Tribuna do Planalto, Edição 1179 - 12 a 18 de julho de 2009
Perto das artes, longe do crime
Gilberto G. Pereira
Para mudar uma linguagem calcada nos signos da opressão, do temor e da violência, só outra que seja voltada para a descoberta do sujeito como um importante ator social, descobrindo em si mesmo a dignidade, o respeito e a capacidade de fazer algo bom. Essa é a nova proposta educativa inserida nos centros de recuperação de adolescentes infratores de Goiânia, tendo como base o Teatro do Oprimido, criado pelo dramaturgo Augusto Boal, na década de 70 (veja box).
O trabalho ainda está no começo. Só existe desde setembro do ano passado, no Centro de Atendimento Sócioeducativo (CASE), no setor Vera Cruz, no Centro de Integração do Adolescente (CIA), no setor Marista, e no Núcleo de Custódia do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. As atividades são aplicadas pelo Colégio Vida Nova, que fica dentro do CIA e é responsável pelas medidas sócioeducativas dos adolescentes.
Mas os resultados já estão aparecendo. Desde que o método foi implantado, a maioria dos internos tem apresentado um comportamento diferente, mais colaborativo, menos tenso, considerando, claro, a situação de marginalizados em que esses meninos se encontram. Já foram realizadas duas apresentações abertas, chamadas de Cena Fórum. A primeira delas foi feita no próprio CIA para familiares e autoridades militares.
A outra alcançou uma platéia maior, no teatro da Universidade Católica de Goiás (UCG), no dia 30 de junho. Na ocasião, seis internos atuaram numa cena conhecida por todos eles, regada de truculência policial e uma carga de violência trazida pela própria experiência de vida, em que três deles faziam o papel dos detidos, dois representavam os policiais e um o delegado.
Dentro desta concepção teatral, as histórias dos adolescentes são postas no palco depois de um longo trabalho de preparação, em que eles próprios desenvolvem falas e gestos, com a ajuda do professor. É como se a linguagem violenta à qual estão acostumados se espremesse até que daí fosse sugerida uma alternativa mais humana. Isso porque os participantes mostram o não raro horror da conduta policial, mas também enxergam a sua própria violência. O resultado está na reflexão posterior, em que descobrem neles mesmos o valor do diálogo e do respeito mútuo.
De acordo com a pedagoga Luciene Pinheiro, diretora do Colégio Vida Nova, o método do Teatro do Oprimido é um espelho para o qual o aluno se volta e vê seu potencial positivo. "Logo de cara me encantei com a metodologia dialógica, em que todos têm voz, permitindo o aluno trazer sua vivência real para ser reproduzida e analisada em cena". Outro entusiasmado com o projeto é o professor Robson Parente, o responsável direto pela implantação do método nas três instituições. É ele quem dá as aulas para os internos, forma os grupos e dialoga com os garotos toda a criação das cenas que serão trabalhadas.
Persistência
Ninguém é ingênuo a ponto de achar que as medidas sócioeducativas farão dos internos um time de anjos. Mas também não dá para descartar a possibilidade de mudar a perspectiva de muitos deles. É assim que pensa Parente. Ele foi contratado pelo Colégio Vida Nova, no começo de 2008, depois de muita gente ter recusado o cargo ao saber que era para trabalhar com adolescentes infratores.
Parente, no entanto, aceitou o desafio seguindo a filosofia do fazer primeiro para avaliar depois. "Sou profissional do teatro há 25 anos, e quando fui chamado pela Luciene eu disse a ela que ia tentar. Nos primeiros seis meses, tentei várias vezes os métodos tradicionais da linguagem teatral. Mas nada dava certo. Os alunos não se interessavam e diziam que teatro era coisa de mocinha", lembra.
Os resultados de suas aulas não estavam atingindo aquilo que ele mesmo propunha como produtivo. Foi quando descobriu que o Centro do Teatro Oprimido, com sede no Rio de Janeiro, daria um curso de formação de professores na cidade de Anápolis. Parente propôs a Luciene a adoção do método. Ela aceitou na hora. Os dois foram fazer o curso, que começou no fim de agosto de 2008, e já em seguida criaram os grupos nas unidades sócioeducativas, com apoio dos respectivos diretores.
A apresentação realizada na UCG, nove meses depois, revelou não apenas o sucesso do parto saudável de uma ideia boa, mas também a vontade da própria universidade em levar adiante o projeto das apresentações. "Eles demonstraram interesse em estabelecer parceria conosco, para fazermos uma apresentação lá a cada seis meses", diz Parente.
Até agora, ele já montou quatro grupos com mais ou menos seis integrantes cada. Desses, um se desfez, em função do término das penas educativas dos participantes. "Pelo que sei, nenhum deles se meteu em confusão e segue normalmente suas vidas", comenta Parente. Os outros três grupos continuam as atividades. Para dar certo, o trabalho teatral com os alunos leva seis meses para cada grupo, da concepção inicial até a Cena Fórum. "Primeiro, eles fazem jogos corporais, sem fala, em seguida trabalham a escrita. Meses depois, desenham as cenas, e por último vem a criação das falas, sempre com liberdade para improvisar em cima", explica Parente.
No CIA, há 40 internos e no CASE, 29. A grande expectativa do professor é que cada vez mais os garotos procurem se integrar ao grupo teatral (porque ninguém participa por obrigação). "Espero que quando saírem daqui consigam ser cidadãos preparados para o grande teatro da vida, sem cabeça curvada, sem violência, com dignidade e respeito." Mas todo esse trabalho pode ir por água abaixo. Como Parente não é funcionário concursado do estado, seu contrato especial está se encerrando agora em agosto, e o teatro nos centros socioeducativos corre o risco de ter de fechar as cortinas por falta de um profissional da área.
Articulador de ideais
O Teatro do Oprimido chegou às unidades sócioeducativas do CIA e do CASE como mais um instrumento de inclusão dos menores infratores. O objetivo é dar a esses jovens excluídos uma oportunidade de enxergar qual é o ponto crucial para a vivência em sociedade. Em Goiás, uma das pessoas que mais lutam pelo processo de inclusão social é o médico psiquiatra e cineasta Lourival Belém, que há décadas está engajado nas questões sócio-políticas e ambientais do Estado. Segundo ele, a sociedade vai mal, o Estado vai mal, e o indivíduo, muito estimulado a ser autônomo do restante do corpo social, também perdeu suas referências e por isso não anda muito bem.
A solução, diz Belém, é o resgate da cidadania de todos. "As pessoas precisam aprender a se preocupar mais com os outros e deixar de excluir por qualquer motivo. Um doente mental não pode ser descartado como lixo, um garoto em medida de internação precisa ser olhado com a perspectiva de que ainda pode ser recuperado", diz. Quando ficou sabendo que a técnica do Teatro do Oprimido seria aplicada nas aulas dos internos, Belém foi o primeiro a aplaudir a iniciativa. E por causa disso, fez muitos elogios à diretora do Colégio Vida Nova, Luciene Pinheiro, e ao professor Robson Parente. Nesse projeto, ele faz o papel de articulador de ideias.
Acostumado às linguagens de representação artística, como o teatro e o cinema, Belém sabe que o apelo teatral é um excelente aliado quando se quer mostrar as verdades que muita gente não quer ver. "É a grande chance de todo mundo se ver, porque será levada para o palco a vida dos internos, incluindo a experiência com os pais, policiais e com toda a sociedade", diz. Uma das ideias que ele trouxe para agregar ao projeto é a realização de um documentário sobre o processo de exclusão social em Goiânia, colocando Teatro do Oprimido no centro da questão. O filme será produzido por ele e dirigido por dois jovens cineastas, Cristiane Leão de Castro, 26, e Luiz Alfredo Baptista, 25.
Na tela do cinema
O documentário sobre exclusão e marginalidade na Capital goiana está sendo rodado nas carceragens, com uma possível abordagem dos problemas nas ruas também. De acordo com Luiz Alfredo Baptista, diretor do filme junto com Cristiane Leão de Castro, já existem 50 horas filmadas, mas o objetivo é ter o dobro desse tempo. Uma das razões que levaram os dois jovens ao projeto foi a vontade de intervir na vida social da cidade. Para eles, a intervenção artística, seja por meio do cinema, da música, da literatura ou do teatro, tem um potencial enorme de transformação. "Goiânia está se tornando uma pequena São Paulo pelo que existe de negativo, com a explosão demográfica e o surgimento de vários focos de pobreza extrema", diz Baptista.
Mas por enquanto, ainda dá para mudar, esta é aposta do jovem cineasta, que vê no Teatro do Oprimido um instrumento de grande força modificadora da realidade. Cristiane também pensa como ele. Foi essa crença na recuperação do ser humano que levou os dois a filmar o trabalho de Luciene Pinheiro e Robson Parente, no Núcleo de Custódia, no CIA e no CASE, para mostrar, quadro por quadro, a força da representação teatral.
Junto com os dois jovens, Belém criou um grupo chamado Cenáculo Campo Limpo, que vai realizar vários outros projetos no complexo prisional de Aparecida de Goiânia. Entre eles está o Imagens Aprisionadas, uma oficina de fotografia no presídio feminino para melhorar a auto-estima das mulheres, já com data para ser realizado. Serão cinco sessões de fotos, toda terça-feira, a partir do dia 14 de julho, em que as próprias encarceradas vão escolher a caracterização de suas fotografias.
Boal, o coringa do teatro
Augusto Boal (1931 - 2009) é o grande ícone do teatro brasileiro. O que ele fez pelas artes cênicas no Brasil servirão como diretriz para atores e diretores ainda por muito tempo. Um dos fundadores do teatro de Arena, com montagens antológicas, como Arena Conta Zumbi, em 1965, e Arena Conta Tiradentes, em 1967, Boal trouxe para os palcos uma nova linguagem ao criar o Teatro do Oprimido. Essa metodologia de expressão cênica procura resgatar a dignidade de pessoas ou grupos que se encontram em situação de opressão. Com o teatro e a militância político-social, Boal ganhou projeção internacional. Em 2009, ano em que morreu, fora nomeado embaixador mundial do teatro pela UNESCO, além de ter sido indicado ao Prêmio Nobel da Paz. O principal propagador de sua obra é o Centro do Teatro do Oprimido. Para mais informações do CTO, acesse www.ctorio.org.br.
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