novembro 04, 2012

"É tempo de melancias" (Sensho )

PICICA: "Ter um lugar de repouso definitivo era tão importante quanto um teto naquela cidade onde se media a proeminência do outro até quando não mais passava de pó e memória."

É tempo de melancias


Houve uma época em que as melancias eram pontuais. As primeiras chegavam em agosto, tímidas. E, nem por isso, deixavam de ser aguardadas com ansiedade. As derradeiras, em novembro. Sabiam que aquele poderia ser o último frete de melancias, o caminhão se estacionava na rua lateral ao Cemitério São Pedro no Dia de Finados. Solenes, pai e filho se enfiavam em roupas adequadas a visitar seus mortos: nem tão quentes, porque fazia calor; nem tão desprotegidas, porque podia chover. Nunca calças curtas, nunca chinelos. O pai, já tomado pelas rugas do sofrimento e do tempo, e o filho, ainda imberbe, desciam a rua principal do cemitério lotado de vivos e mortos – naquele dia, mais vivos que mortos, diga-se – atravessavam duas quadras, passavam pelo cruzeiro, onde eram acesas as velas para todas as almas, e, no quarteirão seguinte, contavam seis túmulos até o da mãe, ao lado direito de quem desce (esquerdo para quem para saia em direção à rua). O jazigo era simples, tal qual imaginavam ser a vontade dela – apenas uma pedra de granito lisa, no canto esquerdo a placa sucinta (nome completo, data de nascimento, data de morte), sem foto, sem mensagens de saudade ou homenagem, sem símbolos religiosos –, espartano como convinha à senhora discreta e de olhos tímidos, sepultada poucos anos antes em um vestido azul safira, no inverno. 

O túmulo sem extravagâncias desaparecia na vizinhança – e era curioso notar que a geografia do cemitério quase reproduzia com fidelidade a da cidade, já que aqueles que teriam compartilhado da mesma rua quando vivos também estariam próximos quando mortos. A situação não deixava de ser prosaica, porque, ainda vivos, falavam, aos risos nervosos, sobre isso nas conversas de calçada, e a proximidade post mortem parecia servir de alento ao desconhecido. Ter um lugar de repouso definitivo era tão importante quanto um teto naquela cidade onde se media a proeminência do outro até quando não mais passava de pó e memória. A ausência de arroubos tornava quase imperceptível o jazigo frente aos outros, que podiam ser divididos em seis grandes categorias: a) os ricos ou novo-ricos (estátuas de anjos, santos, Nossas Senhoras ou do corpo de Cristo, em bronze); b) os práticos (revestidos de pisos ou azulejos domésticos, estampados ou não); c) os antigos (de pedra, caiada ou coberta de musgo, anônimos); d) os histriônicos (muitas flores, muitas velas, recordações, fotografias, vasos); e) os japoneses (que, por sua vez, eram divididos em duas categorias: os de famílias budistas e os de famílias convertidas ao cristianismo, diferentes apenas por uma frase na parte posterior da lápide) e f) os ainda vazios. O túmulo da mãe não pertencia a nenhuma delas.

No Dia de Finados, o cemitério cheirava à parafina quente e crisântemos, muitos dos quais eram postos ao pé dos jazigos no dia anterior, decerto com duas finalidades: livrar as mãos do incômodo na célebre data e não provocar a impressão de abandono afetivo caso o túmulo fosse visitado por pessoas mais madrugadeiras. A movimentação, na verdade, já era vista no dia 1o, com famílias a lavar os túmulos e prepará-los para o dia seguinte. E, neste caso, havia dois tipos de diferentes de famílias na pequena cidade: as que limpavam seus próprios túmulos e as que pagavam para que isso fosse feito por alguém. A época era aguardada com ansiedade pela mulher de meia-idade que se encarregava do ofício, ao longo de todo o ano, mas era bastante requisitada no período. O sistema era simples, mas profissional: a lavagem dos túmulos era semanal, a cobrança, mensal. Em Finados, sozinha ela não dava conta do trabalho e era ajudada por seus filhos, cada qual com seu balde, vassoura e lata de Kaol, Silvo ou Brasso (o brilho do bronze era um aspecto importante da assepsia tumular; as placas de identificação reluziam sob o sol e, nas estátuas, apenas as mãos e pés dos santos e outras divindidades eram areados e polidos).

O périplo dos visitantes também obedecia a um roteiro determinado sabe-se lá por quem. Primeiro, o túmulo dos mais chegados (parentes de primeiro grau, pais, avós, filhos, irmãos etc). Segundo, os familiares laterais ou distantes (primos, tios, cunhados, genros etc). Terceiro, os amigos ou a parentela de amigos (companheiros de trabalho, conhecidos da vizinhança, colegas de infância, comprades ou comadres etc). Quarto, os defuntos célebres (padres, políticos, pessoas que morreram em desastres naturais ou automotivos, jovens tomados por doenças repentinas, milagreiros etc). Por fim, voltava-se ao túmulo primeiro, uma espécie de despedida antes do retorno à casa (na prática, neste momento verificava-se se as velas haviam sido apagadas pelo vento). Havia uma pragmática nesse roteiro, já que as velas eram acesas no primeiro e no segundo caso, a partir do terceiro grupo a visita de resumia a uma parada rápida e comentários. Aconteciam encontros que mudavam a liturgia. Por exemplo: ao visitar o túmulo de um amigo distante, poderia calhar de estarem ali seus visitantes de primeira grandeza, então o tempo de permanência era ampliado de modo a não produzir nos conhecidos uma impressão de desprezo ou pressa. É claro que o hábito trazia transtornos porque os jazigos não estão ordenados nas centenas de ruas e vielas de modo a facilitar a vida dos vivos e, muitas vezes, deixava-se de visitar um túmulo pertecente à categoria quatro, embora estivesse a uma ou duas quadras dali, porque restava um da terceira categoria ainda não visto.  Era preciso alguma engenharia de trajeto que só se aprendia com os mais velhos – habituados há mais tempo ao périplo –, que tinham decor do roteiro mais econômico para poupar as pernas cansadas. Ao levá-los, a morte também arrancava dos vivos uma inteligência que só se aprendia com o passar dos anos e nem sempre os mais jovens tiveram o empenho para registrar os roteiros mais adequados. Muitos deles, aliás, sequer sabiam onde se encontravam os túmulos da primeira categoria de visitas, imprescindíveis. Para isso, o expediente mais útil era partir em busca do coveiro que, atencioso, sacava o livro de registros do cemitério e indicava a localização da tumba procurada.

Pai e filho, no entanto, restringiam-se apenas ao primeiro grupo de visitas (o trajeto completo, na verdade, era uma atividade mais feminina). Era tempo de melancias. Do lado de fora, na rua lateral, o pai, de punhos fechados, dava leves e ligeiros socos nas frutas, de ouvido encostado, para identificar as mais doces entre as derradeiras melancias da estação que, ao se despedirem, anunciavam as frutas de dezembro, festivas como mangas e nectarianas. “É esta”, dizia. Então partiam. 


Foto: Cimetière du Père Lachaise, Paris. Esper Leon.

Fonte: Sensho

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