novembro 05, 2009

“POR QUE CIVILIZADO MATOU KIÑA? APIYEMYEKÎ? POR QUE?”

Waimiri-atroari
Foto postada em emporioamazonia.com.br
“POR QUE CIVILIZADO MATOU KIÑA? APIYEMYEKÎ? POR QUE?”

No dia 4 de setembro de 1985 chegamos à aldeia Yawará/sul de Roraima, dos índios Waimiri-Atroari ou Kiña, como se autodenominam. Como a casa destinada a nós professores estava ocupada por funcionário da FUNAI, fomos encaminhados para uma casa velha desativada. A primeira casa daquele posto. Construída por volta de 1975, quando a picada da estrada BR-174 se aproximava daquela região. Era depósito de material velho. 18 furos nas paredes externas, através dos quais se podiam apontar armas de diversos calibres em todas as direções testemunhavam a ocupação bélica do território índio. E a casa ao lado, almoxarifado da FUNAI, tinha as mesmas características. Ambas serviram como trincheiras.

Neste ambiente desencadeamos o processo de alfabetização em Kiñayara, língua do povo Kiña ou Waimiri-Atroari. Como não falávamos a língua, eles iniciaram a sua comunicação conosco através do desenho que dominavam muito bem. Para evitarmos interferências, nossa ou da FUNAI, as tarefas de aula eram feitas na aldeia, a 500 metros da escola. Desenhos, letras e frases elaboradas diariamente em casa/aldeia eram utilizados, em aula, no dia seguinte, como “cartilha”.

No processo assim desencadeado surgiram dos desenhos as letras, destas palavras, das palavras as frases e, finalmente, os textos: lendas, estórias e a História do povo. O desenho permaneceu presente dando garantia da apreensão dos conhecimentos partilhados e da veracidade do que foram revelando do seu mundo: a fartura da comunidade, refletindo a fartura da natureza, com suas plantas, animais, peixes, a sua vivência cultural, com enfeites, danças e cantos. As lendas, a história passada e presente dos membros da aldeia, dos pais e parentes mortos e do povo Kiña. A produção dos textos provocava longas discussões sobre a forma e o conteúdo das mensagens. Foram como buracos de fechaduras que acessaram às lendas, às tragédias vividas no cotidiano. Falam de acidentes geográficos, da natureza e das pessoas. Falam dos seus mortos, de experiências vividas no interior da floresta. De malocas ou aldeias varridas do mapa pela violência dos kamña (civilizados).

A região em foco era terra habitada. Por toda a parte morava gente. Gente que tinha o seu projeto de vida bem organizado, dentro de uma geografia onde eles eram os sábios. Tinham uma economia que satisfazia as necessidades e o bem-estar da população. Conheciam palmo a palmo a floresta, o seu território. Cada rio e igarapé, cada acidente geográfico, cada planta, ave, inseto, cada bicho tem seu nome em kiñayara. Alternavam as suas aldeias para a caça e a coleta, estabelecendo-as nas nascentes dos igarapés no período das chuvas e no período da seca na margem dos rios para a coleta de ovos de tracajás, de tartarugas e da pesca. Os rios Negro (AWA), Uatumã, Abonari e Urubu são citados nessa migração periódica, como território de ocupação permanente.

Varadouros ou caminhos interligavam todo o seu território. Subiam ao longo dos igarapés e nas cabeceiras ligavam com outros igarapés e rios. E o domínio das mais distantes aldeias Kiña unia ao de outros povos Karibenhos através de varadouros de mais de 1.000 quilômetros, penetrando Roraima, Pará, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. A organização das aldeias não permitia o isolamento das pessoas. Meios de comunicação acessíveis a toda a população, como a canoa, o varadouro e o trocano resolviam os problemas do intercambio de mensagens e visitas para a organização de festas e de mutirões. Alimentação e abrigo ao longo dos caminhos eram providos pelas “florestas de alimentos”, relíquias de antigas aldeias.

Sem um contato, sem um aviso prévio, do dia para a noite, apareceram as máquinas dos kamña e iniciaram a destruição do precioso patrimônio Kiña. Gente cortando sem respeito os caminhos. Gente derrubando a floresta e abrindo crateras, inundando grandes extensões da floresta, fazendo sumir igarapés e rios e se apossando do território que desde tempos imemoriais consideravam seu. “Os velhos achavam que kamña colocaria toda a nossa floresta de raízes para cima”, diziam-nos. Em junho de 1985, sentados na calçada em frente ao prédio da FUNAI, em Brasília, em companhia de dois Kiña, um deles nos perguntou à queima-roupa: “O que é que civilizado joga de avião e queima corpo da gente por dentro?”. E procurava explicar-nos um fato acontecido numa aldeia Kiña.

Em aula, tão logo tiveram confiança em nós, as perguntas se sucediam: “Por que kamña matou Kiña?” “O que é que kamña jogou do avião e matou Kiña?” Kamña jogou kawuni (de cima, de avião), igual a pó que queimou a garganta e Kiña morreu”. Com muito cuidado, procurávamos furtar-nos à curiosidade sobre essas questões, conhecedores que éramos da delicadeza do assunto, já que a FUNAI e as Forças Armadas foram os únicos responsáveis pelo destino do povo Kiña no período a que os índios se referiam.

Uma índia escreveu ao lado de seu desenho: “A minha mãe não me ensinou a fazer rede”. A mensagem, em estilo telegráfico, foi descodificada na discussão subseqüente em aula: a mãe morrera de sarampo muito cedo, depois do pai ter sido morto na luta de resistência. Outro texto dizia: “Apapeme yinpa Wanakta yimata” (“Meu pai me abandonou no caminho da aldeia de Wanakta”). A frase nos levou à seguinte história: a aldeia de Yanumá, pai de Damxiri, autor da frase, se localizava no Baixo Alalaú. Um dia foi atacada por kamña=civilizado. Yanumá procurou reter o ataque, enquanto mulheres e crianças fugiam pelo caminho que conduzia à aldeia de Wanakta, localizada no Alto Camanaú. Mortalmente ferido, Yanumá ainda conseguiu alcançar a mulher com os filhos. Sentindo-se desfalecer, recomendou à mulher que se refugiasse na aldeia de Wanakta, um líder descrito por eles como: “Wanakta karanî, xuiyá, todapra” (“Wanakta, um homem bom, bonito e gordo”). Sua aldeia se situava numa região fora do roteiro da estrada e dos rios navegáveis. Possivelmente não foi vista pelos militares, tendo sido uma das poucas não atingidas pela violência dos kamña.

As 31 (trinta e uma) pessoas que compunham a comunidade Yawara, onde desenvolvemos o nosso trabalho de alfabetização eram sobreviventes de quatro aldeias da margem direita do rio Alalaú, desaparecidas na década de 70. A pessoa mais velha não passava de 40 anos. Todas as demais, acima de dez, menos duas irmãs cuja mãe ainda vivia, eram órfãs. Seus pais morreram na resistência contra a rodovia BR-174. E as crianças de quatro a dez anos eram órfãs de pai e mãe. Seus pais morreram de sarampo em 1981, abandonados pela FUNAI à beira da BR-174, no Km 292.

Na medida em que a confiança da comunidade crescia já não éramos apenas professores, mas pessoas envolvidas com o seu desejo de viver. Questionaram a razão pela qual kamña matou os seus pais, parentes e amigos. Desenhavam cenas de violência. Avião ou helicóptero sobrevoando a aldeia, soldados atirando escondidos atrás de árvores e na única frase ao lado se destacava a palavra “apiyemiyekî”=por quê? Muitas vezes relacionaram os mortos. Panaxi, um jovem pai, descreveu o seguinte episódio que vivenciou no início dos anos 70 com seus pais, irmãos, parentes e amigos numa aldeia do Baixo Alalaú: “Antigamente não tinha doença. Kiña estava com saúde. Olha civilizado aí! Olha civilizado ali! Lá! Acolá! Civilizado escondido atrás do toco-de-pau! Civilizado matou Maxi. Civilizado matou Sere. Civilizado matou Podanî. Civilizado matou Manî. Civilizado matou Akamamî. Civilizado matou Priwixi. Civilizado matou Txire. Civilizado matou Tarpiya. Com bomba. Escondido atrás do toco-de-pau!”( )

Yaba escreveu: “Kamña mudîtaka notpa, apapa damemohpa” – civilizado desceu na minha casa, aí meu pai morreu”. “Ayakînî damemohpa. Apiyemiyekî?” - “Minha irmã morreu. Por quê?”. Abaixo, a relação dos mortos na “Mahña mudî (aldeia do rio Mahña, Alto Alalaú): Mawé, Xiwya, mãe de Rosa, Mayede, marido de Wada, Eriwixi, Waiba, Samyamî, mãe de Xere e Pikibda, Pitxenme (pequena), filha de Wada. Maderê, mulher de Elsa. Wairá, mulher de Amiko que mora no Jara, Pautxi, marido de Woxkî que mora no Jará. Arpaxi, marido de Sidé que mora no Alalaú, Wepînî, filho de Elsa. Kixii e seu marido Maiká, Paruwá, pai de Ida. Waheri, irmã de Wome e mais outra irmã de Wome. Suá, pai de Warkaxi e suas duas esposas e um filho. Kwida. Wara’ye – pai de Comprido. Tarahña, pai de Paulinho. Ida, mãe de Mayedê”. Morreu ainda uma mulher velha cujo nome não relacionaram. A filha de Sabe que mora no Mrebsna Mudî, dois tios de Mário Paruwé, o pai de Womé e uma filha de Antônio.

Kramna Mudî era uma aldeia Kiña que se localizava na margem Oeste da BR-174, no Baixo rio Alalaú, próximo ao local conhecido como Travessia e sobre a Umá, um “varadouro interétnico” que atravessava o território Waimiri-Atroari de Sul a Norte, para interligar com os Wai Wai e outros povos Karib. No final de setembro de 1974, Kramna Mudî acolhia o povo Kiña para uma festa. Visitantes do Camanaú e do Baixo Alalaú já estavam lá. O pessoal das aldeias do Norte ainda estava a caminho. Mas a festa já começava com muita gente reunida. Pelo meio dia um ronco de avião se aproxima. O pessoal sai das malocas para ver. A criançada se concentra no pátio. O avião derrama um pó. Todos, menos um foram atingidos e morreram. O tuxaua Comprido, com a sua gente, vinha do Norte. Ainda estava a caminho. Chegando perto estranharam o silêncio. Aldeia em festa sempre está cheia de algazarra. Ao se aproximarem encontraram todos mortos, menos um. Morreram sem um sinal de violência no corpo. Dentro da maloca, nos jirais, grande quantidade de carne moqueada, mostrando que tudo estava preparado para receber muita gente. O sobrevivente só se recorda do barulho de um avião passando por cima da aldeia e do pó caindo. Os Kiña forneceram uma relação de 33 parentes mortos neste massacre.

Contaram-nos que Comprido, ao ver os parentes pelo chão, revoltou-se muito. Antes de voltarem para as suas malocas, provavelmente no dia 30 de setembro de 1974 à tarde, um grupo de Kiña atacou três funcionários da FUNAI, João Dionísio do Norte, Paulo Ramos e Luiz Pereira Braga, que subiam o Rio Alalaú para abastecerem o Posto Alalaú II. Mataram os três e jogaram os seus corpos na altura da Travessia, local onde a Uma (varadouro) atravessava o rio, há uns seis quilômetros da aldeia chacinada. No dia seguinte, o tuxaua Comprido atacou o Posto Alalaú II, próximo à ponte do Rio Alalaú, então, o ponto mais avançado da BR-174.

Pikibda, contou-nos que seu pai, Takwa, era chefe de uma aldeia localizada perto do Médio Rio Alalaú, não longe do traçado da BR-174. “Naquele tempo o Barbudo Mário era chefe do Posto Terraplenagem” - elatou. Takwa, acompanhado da sua comunidade, queria “fazer uma visita e trocar presentes com soldados”. Foi recebido com uma rajada de metralhadora, como ordena o acordo FUNAI-Comando Militar da Amazônia, celebrado no quartel do Abonari no dia 21 de novembro de 1974. Uma bala lhe atravessou o queixo, saindo pela boca e quebrando os dentes. Mas Takwa não morreu. Fugiu dali e foi com o seu povo construir nova aldeia em Askoya, uns seis quilômetros ao Norte do roteiro da estrada nas cabeceiras do Igarapé Kixiwi, para os militares Capitão Cardoso. Comprido reuniu todos os Kiñá da região do Alalaú e quis atacar a FUNAI, que na época estava instalando o Posto Terraplanagem, perto de Yawara mudî. Mas o próprio Takwa desaconselhou.

Mal Takwa havia se instalado com sua gente na Askoya Mudî a maloca foi visitada por um helicóptero, que deixou “presentes”. Em consequência o povo começou a morrer. Morreram quase todos. Entre os mortos “Takwa, Kyana, tio de Pikibda. Maxi e sua mulher Amyamî. Tikna irmão de Womé. Samá , mulher de Mayde.”

“No Camanaú desceram de helicóptero e mataram muita gente com espingarda. Agora tem pouca gente”.

Outros desenhos e escritos acompanham um líder muito querido e valente na sua longa trajetória de resistência. Maiká era líder, pagé e cantador que nasceu “lá por Presidente Figueiredo”, região do Rio Urubuí. Maiká gostava muito de participar das festas. Sua aldeia foi uma das primeiras a ser atropelada pela BR-174. A comunidade viu a sua floresta sendo comida por barulhentas máquinas conduzidas por kamña. E Maiká resolveu resistir. Algumas vezes, de noite, amarravam as máquinas com cipó. Não conseguindo dete-las e não sabendo o rumo e nem o objetivo daquela gente agressiva, a comunidade de Maiká foi reconstruindo a sua aldeia, sempre de novo sobre o futuro leito da estrada. Do vale do rio Urubu foi rumo Norte. Construiu nova mudî (aldeia ou casa) no Axya (igarapé Santo Antônio do Abonari), onde se encontrava em outubro de 1968. “Maiká não gostava de civilizado” (Maiká kamña yamankapî) nos deixaram escrito os Kiña. “Bahpa!” (Ele brigou!). “Quando os kamña chegaram no Axia matou eles, deixando escapar apenas um, que os kiña acompanharam um tempo enquanto descia o rio sentado numa canoa, ao lado do seu cachorro” – contaram. Referência provável à expedição do padre Calleri, da qual se salvou apenas Álvaro Paulo da Silva. No resgate dos corpos da missão Calleri, os militares afugentaram novamente Maiká. Ele recuou então com a sua gente mais uma vez no rumo Norte, sempre no traçado da estrada, indo erguer a sua maloca no Igarapé Monawa, um afluente do Alalaú. Novamente no roteiro da estrada. Maiká morreu por volta de 1972 depois que um helicóptero dos kamña sobrevoou a sua aldeia e “Maiká pegou doença”. A sua resistência fez parar a estrada por alguns anos.“Quando morreu, kamña veio invadindo a região”.

As aldeias da margem esquerda a Sudeste da Cachoeira Criminosa/Rio Alalaú , fotografadas por Calleri em 1968 simplesmente desapareceram. Tikiriya um líder que morava naquela região era personagem conhecido de todos os Kiña. Desenharam a sua casa e escreveram embaixo: “Tikiriya yitóhpa, Taboka ykame”. (“Tikiriya foi embora. Taboca chegou”). E esta outra: “Taboka Tikiriya paktana” (“Taboca foi no lugar onde Tikiriya morava”). E um terceiro perguntava: “por que civilizado mandou a nossa gente embora?”. Outro desenhou a maloca deTikiriya como a encontrou mais tarde: telhado todo furado, paredes caindo... Outros pintaram uma praga de onças que apareceu e teria comido a todos. Alguns imaginavam que o povo dele brigou muito e acabou se separando. Imaginaram ainda que Tikiriya e sua gente pegaram uma doença muito feia e por isso se teriam internado na floresta onde estariam andando até hoje. Nunca mais tiveram notícias desses parentes. Já organizaram expedições pelo alto dos rios Pitinga e Ootape, hoje Madeira, à procura do povo perdido, mas nada encontraram. Durante a instalação da Mineração Taboca, entre 1979 e 1985, os jornais de Manaus noticiaram a presença de índios naquela área, mas as informações foram abafadas pela mineradora. As últimas noticias são de agosto de 1985, quando índios desconhecidos teriam aparecido no canteiro de obras da hidrelétrica que a empresa construía no rio Pitinga. E poucos dias depois, um motorista que transportava material para a obra, encontrou seis homens e duas mulheres na estrada. É muito provável que tenham sido mortos pela Sacopã, uma empresa de jagunços, muito bem equipada, que nesta época protegia a Paranapanema e era comandada por dois ex-oficiais e um da ativa, subordinado ao Comando Militar da Amazônia. ( )

No médio Alalaú, margem direita desapareceram quatro aldeias e outra no Mahña, hoje igarapé Pinheiro, afluente da margem direita do Alalaú. A gente dessa aldeia era intimamente ligada aos nossos alunos. Alguns deles nasceram ali.

Yawara, a aldeia onde moramos, ficava longe das aldeias do Abonari. Mas as notícias dos massacres corriam por todo o povo Kiñá. Os nossos contatos com as duas aldeias que sobreviveram no Abonari, Takware e Topupuná, foram superficiais. Era preciso ouvir a versão do próprio povo a respeito dos acontecimentos que ali ocorreram entre 1968 e 1975. Em Yawara nos disseram que “lá pelo Axya (Ig. Sto Antonio do Abonari) morreu muita gente de bomba... Também lá kamña aproveitou tempo de festa para jogar bomba”. Nos informaram que ali morreram Mepi, mulher de Tuwekra, que tinha ido para festa e Kroakeba, mulherde Tomáz. Tomáz é ainda hoje líder da aldeia Monawa, transferida pela Eletronorte do Takware por motivo da barragem de Balbina. Morreu também a mulher de Pedrosa e o seu filho ainda pequeno. Morreu Kramxi cuja viúva, Aranî, morava ao tempo de nossa presença na área, na aldeia Taquarizinho, no Alalaú. Morreu uma mulher de nome Wîpî e o seu marido Kawawa. “Morreu também gente que veio de fora para a festa. Gente que veio do Camanaú.” Além dos já citados morreram ainda “Wakiri, Irkwa e sua mulher Sere que casou depois com Wakré”. “Foi avião que matou o pessoal”. Naquele massacre do Abonari morreu também Kainã, um Atroari, ou seja, Kiña da margem direita do Alalaú, que foi casado com Kiña do Abonari. Um índio velho do Rio Negro, único funcionário da FUNAI que entendia razoavelmente Kiñiyara, mas que preferiu o anonimato nos disse que “o bombardeio das aldeias no Abonari foi pior do que aqui” - no Norte da Reserva - “Lá o massacre aconteceu no final da festa, quando os índios ainda não se haviam dispersado.”

Um operário da frente de trabalho da estrada contou-nos que o povo Kiña já estava derrotado e dizimado, só restavam poucas famílias quando viu o Tenente Costa e sua tropa empurrarem com seus fuzis um grupo de Kiña, em sua maioria mulheres e crianças para cima de uma caçamba, levando-os em seguida a um local ermo, onde ordenou que adentrassem a floresta sob rajadas de metralhadoras, como determinava o acordo Nº 042 firmado entre Funai e 6º BEC.Em 1972 um Levantamento da FUNAI estimou a população Waimiri-Atroari “em 3.000”. E detalha: “na periferia do posto de atração do Alalaú, à margem direita do Rio Alalaú, moram 300 indígenas. Além das aldeias dos capitães Nenên, Juani, Elsa e Comprido”. Na área do posto de atração do rio Camanaú, próximo à confluência do mesmo com o Rio Negro, a população foi calculada em “350 pessoas (...) distribuída pelas aldeias do capitão Maroaga, capitão Pedro e aldeias arredias”. No Alto Igarapé Santo Antônio do Abonari e afluentes, citou as malocas “dos capitões Canori, Coroinha, Abonari, Tomaz, Manoel e Pedro e outras aldeias arredias”. E na área hoje inundada pelo reservatório da Hidrelétrica de Balbina, em volta do posto de atração da FUNAI, junto à confluência do Santo Antonio com o Rio Uatumã, havia uma população calculada “em 300 índios”.
As 9 aldeias aerofotografadas pelo Pe. Calleri no dia 9 de outubro de 1968 na área hoje invadida pela Mineradora Paranapanema, não foram mencionadas no levantamento da FUNAI. A Askoya Mudi no Alto Igarapé Priwixi (Capitão Tavares), a Mahña Mudî no Baixo Mahña (RioPinheiros) e outras do Médio Alalaú, também não foram citadas e nem as aldeias do rio Branquinho.

A partir do 2º semestre de 1974 as estatísticas da FUNAI estimaram a população Waimiri-Atroari em 600-1.000 pessoas sem fornecer os acontecimentos que provocaram a depopulação. Funcionários do órgão falavam em “fatos estarrecedores”, que teriam ocorrido. “Os Waimiri-Atroari tombaram no silêncio da mata e foram sutilmente enterrados e esquecidos no espaço e no tempo. Hoje em dia vamos em missão de paz, de amizade com os índios, mas na verdade estamos é trabalhando como pontas de lança das grandes empresas e dos grupos econômicos que vão se instalar na área.” – referia o chefe da Frente de Atração Waimiri-Atroari, ao Jornal Opinião, Rio de Janeiro, em 17-01-75. Mas em seus relatórios não consta um só nome de Waimiri-Atroari morto. Entre gracinhas e recordações, ex-funcionários da FUNAI comentavam em abril de 1986, à nossa frente, no Posto Terraplanagem/sul de Roraima, “aqueles tempos” quando o general Demócrito, - diretor da Coama-Coordenação da Amazônia/órgão da FUNAI, - entregou a cada funcionário um rifle, com esta recomendação: “De ora em diante o funcionário que aparecer ferido de flecha, eu acabarei de matá-lo”.

Durante os 30 anos de sua presença a Funai escondeu a identidade do povo Kiña. Eles eram os Waimiri-Atroari, um dos muitos apelidos dados pela população regional. O mesmo tratamento receberam os seus lideres. Nem um só Kiña ficou conhecido pelo seu nome verdadeiro. Língua, autodenominação e pessoas foram tratadas como se não devessem existir. Quando a resistência foi aniquilada pelas missões das Forças Armadas, a catequese da Funai entrou em ação, bombardeando alguns jovens com as tramas da civilização, fazendo a lavagem cerebral. Desse moinho feroz alguns saíram ridicularizando os tuchauas da resistência e pregando amáxima: “Funai é que sabe!”

A partir de 1987 a Funai passou a responsabilidade da política oficial para a Eletronorte, através do Programa Waimiri-Atroari-PWA, escalando para a sua direção um velho funcionário da Funai, que participara do resgate de funcionários mortos pelos Waimiri-Atroari e que conheceu muito bem o esquema que destruiu aquele povo, como revelou tardiamente quando a resistência dos índios já havia sido esmagada. Hoje, como funcionário da Eletronorte coordena o PWA. Com nova estratégia dá continuidade à catequese da Funai. Agora os tuchauas da resistência viraram mito e “PWA, ou Txamru, é que sabe!” Considera-se autor de tudo o que melhorou na área, esquecendo-se da pressão de ONGs nacionais e internacionais, que abriram caminho para as indenizações e os recursos que sustentam hoje o PWA. Para as lideranças Kiña sobra a incômoda tarefa de assumir como suas as ordens antipáticas que emanam dos interesses em jogo, mineradora e Eletronorte: como expulsar professores e pesquisadores, manter distante o movimento indígena nacional e principalmente a repulsa contra o movimento indigenista, única via por onde a sociedade civil um dia poderá chegar aos “fatos estarrecedores”, aos nomes das vitimas dos massacres, ao nome do hoje “anônimo irmão Waimiri-Atroari, cujo cadáver mal enterrado deparamos, muitas vezes, pela frente”! – como se lê na dedicatória do livro O Pagé da Beira da Estrada do Gal. Berthier Brasil, suas memórias da construção da BR-174. E, quem sabe, aliviaria a consciência dos militares sobreviventes do remorso que as corrói, como refere o mesmo Gal. Berthier: “E na hora do ângelus e mesmo depois, em plena cegueira daquelas noites equatoriais, comovido, eu cansei de ouvir gemidos pungentes e soluços anônimos, verdadeiros clamores de misericórdia daquela gente, que me parecia condenada a um triste e melancólico fim”.

Egydio e Doroti Schwade

Casa de Cultura do Urubuí
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