísmo anarcoide que, na prática, nada conquistou de duradouro. Um anarquismo ineficaz que, entusiasmado no início, inexoravelmente se esgota nas sucessivas purificações com que reafirma a sua identidade de princípios, até o cansaço e a imobilidade.

Para Pablo, não adianta apenas engravidar o presente do futuro, prefigurando-o mediante novos coletivos, movimentos e organizações. É preciso se engalfinhar com o discurso, a mídia, o “senso comum” das representações dominantes da sociedade. Confrontá-los, como faz o livro, ao repassar o noticiário. O antagonismo precisa ser conduzido em ações concretas com resultados palpáveis, por mais improváveis e imprudentes sejam, inclusive formulando demandas ao poder estabelecido, segundo uma estratégia de curto e longo prazo. Somente assim o “momento maquiaveliano” das jornadas de junho pode acontecer, gerando na práxis uma vanguarda, eu diria, leninista. Quer dizer, uma vanguarda que acontece, que não existe sem o acontecimento de que é deflagradora, sem a pretensão de liderar as “massas”, mas exprimindo ela mesma a arredia subjetividade que as atravessa. No fundo, uma vanguarda que esteja impregnada da expressão já qualificada das “massas”. Isto é, multidão, na acepção que emprestam à palavra autores autonomistas como Antonio Negri e Michael Hardt.

O MPL, desta forma, com seu sentido de tática e estratégia, pôde convocar uma greve da metrópole, exprimindo condições singulares de luta e resistência presentes na multidão. Pôde, assim, desbloquear uma produção de subjetividade que existia, imanente, entre as “massas”. Existente porém represada, à espera da contingência para se realizar no tempo e espaço. Certamente, o MPL não explica as jornadas de junho, — como não explicam, por si só, a Copa das Confederações, as remoções de favelas, ou o modelo perverso de progresso e inclusão social do “Brasil Maior”. Por si só, não tem como explicar o território existencial que levou transversalmente mais de um milhão de pessoas às ruas, a desafiar um dispositivo repressor alucinadamente brutal e colonial. No entanto, com seu foco na tarifa zero, na questão dos transportes coletivos, o MPL explica o contágio, a contingência expansiva: a exposição insofismável da metrópole como sofrimento, que deve e merece ser destituída.

O que não se pode concordar, no livro, é o clima de fim de feira. A crônica não termina em 19 de junho apenas por motivos cronológicos. A saída do MPL de cena significaria, também, o fim do “momento maquiaveliano”. As pautas se dissolvem, as energias se dispersam, e as coisas ficam estranhas. Pablo faz uma analogia com o ciclo alterglobalização, quando a ausência de “orientação política” levou a tática black bloc da época ao primeiro plano. Tudo passou a girar ao redor da violência da polícia e manifestantes, num iô-iô midiático. A comparação não só contorna o viés genuinamente anticolonial do fenômeno no Brasil, ao expor a violência impregnada no cotidiano e “senso comum”, e profundamente seletiva; como também se acerca de reproduzir o discurso dominante. Este que tem instalado o “vandalismo” no cerne do problema, somente para, em ato contínuo, desqualificar a ação (e criminalizá-la) como violenta, politicamente irresponsável e sem estratégia ou tática.

Essa tática, por sinal, não estaria presente desde o primeiro ato do MPL, indissociável de sua própria tática, em 6 de junho? Não seria o enfrentamento direto, cujas imagens furaram o cortinado jornalístico e sua civilidade maniqueísta para imantar os espectadores com sentido político e mesmo estético, não seria outra maneira inteligente de exposição do sofrimento da metrópole? Indissociável, portanto, de uma estratégia ampliada? Se a gestão da mobilidade urbana embute uma gigantesca violência de classe, não o faz, a sua maneira, a gestão da segurança pública nas grandes cidades? É complexo. São problemas, evidentemente, que a panorâmica do livro não teria como desenvolver. Precisaria ser integrada a outros planos e pontos de vista, a outros métodos: quem sabe narrativas-travellings e mesmo textos de “câmera na mão”, em meio às manifestações. O que não dá, em qualquer caso, é engrossar a narrativa do sucesso putativo das manifestações. Os resultados ainda estão abertos, e qualificando-se.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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