PICICA: "Tal como K, Mandela afirma sua condição
de sujeito, mesmo sob domínio. À diferença de K, não se isola na sua
individualidade. Seu sentido de dignidade, rígido e alheio às
circunstâncias, extrapola o indivíduo e abrange a espécie humana. Como
se sabe, foram os negros, violentamente segregados pelo regime do apartheid,
a inspiração da luta de Mandela antes e durante os anos de cárcere.
Extintas as condições formais de reprodução do infortúnio negro (e
também indiano e mulato), as fronteiras da sua práxis política
dilataram-se para incluir os sul-africanos em geral, independente das
suas origens. Vinte e seis anos de prisão e maus tratos não deixaram
lastro de ressentimento no seu fazer político. Sua história pessoal de
sacrifício não inibiu nele o sentimento da empatia, que é o fundamento
moral dos direitos humanos na época moderna. Muito pelo contrário:
Mandela não experimentou a empatia apenas como afeto individual, mas
buscou formas de tradução política e institucional para ela – com
acertos e equívocos, é certo."
Mandela “O Criador de Problemas”
[Cristina Buarque de Holanda]
Nelson foi como a
professora da escola primária decidiu chamá-lo, aos sete anos de idade.
Crianças negras que tinham o privilégio de ir à escola recebiam nomes de
brancos, mais civilizados. Antes do novo batismo, chamava-se
Rolihlahla. Numa tradução aproximada: “criador de problemas” [trouble maker].
Este é o relato que inicia Long Way to Freedom,
a autobiografia de Mandela. Ali o leitor é conduzido da sua infância no
campo, num povoado em Transkei, à eleição presidencial de 1994, a
primeira que levou os negros às urnas e um negro ao poder na África do
Sul. Não é surpresa que o fio condutor desta vida farta de eventos seja a
política, mas ela vem delicadamente embalada na memória dos amores, da
família, da solidão no cárcere, dos medos e das fraquezas. Mandela não
hesita em revelar a outra face da força que o consagrou como líder
mundial. O protagonismo do relato biográfico não se confunde com
narrativa heroica de si. Diluídas na vontade comum do povo que resiste à
opressão, suas ações são narradas como peças de um contexto de luta
política e social.
Em nota dirigida ao leitor, Mandela
esclarece: a história em questão “não é apenas a minha história”, mas a
“história de todos nós e da nossa luta para ser livre”. Seu texto é um
exercício intelectual do fazer histórico imaginado por Antônio Cândido
no memorável prefácio a Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque[*]:
“registrar o passado não é falar de si; é falar dos que participaram de
uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento particular
do tempo que se deseja evocar”.
A narrativa de Mandela sobre si tem uma
coisa qualquer de Michael K[**], o personagem de Coetzee que persiste na
existência, a despeito das experiências reiteradas de subjugação. K é
um jardineiro simplório em torno dos trinta anos de idade que decide
deixar o emprego em Cape Town para levar a mãe, muito doente, de volta para sua cidade natal, Prince Albert.
O pano de fundo é uma África do Sul convulsionada por uma guerra civil
imaginária, na altura dos anos 80. O percurso é tortuoso e o retorno a Prince Albert
ressignificado: depositar as cinzas da mãe, que sucumbiu à doença
durante a viagem. Sem documentos de viagem, K se esquiva da polícia,
vive em fazendas abandonadas, cavernas e, quando capturado, em campos de
trabalho forçado. Arredio a toda dominação, foge, se esconde, come
raízes, insetos e, excepcionalmente, um cabrito que mata afogado no
açude. Animaliza-se para não renunciar à humanidade. Há nele, K, uma
teimosia essencial cujo objeto é o desejo de liberdade. Mesmo quando
submetido, persevera: a condição de dominado não esmorece seu sentido de
dignidade pessoal.
Na biografia de Mandela, que pode
inspirar tantos ângulos de observação, a obstinação por uma vida digna,
sua e do seu povo, é justamente a pulsão que dá sentido ao todo. Quando
cumpria pena de cinco anos por viagem ilegal ao exterior e organização
de stayaway, em maio de 1961, Mandela foi transferido da Pretoria Prison para Robben Island.
Na travessia para a ilha, acorrentado com outros presos políticos no
porão da embarcação, recebia a luz do dia por pequenas janelas, de onde
também chovia urina dos guardas de plantão. Encharcados e expostos ao
frio do inverno sul-africano, em shorts e camiseta, chegaram à nova
prisão. Na entrada, guardas brancos davam ordens para que corressem. Não
havia razão aparente para isso, além do gozo de exercer autoridade
sobre quem não está em condições de resistir a ela. Confrontado por seus
novos algozes, Mandela sussurrou para Tefu, colega de infortúnio:
“precisamos estabelecer um exemplo. Se desistirmos agora, estaremos
sempre submetidos aos seus caprichos”. Tefu concordou e os dois seguiram
o percurso a passos lentos. Provocaram a fúria dos guardas. Um deles
bradou: “nós vamos matar vocês e ninguém nunca saberá o que aconteceu”.
Ainda assim, resistiram e mantiveram o ritmo da caminhada. Foram
conduzidos a um quarto preenchido com alguns centímetros de água e
obrigados a despir-se.
Antes que fosse atingido por um soco de
Gericke, o capitão a cargo da situação, Mandela disse da maneira mais
firme que pôde: “se você encostar a mão em mim, eu vou te levar para a
maior corte na terra e vou acabar com você. Você vai ser tão pobre
quanto um rato de igreja.” Surpreso, o capitão indagou: “você sabe o que
significa servir cinco anos?” Mandela retrucou: “estou pronto para
servir cinco anos, mas não para ser intimidado. Você deve agir dentro da
lei”. Gericke deixou o quarto alagado sem consumar a agressão.
Tal como K, Mandela afirma sua condição
de sujeito, mesmo sob domínio. À diferença de K, não se isola na sua
individualidade. Seu sentido de dignidade, rígido e alheio às
circunstâncias, extrapola o indivíduo e abrange a espécie humana. Como
se sabe, foram os negros, violentamente segregados pelo regime do apartheid,
a inspiração da luta de Mandela antes e durante os anos de cárcere.
Extintas as condições formais de reprodução do infortúnio negro (e
também indiano e mulato), as fronteiras da sua práxis política
dilataram-se para incluir os sul-africanos em geral, independente das
suas origens. Vinte e seis anos de prisão e maus tratos não deixaram
lastro de ressentimento no seu fazer político. Sua história pessoal de
sacrifício não inibiu nele o sentimento da empatia, que é o fundamento
moral dos direitos humanos na época moderna. Muito pelo contrário:
Mandela não experimentou a empatia apenas como afeto individual, mas
buscou formas de tradução política e institucional para ela – com
acertos e equívocos, é certo.
A Comissão de Verdade e Reconciliação
sul-africana foi a expressão síntese deste experimento da empatia como
prática política. Na época da transição política no país, Mandela
compreendeu que a natureza rígida e impessoal do aparelho burocrático de
Estado seria impotente para lidar com o tipo de demanda social dirigida
a ele. O desafio assumido por seu governo foi o de contornar os marcos
da política formalista e instituir uma dimensão pública de diálogo e
reconhecimento. Chamadas a sessões públicas em todo país, transmitidas
em rede nacional de rádio e televisão, as vítimas do regime narravam
suas histórias e contribuíam para o esclarecimento público sobre os
métodos e o cotidiano de opressão no regime segregacionista.
O objetivo fundamental da comissão era
expor todos os sul-africanos ao desafio de colocar-se no lugar do outro,
sofrer o sofrimento alheio, gozar o gozo alheio e, enfim, reconhecer o
outro como igual. Esta seria a condição de um novo tempo da política no
país.
Há inúmeras razões que fazem de Mandela
um dos personagens mais notáveis do século XX. Uma delas foi a teimosa
com que afirmou a dignidade de si e do seu povo.
para Renato.
[N.A *] O fragmento citado foi retirado
desta passagem: “A certa altura da vida, vai ficando possível dar
balanço no passado sem cair na autocomplacência, pois o nosso testemunho
se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo
ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos
outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo
como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua
época. Então, registrar o passado não é falar de si; é falar dos que
participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no
momento particular do tempo que se deseja evocar”
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