PICICA: "[...]cabe afastar, de uma vez por todas, o discurso do medo
que o Partido dos Trabalhadores, ironicamente, mobiliza uma década após
ser o agente da vitória da esperança sobre o medo. E, ao mesmo tempo,
ter em mente que o PT não é ‘o inimigo’. Não porque ainda apresente
algum potencial de composição diante da multidão, mas por que ele o é
na mesma medida em que compõe o arranjo institucional da representação.
Não cabe, então, nem o apego ao petismo/lulismo como garante da
mobilização social da última década, nem a eleição desses últimos como
principais adversários. Nesse sentido, tanto lulismo quanto
anti-lulismo, tanto petismo, quanto anti-petismo, são momentos de uma
dialética que não se liberta da tradição política cujo tempo, por excelência,
a multidão de junho encerrou, tornando o partido e Lula, seu principal
representante, apenas fantasmas de uma ordem anterior que, certamente,
ainda desempenharão papéis de monta no cenário, mas que são o último
brilho pálido do velho diante da claridade resplandecente do novo. O
trabalho de luto que os militantes democráticos devem fazer
relativamente ao PT e a Lula implica, acima de tudo, a criação política
num tempo diverso, no tempo da contingência absoluta, no kairòs, que
junho inaugurou. Implica, portanto, um êxodo que faça-os se mover do
terreno de lutas anterior para uma nova terra na qual poderão construir
uma nova democracia."
O evento dos comuns
“Os dias de poder pessoal de homens
isolados terminaram (…) Mas se os dias da pequena estátua solitária
terminaram, por que a era da arquitetura não deveria raiar? (…)
Reconstruamos o mundo então como um salão esplêndido; vamos desistir de
fazer estátuas e inscrever nelas virtudes impossíveis.
Vejamos se a democracia que enche os
recintos não pode superar a aristocracia que esculpiu as estátuas. Mas
existem ainda inúmeros policiais. Um gigante de azul permanece em pé
ante cada porta para que não pressionemos com excessiva rapidez nossa
democracia. ‘Entrada aos sábados somente entre dez e 12 horas.’ É o tipo
de aviso que detém nosso progresso sonhador. E não devemos admitir uma
nítida tendência em nossa mente corrupta encharcada pelo hábito, para
parar e pensar: ‘Ali esteve o rei Charles quando o sentenciaram à morte;
ali o conde Essex; e Guy Fawkes; e sir Thomas More.’ Parece que a mente
gosta de se empoleirar em seu vôo pelo espaço vazio, sobre um nariz
notável, sobre uma mão trêmula; adora o olho lampejante, a sobrancelha
arqueada, o ser humano anormal, o particular, o esplêndido. Portanto,
esperemos que a democracia venha, mas somente daqui um século, quando
estivermos debaixo da terra; ou que por algum estupendo lance genial se
combinem o vasto recinto e o ser humano pequeno, particular,
individual.”
Virginia Woolf, “‘Esta é a câmara dos comuns!’” In: Cenas londrinas, pp. 69-70.
O ano de 2013 certamente ficará marcado como
um ano de ruptura na história política brasileira. O irromper repentino
de milhões de manifestantes nas ruas de todo o país nas chamadas
‘jornadas de junho’ determinou o fim de um ciclo histórico prolongado de
lutas sociais e políticas que, iniciado com os impulsos da
redemocratização, já se demonstrava insuficiente diante da atualização
da agenda social e política das lutas no Brasil do início do século XXI.
Um ciclo que foi capaz de promover conquistas significativas,
principalmente na última década, como avanços no combate à miséria e à
desigualdade social, mas que falhou diante do desafio de colocar em
marcha um processo de radicalização democrática da sociedade brasileira.
A democracia representativa, uma conquista importante daquelas lutas de
fins da década de 70 e da década de 80, mostrou-se cada vez mais
bloqueada pelas conjurações de uma classe dominante racista e
autoritária que cedeu sempre os anéis para preservar os dedos, a mão e o
braço forte da violência estatal, mecanismo por excelência da
pacificação social à brasileira, mistificada pela imagem do brasileiro
pacífico.
É, portanto, sobre os escombros da luta anterior que os homens e mulheres comuns que foram às ruas em 2013, constroem sua própria luta, pois se na década de 1980 milhões foram às ruas para exigir eleições diretas, aqueles que marcharam em 2013 gritaram por mais, exigindo participação, exigindo uma reorganização da democracia, demandando democracia direta! Trata-se, neste novo momento, de ir além, das (eleições) diretas a (democracia) direta, as tentativas de se resolver a crise da representação com mais representação sendo, como asseverou o filósofo italiano Paolo Virno, como pregar sermões aos pássaros¹. O evento de junho de 2013 é um advento: o advento dos comuns como comuns, sem mediadores nem representantes, na política.
Assinalam isso as diversas formas e organizações de democracia direta, como assembleias populares e ocupações (amplamente vistas nas mobilizações multitudinárias que irromperam por todo o mundo, desde a Primavera Árabe até os movimentos Ocuppy, nos EUA, passando pelos movimentos europeus dos indignados espanhóis do 15M, dos trabalhadores gregos na Praça Syntagma e dos turcos mobilizados pelo parque Gezi em Istambul), demonstrativas da nova composição social do trabalho metropolitano contemporâneo: uma multidão politizada (e, no Brasil, até então interpretada como despolitizada por não corresponder em suas formas de ação política às grades interpretativas tradicionais) pelas suas próprias características formativas, pela sua própria experiência social em um mundo onde os elementos da ação política encontram-se imersas nas características do trabalho, cada vez mais comunicativo e exigente, portanto, de uma estrutura, por assim dizer, pública não-estatal, comum. Tais experimentos democráticos radicais são potentes usinas produtoras de novos ‘valores existenciais’ que, como enunciou Félix Guattari, não se apresentarão como ‘alternativas globais’, mas são sinais de ‘um deslocamento generalizado dos atuais sistemas de valor’² e a prefiguração de novas formas de governança democrática, laboratórios de uma institucionalidade do comum.
O movimento dos movimentos que se pôs em marcha desde junho de 2013, impulsionado, certamente, pelas diversas lutas que lhe precederam, certamente desempenhará um papel importante nas eleições de outubro de 2014, mas não pelas vias que a tradição analítica eleitoralista e representativa pretende ou deseja. Muito mais do que se apresentar como ‘voz das ruas’ a ser ouvida no interior dos gabinetes e palanques, a multidão, que mais do que expressão da crise da representação, é, de fato, o lugar de onde se pode propor as soluções para a mesma – não como recondução a um patamar anterior, mas como potência capaz de gerar novas formas de (auto-)governo – pode atuar incisivamente como agente politizador de um pleito de agenda pré-concebida e espectro de possíveis bastante reduzido, que provavelmente se limitará a debater, unicamente, a capacidade de gestão do consórcio estado-mercado no Brasil, sem lhe discutir as bases. Tratar-se-á, então, de politizar as eleições para deseleitoralizar a própria política, amarra que na última década conduziu o debate político-representativo no Brasil a uma zona de indistinção que configurou uma representação única (a face política do consenso) – razão pela qual qualquer que seja o operador do consórcio, pouca seja a margem de manobra para conduzir uma real reforma da sociedade brasileira.
Nesse sentido, cabe afastar, de uma vez por todas, o discurso do medo que o Partido dos Trabalhadores, ironicamente, mobiliza uma década após ser o agente da vitória da esperança sobre o medo. E, ao mesmo tempo, ter em mente que o PT não é ‘o inimigo’. Não porque ainda apresente algum potencial de composição diante da multidão, mas por que ele o é na mesma medida em que compõe o arranjo institucional da representação. Não cabe, então, nem o apego ao petismo/lulismo como garante da mobilização social da última década, nem a eleição desses últimos como principais adversários. Nesse sentido, tanto lulismo quanto anti-lulismo, tanto petismo, quanto anti-petismo, são momentos de uma dialética que não se liberta da tradição política cujo tempo, por excelência, a multidão de junho encerrou, tornando o partido e Lula, seu principal representante, apenas fantasmas de uma ordem anterior que, certamente, ainda desempenharão papéis de monta no cenário, mas que são o último brilho pálido do velho diante da claridade resplandecente do novo. O trabalho de luto que os militantes democráticos devem fazer relativamente ao PT e a Lula implica, acima de tudo, a criação política num tempo diverso, no tempo da contingência absoluta, no kairòs, que junho inaugurou. Implica, portanto, um êxodo que faça-os se mover do terreno de lutas anterior para uma nova terra na qual poderão construir uma nova democracia.
Assim, nas demonstrações multitudinárias, que 2014 certamente verá, tratar-se-á muito mais de eletrificar os circuitos da política representativa não para influir nos seus resultados (o quê pode acontecer, mas como consequência inesperada), mas para anunciar um novo tempo no qual a política não seja refém dos pleitos, mas se desenvolva segundo a participação ativa dos homens e mulheres comuns que foram às ruas em 2013, realizando o ‘estupendo lance genial’ que Virginia Woolf – num dos mais belos textos sobre a democracia, os comuns, enfim, o comum – imaginou ser capaz de combinar o ‘vasto recinto e o ser humano pequeno, particular, individual’, de exprimir a potência do comum do singular.
1. No seu ‘Virtuosismo e revolução’ In: Virtuosismo e revolução, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008 [1994], p. 139.
2. Félix Guattari, As três ecologias, Campinas, Papirus, 1991 [1989], p. 52.
Fonte: O lado esquerdo do possível
Nenhum comentário:
Postar um comentário