julho 15, 2009

Ex-internos da ''casa dos horrores'' relatam a vida depois do hospício

José "Jacaré" Gonçalo e Nivaldo de Lima - Encontro da RENILA
Foto: Rogelio Casado - Recife-PE, julho/2009
Nota do blog: O músico e cantor José "Jacaré" Gonçalo (paletó) e o fotógrafo Nivaldo de Lima (camisa verde) são pernambucanos. Têm uma história em comum. Jacaré foi dar com os costados em Santos, onde conheceu os horrores da Casa de Saúde Anchieta. Nivaldo conheceu os horrores do manicômio na sua cidade natal - Recife. Ambos deram a volta por cima. Jacaré continua morando na baixada santista. Nivaldo mora em Manaus, onde preside a Associação Chico Inácio (filiada à RENILA - Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial). Graças ao movimento de luta por uma sociedade sem manicômios ambos puderam dar continuidade às suas carreiras.

Ex-internos da ''casa dos horrores'' relatam a vida depois do hospício

Interdição no Anchieta, em 1989, iniciou reforma psiquiátrica, mas SP ainda tem 6.349 vivendo em hospitais

Adriana Carranca

Duas décadas após a intervenção na Casa de Saúde Anchieta, em 1989, marco inicial da reforma psiquiátrica no Brasil, há ainda 6.349 pacientes "de longa permanência" internados em São Paulo - 77,6% deles há mais de dez anos. Somente duas das 58 instituições no Estado não têm residentes. Em alguns casos, eles vivem isolados e sob o olhar de vigias. Segundo dados do último censo da Secretaria de Estado da Saúde, há registros de exploração de mão de obra gratuita, velada como atividade psicossocial. Do total, 70% são analfabetos.

Ex-internos do Anchieta, Hercílio, João e José conhecem bem essa realidade. Localizados pelo Estado, eles lembram a experiência no manicômio conhecido como "casa dos horrores", há 20 anos, e contam como vivem desde então.

MENTE PARADA

"Treze anos, foi? Treze?", repete, como em tudo, Hercílio Santos Trindade, de 48 anos, 13 deles marcados por alta medicação e uma sequência de choques que o fizeram perder a noção do tempo vivido na Casa de Saúde Anchieta. Hercílio põe as mãos na cabeça e faz com a boca um chiado estridente, tentando mostrar como eram as sessões. "Eu tinha pra mim que não dói, não dói, não... Era bom, bom pra acalmar." E solta uma frase com estranha lucidez: "A mente parada pensa em tudo.

"O motivo da internação, aos 19 anos: uso abusivo de maconha. O pai, rígido, dava surras que o faziam desmaiar. Quando a mãe o flagrou com droga e ameaçou contar ao pai, ele a agrediu e acabou internado. Em seu prontuário, constam anotações como "paciente há três anos sem visita" e "com alta, mas família não o aceitou".

"Foi complicado o processo de volta, mas depois vi esse pai chorar abraçado ao filho, dizendo que não o deixaria mais", lembra o arte-educador Renato Di Renzo, que deu início à intervenção no Anchieta. "No hospício, Hercílio era um homem embrutecido." Bem diferente de Tim Maia, como é chamado hoje por amigos da usina de reciclagem onde trabalha, dado seu tamanho e vozeirão.

Após a morte do pai, Hercílio construiu, com verba do Programa De Volta para Casa, quarto e banheiro no quintal da irmã e passou a se cuidar sozinho. "Seis e meia estou de pé, tomo um cafezinho, fumo um cigarrinho, pego o 108 (ônibus) até o terminal, depois o 105 e, pra voltar, o 55", diz, com surpreendente clareza. "Amanhã é dia de remédio", quando vai a um dos Núcleos de Apoio Psicossocial (Naps), que substituem o atendimento no hospício, para uma injeção mensal. "Primeiro a mente, primeiramente...", filosofa.

Com trajetória semelhante, João da Paixão, de 46 anos, há 2 vive com Janete de Jesus, que tem transtornos dissociativos. Um ajuda o outro no apartamento de um cômodo que alugam com parte dos R$ 600 ganhos, cada um, na usina de reciclagem. A cooperativa tem apoio da Seção de Reabilitação Psicossocial (Serp) da Prefeitura de Santos e mantém 180 pacientes em projetos de geração de renda. "O foco não pode ser a loucura, mas o homem, sua saúde geral, sociabilidade, trabalho, vida", diz a chefe do Serp, Maria Maura Porto Ferreira.

João levanta às 4h, faz café e esquenta o pão. Quando Janete sai do banho, está tudo quentinho na mesa, junto às flores. Como a saúde dele é melhor do que a dela, ele controla os remédios de ambos. Há um mês, Janete teve um surto. "Com a minha experiência, eu já sei quando vai acontecer e como cuidar dela", diz João. Após oito dias, Janete recuperava o equilíbrio, diferentemente de internações anteriores, a primeira de seis meses, a segunda, de dois. "No Anchieta? Lá a gente vivia mesmo era amarrado", diz João.

José Gonçalo, cantor e compositor que atende pelo nome artístico de Jacaré Gularstone, nos recebe com seu primeiro CD, Paz e Amor. Mas, antes de qualquer pergunta, desabafa: "Rico tem stress, pobre é louco esfarrapado. Entende?" E desenrola num fraseado lento a dureza de sua vida, desde as primeiras batucadas na carteira da escola, no Recife. Aos 25 anos, Jacaré foi diagnosticado com "transtorno delirante persistente" e internado.

"A gente até passava pelo médico, mas antes já tomava um sossega-leão (choque) para não dar trabalho. Eu achava que ia morrer lá dentro." Mas, quando se viu na rua, dois anos depois, ficou "desorientado" e quis voltar. A reintegração teve a ajuda de uma vizinha "quase mãe". Mesmo assim, vieram a depressão e um novo surto. "Foi aí que o doutor Sérgio Prior (psiquiatra do Naps) disse: Jacaré, a música!? E eu lembrei que podia ser artista."

Fez sucesso na Rádio Tam Tam, criada por Di Renzo e tocada por ex-internos, que fizeram mais de 300 shows no Brasil e foram parar no The New York Times. Sem apoio, a rádio está desativada. "Era loucura. Quando a gente chegava, perguntavam: cadê os loucos? Porque a imagem da loucura era de gente suja, babando", diz Di Renzo. Jacaré virou ativista da luta antimanicomial e manteve-se artista. Mostra a carteirinha da Ordem dos Músicos do Brasil e, com ela, batuca trechos de Borracha: "Borracha pra quê?/ a ditadura acabou/ vivemos democracia/ o povo quer liberdade/ dançando alegria".

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Para acessar a reportagem do Estadão basta clicar no link abaixo:
Ex-internos da ´´casa dos horrores´´ relatam a vida depois do hospício - Vida & - Estadão.com.br

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