PICICA: "Proponho a "hipótese anarquista" para explicar, desde
1968 até nossos dias, a revolta difusa e experimental contra as instituições
burguesas e suas raízes mais antigas. Longe do pragmatismo rasteiro que coloca
a vitória na eleição ou a tomada do poder como ponto central para a
transformação social, o que estes manifestantes propõem é nada menos que a
transformação da nossa cultura no sentido estruturante que Marcel
Mauss nos ensinou a pensar, ou seja, o "fato social total" que
constituímos e nos constitui, que repetimos diferencialmente a cada geração,
numa iteração cuja continuidade hoje nos parece insuportável. Cada
"onda" geracional é um golpe a mais nas placas tectônicas que regem
nosso mundo: o Estado e o capitalismo. Se as instituições
normativo-burocráticas não são senão um efeito da cultura, caldo
político-vital que é a condição de possibilidade para sua emergência, é essa a
raiz que as manifestações buscam, nos seus gestos que, sem finalidade,
contestam a própria lógica utilitária que nos rege, movendo-se em um trabalho
lento e descontínuo, em passo de dança, contra o próprio trabalho. Por
isso, contrariando a lógica política com a qual se costuma avaliar os
resultados das revoltas em geral, a revolução que virá não será a tomada do
governo, mas sua morte diante da indiferença dos corpos libertos."
A hipótese
anarquista
Moysés Pinto Neto
1 - Há uma linha de continuidade entre os movimentos espalhados pelo
mundo em 1968, os protestos anti-globalização dos anos 90 e os movimentos das
diversas "Primaveras", começando pela Primavera Árabe, passando pelo
15-M e Occupy Wall Street
até as recentes revoltas na Grécia, Chile, Egito (novamente), Brasil, Turquia e
outros países. Apesar das diferenças, movimentos contra as ditaduras na América
Latina, o totalitarismo do bloco soviético, a Guerra Fria, a estagnação e o
moralismo da sociedade burguesa, o domínio transnacional avassalador do
capitalismo enquanto nova pax mundial, as cleptocracias do Oriente Médio, a plutocracia do capital financeiro, a corrupção
generalizada e a destruição dos espaços urbanos têm um comum a Grande Recusa,
que é também, ao mesmo tempo, um devir-revolucionário.
Quanto a todos eles, existe uma perplexidade geral comum aos
meios midiáticos, acadêmicos e políticos. Para além das hostilidades
previsíveis da direita política, que quer conservar a todo custo a injustiça
enquanto fenômeno natural
nas sociedades humanas e não-humanas, os tanques soviéticos e as teorias
conspiratórias governistas confessam que mesmo a esquerda continua sem entender
o que está acontecendo, pois os movimentos
sociais (no mínimo) desde 1968 empregam meios e procuram
objetivos distintos dos movimentos sociais clássicos, especialmente do
movimento operário.
2 - O que caracteriza os movimentos sociais pós-68, então, é a indissociabilidade entre público e privado, institucional e individual, intelectual e corporal, política e dança. Contrariando o tabuleiro moderno em que cada indivíduo é uma consciência utilitária que constrói, pelo acúmulo de vontades, uma instituição, os movimentos contemporâneos sabem que o que está em jogo na política não são organizações burocrático-normativas, mas a própria vida naquilo que os gregos chamavam de ethos – o habitar o mundo segundo uma forma, na união indissociável das redes que constituem esse viver enquanto ética, política, economia e estética. Hoje, simplificando o vocabulário, poderíamos atualizar a palavra ethos utilizando, no sentido mais lato, forte e abrangente possível, o termo "cultura". O que as insurgências colocam em questão é esse fundo cultural.
3 - A colocação em jogo da própria vida na esfera política, contrariando o indivíduo burguês que separa público e privado, advém do próprio fracasso da experiência liberal na conquista do "consenso sobreposto" baseado na tolerância recíproca e identificado como a própria "democracia". Mais do que nunca é evidente pela própria experiência cotidiana que as instituições não são neutras, pois, quando não diretamente a serviço do status quo, mesmo a sua ineficácia é resultado de uma construção intencionalmente defeituosa que mitiga seus resultados. Na esfera da geopolítica internacional, essa experiência é tão cristalina que chega a ser vertiginosa, provocando a sensação de total descrédito dos órgãos encarregados de mediar e arbitrar os conflitos entre Estados soberanos. Ela reproduz de forma ostensiva o modo cotidiano de funcionamento interno dos Estados, cujas instituições servem às relações de poder instituídas chanceladas com o pretexto da neutralidade da democracia.
A tese dos movimentos se enriquece ainda com a vivência no
próprio corpo da violência estatal exercida sem observância de
qualquer critério jurídico e sempre a serviço do poder, ainda que porventura
circunstancialmente, do ponto de vista da "neutralidade democrática",
ela devesse estar de outro lado. A convicção com que os órgãos repressivos (em
especial a polícia) exercem a violência seguindo o poder confessa, sem
as mesmas tergiversações do mundo jurídico e político, quem efetivamente detém
o comando, o que sempre é possível testemunhar a partir dos golpes e atentados
à democracia que esses poderes realizam quando o resultado das urnas e das
políticas públicas contrariam radicalmente seus interesses.
4 - Que toda política seja biopolítica não se trata apenas de uma tese subscrita por diversos intelectuais nas últimas décadas. Uma vez eliminado o "estadocentrismo", vício analítico da Modernidade que (à direita ou à esquerda) só consegue pensar a política a partir de um ente burocrático centralizado (ou seja, política enquanto administração e governo), mais do que nunca está claro que o que está em jogo em cada disputa é nada menos que nosso próprio corpo enquanto recurso energético, enquanto esfera material. Um materialismorenovado não pode ser senão a investigação em torno da guerra – declarada explicitamente ou não – que se trava pela energia (humana e não-humana) no mundo hiperprodutivo do capitalismo do consumo. Para além da economia política clássica e marxista, trata-se da "economia geral" que Georges Bataille nos ajudou a pensar. Para além dos juridicismos ocos que pensam as relações mundiais a partir dos aparatos formais que a prática política não cansa de desconsiderar, trata-se de observar as relações políticas a partir da exploração energética, a começar pelo próprio bloco de conflitos que hoje constitui o Oriente Médio pela reserva de petróleo que detém, fazendo visíveis e explícitas as razões perversas que comandam o mundo na forma de um estado de exceção permanente.
5 - Fazendo uma provocação à "hipótese comunista" de Alain Badiou[1], talvez não seja o comunismo a utopia que guia os manifestantes de todo mundo. Tampouco que os movimentos estejam dispostos a aderir à matriz econômico-industrial produtivista e crescimentista, aliada a "disciplina política" ("militância")[2] e o humanismo antropocêntrico[3], todos a irrigar boa parte do pensamento que coloca como hipótese de trabalho a "ideia comunista".
Proponho a "hipótese anarquista" para explicar, desde
1968 até nossos dias, a revolta difusa e experimental contra as instituições
burguesas e suas raízes mais antigas. Longe do pragmatismo rasteiro que coloca
a vitória na eleição ou a tomada do poder como ponto central para a
transformação social, o que estes manifestantes propõem é nada menos que a
transformação da nossa cultura no sentido estruturante que Marcel
Mauss nos ensinou a pensar, ou seja, o "fato social total" que
constituímos e nos constitui, que repetimos diferencialmente a cada geração,
numa iteração cuja continuidade hoje nos parece insuportável. Cada
"onda" geracional é um golpe a mais nas placas tectônicas que regem
nosso mundo: o Estado e o capitalismo. Se as instituições
normativo-burocráticas não são senão um efeito da cultura, caldo
político-vital que é a condição de possibilidade para sua emergência, é essa a
raiz que as manifestações buscam, nos seus gestos que, sem finalidade,
contestam a própria lógica utilitária que nos rege, movendo-se em um trabalho
lento e descontínuo, em passo de dança, contra o próprio trabalho. Por
isso, contrariando a lógica política com a qual se costuma avaliar os
resultados das revoltas em geral, a revolução que virá não será a tomada do
governo, mas sua morte diante da indiferença dos corpos libertos.
[1] Ver BADIOU,
Alain. A Hipótese Comunista. Tradução Mariana Echalar. São Paulo:
Boitempo, 2012, p. 113ss. [Voltar ao texto]
[2] Como é
defendida, por exemplo, por Slavoj Zizek em diversos textos e entrevistas, e
cujo pensamento Badiou coloca como a outra forma, além da sua, da "salvar
a Ideia do comunismo"
(BADIOU, Alain. A Hipótese Comunista, p.
127, nota 5). Ver, p.ex., ZIZEK, Slajov. Primeiro como tragédia, depois
como farsa. Trad. Maria Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 108. [Voltar ao texto]
[3] BADIOU,
Alain. A Hipótese Comunista, pp. 115-116; ZIZEK, Slajov. Primeiro
como tragédia, depois como farsa, p. 86ss. [Voltar ao texto]
Fonte: Sopro 96 - Panfleto Político-Cultural
Nenhum comentário:
Postar um comentário