junho 13, 2008

120 anos de nascimento de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa
FERNANDO PESSOA:
“Os poetas passam os artistas ficam”

Aníbal Beça ©

Neste 13 de junho comemora-se 120 anos de nascimento do poeta dos heterônimos: Fernando António Nogueira Pessoa nascido em Lisboa em 13 de junho de 1888. O título que elegemos se apega a uma carta do poeta ao escritor Teixeira de Pascoaes, acusando o recebimento de seu “Livro de Memórias”, e em poucas linhas traça ácida crítica ao livro. O que interessa destacar não são as críticas, mas o pensamento daquele que foi o mais curioso caso literário de multiplicidade do sujeito poético que se tem notícia:

“(...) Por isso os poetas passam e os artistas ficam. Ouso quase dizer que os artífices talvez fiquem mais que os poetas. Falo deste mundo, da glória que há nele, e da acção que nele se emprega. Não duvido de que a emoção do poeta possa viver mais do que a arte do artista em outras esferas, noutros mundos, em outros planos, como dizem os ocultistas menores.”

Ao afirmar que “os poetas passam e os artistas ficam”, o autor, simultaneamente, reserva o alcance da celebridade aos que privilegiam a construção artística, em detrimento da “poesia”. Em outra ocasião, tecendo comentários a um livro de João Cabral do Nascimento (As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas) Pessoa aconselha o autor a fazer “sua” “a única regra da arte”. Isto significa tê-la “tão presente, que não sabe que a tem presente”, compreendê-la “até à inconsciência”, senti-la “até não a sentir”. A “única regra da arte” ou o princípio da construção determina que uma obra deve constituir “um todo composto de partes”. Mais precisamente, este é o “todo” aristotélico, cujas partes são “princípio, meio e fim”. (apud, Pinheiro, - Fernando Pessoa, influência e construção, 2003).

Referindo-se ao meio literário português, arremata ironicamente sob o rótulo “o caso mental português: “Esses nossos escritores e artistas são, porém, originais uma
só vez, que é a inevitável. Depois disso, não evoluem, não crescem; fixado esse primeiro momento, vivem parasitas de si mesmos, plagiando-se indefinidamente. A tal ponto isto é assim, que não há, por exemplo, poeta nosso presente ― dos célebres, pelo menos ― que não fique completamente lido quando incompletamente lido, em que a parte não seja igual ao todo”.

Talvez que esse rigor obstinado, davinciano, venha a influir nas criações de mais de uma dúzia de outros heterônimos.

Fernando Pessoa era um homem só, mas em pessoas múltiplas. Além dele mesmo, carregava consigo uma pequena multidão: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e vários outros menos importantes. Personalidades diferentes. Todos escritores.

O próprio Pessoa fazia questão de destacar: não eram meros pseudônimos, mas heterônimos. Ou seja, diferentes pessoas dentro do mesmo poeta. Escreveu ele: “Construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria”.

E, como pessoas independentes, os heterônimos tinham biografia, horóscopo e descrição física. Aqui vão alguns traços dos principais deles retirados do site do poeta Carlos Machado www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet250.htm


Álvaro de Campos – Engenheiro de educação inglesa. Decadentista, futurista, niilista. É o mais agressivo, revoltado, o que fala alto. Ao contrário dos outros da trupe — especialmente Pessoa e Ricardo Reis, que têm postura pudica, quase assexuada —, Campos é o único a falar de sexo, inclusive de homossexualidade. Consultem-se, por exemplo, as caudalosas “Ode Marítima” e “Saudação a Walt Whitman”. Há poemas de Campos com data de novembro de 1935, poucos dias antes da morte de Pessoa que, como poeta, desaparece antes de Campos. Campos é também o mais dado a revelar, asperamente, as crueldades do mundo: “Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos, / Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores” (em “Ode Marcial”).

Ricardo Reis – Médico, latinista e monárquico. Mudou-se para o Brasil em protesto à instauração da república em Portugal. O ano de sua morte é desconhecido. Com base nisso, José Saramago criou o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. Para Saramago, Ricardo Reis sobrevive a seu criador. Um dos personagens do romance é Lídia, referência reiterada nas odes de Reis.

Alberto Caeiro – Segundo Pessoa, Caeiro é o mestre de todos os heterônimos. Mestre inclusive do próprio Pessoa. Teria passado quase toda a vida como camponês, com instrução apenas primária.

Bernardo Soares – Ajudante de guarda-livros em Lisboa. Soares, prosador, é autor do Livro do Desassossego, fragmentos e anotações pessoais.

Coelho Pacheco – Na Obra Poética de Pessoa, há uma ode, "Para Além Doutro Oceano", assinada por Coelho Pacheco.

No Posfácio aos “Poemas Completos de Alberto Caeiro”, Álvaro de Campos escreve: “O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o Antônio Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa é um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro”.

Observem: aí é citado outro personagem, Antônio Mora, descrito por Pessoa como um louco que vivia num manicômio de Cascais. Haveria ainda o Barão de Teive e muitos outros, semi-heterônimos ou meros coadjuvantes. Somados, eles são bem mais de uma dezena — essa multidão que habitava a singular pessoa do Pessoa.

Fernando Pessoa

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


[O QUE ME DÓI NÃO É]

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.


5/9/1933

l Alberto Caeiro


O GUARDADOR DE REBANHOS

I

Eu nunca guardei rebanhos,
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

(...)

8/3/1914

l Ricardo Reis

[VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDIA]

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

12/06/1914


l Álvaro de Campos

LISBON REVISITED (1923)


Não: não quero nada.

Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço.
Quero ser sozinho. Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


[O BINÔMIO DE NEWTON]

O binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó--- óóóóóó óóó--- óóóóóóó óóóó óóóó

(O vento lá fora.)


Os outros Pessoas

Alberto Caeiro, Ricardo Reis

e Álvaro de Campos


O LUAR ATRAVÉS DOS ALTOS RAMOS

O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.

(Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, 1911-12)


POUCO ME IMPORTA

Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me
[ importa.

24/10/1917
(Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos, 1913-15)


NADA FICA DE NADA

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

14/02/1933
(Odes de Ricardo Reis)


CRUZ NA PORTA DA TABACARIA


Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-'star que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.

(Poesias de Álvaro de Campos)

Poemas extraídos de:
• "O Luar Através dos Altos Ramos"
Alberto Caeiro,
O Guardador de Rebanhos
• "Pouco me Importa"
Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos
• "Nada Fica de Nada"
Ricardo Reis, Odes de Ricardo Reis
• "Cruz na Porta da Tabacaria"
Álvaro de Campos,
Poesias de Álvaro de Campos
In Fernando Pessoa, Obra Poética
7a. ed., Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997
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