PICICA: "Vale a pena ler a excelente reflexão
de Léo Lince sobre a conjuntura política que temos atravessado no
Brasil, desde a explosão da revolta popular em junho."
Irrupção, fim de ciclo e interregno
Vale a pena ler a excelente reflexão
de Léo Lince sobre a conjuntura política que temos atravessado no
Brasil, desde a explosão da revolta popular em junho. A íntegra pode ser
lida neste link. Destaco, abaixo, algumas passagens.
“(…)
Henri Lefebvre, um marxista atento às
réplicas da história, ao analisar ainda no calor das refregas a rebelião
juvenil de maio de 68 na França, sacou conclusões que, talvez, possam
nos ajudar na decifração do enigma atual. Estavam presentes na crise de
então – as ‘barricadas do desejo’ em Paris e a greve geral que paralisou
a sociedade francesa por semanas – todos os ingredientes que no
protocolo da esquerda definem uma típica ‘situação revolucionária’. Mas,
segundo Lefebvre, não haveria revolução. Sequer se produziria, como de
fato não se produziu, uma momentânea ‘dualidade de poder’. Por conta de
características elencadas em tempo real, a gigantesca onda contestatória
que não desemboca em revolução ou contrarrevolução foi chamada por
Lefebvre de irrupção.” (…)
A
juventude, entendida menos como faixa etária e mais como um tipo
determinado de relação com o mundo, é por excelência o agente da
irrupção contestatória. Além do jovem, que ainda não foi “reduzido” a um
papel social no interior do sistema, existe a multidão dos recusados
pelo modelo “unidirecional”. Os que erram nas ruas, os fulminados, os
subempregados, os discriminados, os criminalizados, os sem-teto,
sem-terra, a enorme multidão dos “sem alguma coisa essencial” operam na
mesma clava. Sem espaço e ou canais regulares de expressão, o
descontentamento explode no aparentemente espontâneo, inimigo mortal de
todos os poderes e instituições, pois remete sempre para o imponderável.
A irrupção contestatória é fenômeno urbano por excelência. (…)
A irrupção contestatória costuma semear
novidades (novas lideranças, nova pauta de debates, novos sujeitos, nova
morfologia na estrutura dos movimentos) que se destinam a produzir,
como bombas de efeito retardado, alterações profundas na cultura
política. Nem sempre na conjuntura imediata, mas no entranhado das
estruturas. Para fechar o tópico mais uma vez com Guimarães Rosa, não
são mudanças “no bobo do corpo, mas no interno das coragens”. (…)
Mas, como no caso analisado por Lefebvre,
a irrupção não se configura como um polo ordenado de lutas, no qual se
condensam vetores orientados por alternativas programáticas bem
delineadas. Pelo contrário. Há de tudo na babel de vozes que toma de
assalto o espaço livre das ruas. Pululam postulações desencontradas. A
falência do modelo dominante e o ocaso de um ciclo político não aparecem
como resultante do acúmulo ordenado de pequenas mudanças. A crise se
mostra na forma da fratura exposta. A explosão contestatória abala o
mundo da política, desloca o eixo em torno do qual tal mundo gira, mas o
seu clarão, por si só, não ilumina caminhos de mudança. É um fenômeno
que, por sua própria natureza, dispara variáveis fora de qualquer
controle. Diante do agito colossal, todos se assustam: ninguém
hegemoniza e, ao mesmo tempo e pela mesma razão, de imediato ninguém se
sente interditado por ele. Daí o espetáculo das múltiplas leituras
interessadas, dos recuos táticos, da busca rápida de “agendas positivas”
que possibilitem acertar o passo com o ritmo da novidade que chegou
para ficar sem ter dito, ainda, a que veio.
(…)
Interregno
Antonio Gramsci, outro aprendiz atento
das lições da historia, especulou ideias sobre períodos da vida política
marcados por determinantes estruturais da incerteza. São períodos de
crise sistêmica, nos quais a única clareza possível é a constatação
inevitável de que o quadro está confuso. A tais momentos, marcados pela
emergência súbita de situações inesperadas, Gramsci deu o nome de
“interregnum”. Uma situação que se estabelece, na definição mais simples
do conceito, “quando um sistema de poder está em colapso, mas seu
sucessor ainda não se formou”.
O interregno é o tempo da falência
histórica de um ciclo da política, de um modelo, de um sistema até então
dominantes. Mas é também o tempo da inexistência de nexos que articulem
(projeto alternativo) os diferentes polos de condensação dos conflitos e
das culturas criticas ao modelo que agoniza. São ocasiões, segundo
Gramsci, propícias ao aparecimento de “sintomas mórbidos, fenômenos
estranhos, criaturas monstruosas”. Habitado por bifurcações inesperadas e
multiplicidades de rumos possíveis, ele é, por excelência, o território
do imponderável, ao mesmo tempo fascinante e aterrador. Simulacro de
caos, cheio de armadilhas. Um tempo intenso, eletrizado e perigoso.
Um enorme quebra-cabeça de peças
desencontradas. Crise crônica, onde a dinâmica do equilíbrio social
atravessa turbulências de um tipo singular. A tensão permanente entre
conservação e mudança, em tais ocasiões, fica assentada no terreno
pantanoso do rearranjo ou da desorganização mais ou menos profunda das
estruturas. O foco da análise de Gramsci busca desvendar processos
localizados, exatamente, no intervalo que separa a falência histórica de
um sistema da sua falência política efetiva. A reflexão sobre a
diferença entre as duas falências é outra dimensão do conceito em
pauta. O que está definitivamente falido, do ponto de vista da
história, só sai de cena quando de se articula, no concreto da política,
a alternativa de superação: o rearranjo de forças de uma nova
hegemonia. Ou seja, a falência histórica só se consuma na falência
política concreta: a emergência cabal e definitiva de outra “gramática
do poder”.
Entre o crepúsculo do que já era e a
aurora de novos tempos, encobertos pelo manto tenebroso da noite, vigem
os riscos do interregno. O poder dominante, rarefeito de substância, não
murcha ao se esvaziar. Ao contrário dos balões, ele mantém luzidas
suas formas vazias. Além do dom de iludir, conserva até o limite da
extrema-unção o monopólio legal do uso da força. O arreganho
repressivo, replicado pela exasperação entre os artífices do novo, gera
um cabo de guerra envolto pelo fascínio da violência, daí os “sintomas
mórbidos” referidos por Gramsci. O tempo de duração e os tumultos
desta perigosa travessia serão definidos no campo aberto da luta
política. Nada estará de antemão decidido. No interior do interregno,
como no coração das trevas, tudo pode acontecer, inclusive nada.”
Fonte: Brasil & Desenvolvimento