agosto 07, 2012

"Por amor a Freud", por Luciana Nepomuceno

PICICA: "“Advento” é o diário de uma análise. Encontra-se, ali, o sofrimento, a surpresa, a angústia e o esforço presentes no trabalho de desvendar e re-organizar sintomas, afetos, gozos. É um relato fascinado de quem percorre-se. Não é, a princípio, pra ser entendido. Não é um relato que explica. É um convite pra percorrer as associações, os recuos. As denegações, o conteúdo latente, a dinâmica de funcionamento mental inconsciente. E o enlevo e doer que há nesse processo."

Por amor a Freud

Para que haja análise, é preciso que se evoque o amor. Mas o amor é da ordem do real, é o impossível de se dizer. Já que dele não conseguimos dizer, dele não paramos de falar. Ou de marcar no e com o corpo, o discurso amoroso. Foi esse o mapa que Freud seguiu. O que não se podia dizer em palavras, ele insistiu em ouvir. É uma relação de amor, a análise. O que se constrói é um discurso de amor que, aliás, não se faz apenas de belos gestos e palavras boas mas compreende as ações odiosas e a estupidez no dito.
Porque se faz análise? Uma psicanálise não cura, diz Freud. Não explica, apesar do senso comum. Não resolve problemas. Não nos diz quem nós somos. Não nos torna pessoas melhores. Porquê, então? Para quê? Dizia o seu controverso “inventor”, entre uma baforada e um conflito pessoal: “É que ela fornece o fio que conduz o homem para fora do labirinto”. E, deixa, com uma paradinha marota, tudo em aberto: ter o fio não nos garante achar a saída
.


É essa trajetória de amor, impossível de dizer, mas que se faz concreto nos dias de um analisando, que nos apresenta Hilda Doolittle no seu “Por Amor a Freud” (Zahar Editora, 2012). Hilda Doolittle fez dois pequenos períodos de análise com Freud entre 1933 e 1934. O livro se faz em 275 páginas de uma espécie de mosaico com elementos diferentes que dão sentido um ao outro e, ao mesmo tempo, se apresentam como linguagem única e específica: o prefácio escrito por Elisabeth Roudinesco, fotos, uma compilação dos diários mantidos por ela durante a análise, uma narrativa esteticamente elaborada do mesmo período e parte da correspondência mantida entre Hilda e Freud e entre Hilda e Bryher (sua amante).

O prefácio da Roudinesco é instigante e envolvente, apresentando dados históricos e biográficos que subsidiam a leitura do texto de Hilda e discutindo alguns parâmetros da teoria psicanalítica sobre a sexualidade.

Há fotos, que bom que há. São poucas, mas dão rosto e materialidade à Hilda, sujeito do livro, da análise, do discurso de amor. Também há fotos dos que ajudaram a fazer de Hilda quem ela foi: sua mãe, pai, sua filha, do marido, da amante, do amante, dos amigos. Um painel curto, mas relevante que ajuda a situar o que foi vivido e é apresentado no livro.

“Advento” é o diário de uma análise. Encontra-se, ali, o sofrimento, a surpresa, a angústia e o esforço presentes no trabalho de desvendar e re-organizar sintomas, afetos, gozos. É um relato fascinado de quem percorre-se. Não é, a princípio, pra ser entendido. Não é um relato que explica. É um convite pra percorrer as associações, os recuos. As denegações, o conteúdo latente, a dinâmica de funcionamento mental inconsciente. E o enlevo e doer que há nesse processo.

“Escrito na parede”, redigido em Londres em 1944, é uma reconstituição, estilizada, do período de análise. Com foco na memória, apresenta-se como uma prosa poética, com elementos que fazem lembrar o desenrolar não linear das associações livres, o ritmo e estilo do discurso peculiar do processo analítico.


Sigmund Freud fotografado em seu escritório, 1938. Foto: AP Photo/Sigmund Freud Museum.

A correspondência não apresenta muitas situações novas ou revelações surpreendentes, mas tem aquele gostinho de estar espiando a intimidade de outra pessoa, especialmente quando a “outra pessoa” há muito pende mais para mito que pra cotidiano. Essa parte do livro também traz muitas notas explicativas, alguns podem achar que as interrupções fazem o texto tornar-se cansativo, mas eu considero útil e saboroso deparar-me com informações peculiares.

“Por Amor a Freud” não é exatamente um livro de psicanálise e certamente não é um livro sobre a psicanálise. Se alguém for lê-lo para saber como Freud conduzia uma análise, porque as pessoas procuram a análise ou como é o manejo da técnica, vai se sentir frustrado. O livro não se propõe a ser um registro minucioso do trabalho de Freud. A autora não explica a sua demanda de análise, não descreve seus sintomas, não apresenta com detalhes o que Freud dizia ou fazia como condução do processo e nem o que disto resultou.

“Por Amor a Freud” é, parece-me, o registro de uma memória reverente e afetuosa de um tempo de trabalho conjunto. Ele nos proporciona encontrar um Freud distante da figura meio mítica e um pouco fria (ou demasiado sábia, ou enormemente charlatã, usualmente a ele atribuída) de “Pai da Psicanálise” e nos apresenta um profissional interessado e disponível que acolhe as demandas de análise e/ou formação com respeito e cuidado.

Talvez o meu olhar seja demasiado condescendente pela ligação que tenho com o tema e, mais especificamente, com Freud. Mas gostei bastante do fato do livro oferecer, especialmente na forma com ao escrita se apresenta em “Escrito na Parede”, vislumbres da experiência de descoberta do inconsciente. Creio que, pra mim, o mais interessante, não foi “o quê” a autora escreveu, mas o “como”. Na trajetória que se acompanha no livro, estão lá: o prazer e resistência de ligar com os conteúdos inconscientes, a forma não-convencional de relação instituída pela “comunicação” via associação livre, lembranças e jogos de palavras.

Não é o melhor livro que já li sobre um processo analítico, ou sobre a relação com as pessoas de referência na psicanálise, “A Morte de Um Herói Intelectual” da mesma Zahar Editora (1983), é mais complexo teoricamente e igualmente fascinante no que se refere aos aspectos de interação analista-analisando. Mas “Por Amor a Freud” é um livro cativante, bem escrito e terno.

Referência: Por amor a Freud de Hilda Doolittle. Tradução de Pedro Maia. Editora Zahar.

Luciana Nepomuceno

Considero importantíssimo saber rir de mim mesma. Sou crédula. E cínica. Pode? Em algum momento decidi que ser eu mesma era muito mais gostoso que ser um eu que eu poderia querer ser. Em relação ao amor, por exemplo, sou ridícula. Capaz de desenhar corações entrelaçados em guardanapos e guardar como se fossem tesouros inestimáveis. E capaz de seguir adiante sem lamentar se simplesmente assim o decidir. Eu já não tenho pejo de listar meus encantos como não me aborrece o elenco de defeitos. As duas sequências são enormes. Gosto do repetir dos dias. Sou grata pelas pequenas coisas. E pelas grandes, claro, como respirar. E café. E coca-cola. E beijo na boca. E o Flamengo.


Fonte: Blogueiras Feministas

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