PICICA: "Manifestações eficientes são as que
conseguem ter a sua mensagem entregue ao grande público e que, por esse
meio, consegue persuadi-lo a apoiar o que reivindicam. Manifestações na
escala massiva de participação, raras, tendem a ser forças
incontroláveis na modificação de agendas e políticas e até na alteração
de regulamentações, leis e demais formas de decisão política. Isso
porque, de algum modo, o público em geral se sente representado pelo que
se reivindica e não se sente ameaçado pela satisfação dos interesses
manifestados. Manifestações na escala de multidões e grupos enfrentam
maiores dificuldades porque há mais gente fora do que dentro do
coletivo, de forma que enfrentam dificuldades suplementares para
produzir uma mensagem que, primeiro, chegue ao público e, segundo, que o
convença da justiça da causa defendida. Nesta escala, é preciso cuidar
muito da forma da mensagem, dos vários destinatários a que ela se
destina e, enfim, do modo como operam os mediadores que se colocam entre
os manifestantes e o público em geral."
Doze Teses sobre Manifestações de Rua Como Forma de Comunicação Política
[Wilson Gomes, CEADD]*
1. Protestos de rua, mobilização de
multidões na cena pública e até ocupação de espaços e obstrução de vias
são formas de comunicação política. É justamente por isso, porque são
comunicação, é que são chamadas de “manifestações” ou representação
pública de uma posição política.
2. Por meio de manifestações, pessoas e
grupos atingidos, afetados por alguma situação que consideram injusta,
inadequada ou insatisfatória – e outras pessoas a elas solidárias –
fazem saber ao grupo ou à instituição responsável pela situação em tela,
e à sociedade em geral, que não estão de acordo com isso e que requerem
mudanças urgentes.
3. Na democracia, é legítimo que pessoas e
grupos lutem por interesses próprios e que usem manifestações como meio
de luta. Mas nem todos os interesses são generalizáveis nem toda a
satisfação de reivindicações merecerá a solidariedade dos não afetados
pela situação em tela. Num universo de recursos finitos, quase sempre
quando um conjunto de interesses é satisfeito isso diminui a
possibilidade de que outros interesses possam ser atendidos. Por isso
mesmo, o grupo portador de reivindicações via manifestações precisa
captar o máximo de simpatia do resto da sociedade, não apenas porque os
outros podem exercer pressão favorável ao grupo em questão, mas,
sobretudo, para evitar a sensação de este grupo está avançando
pretensões indevidas e egoístas sobre o patrimônio comum, em prejuízo
dos demais.
4. Por essa razão, o modo como a
mensagem-manifestação é elaborada será fundamental para a captação da
benevolência dos demais. O coletivo manifestante terá que dramatizar
a própria situação (no sentido de produzir narrativas dramáticas em que
se representam o modo como a circunstância injusta lhe atinge),
transformar a circunstância contra a qual luta em problema de toda a sociedade e, sobretudo, vender
a ideia de que remover a situação opressora será um benefício para
todos e não apenas para o grupo. E isso tudo ainda tendo que lidar com
discursos e narrativas adversárias e eventuais interesses antagônicos,
que também são legítimos.
5. Toda manifestação, enquanto mensagem
produzida diretamente pelo grupo portador de reivindicações, será
mediada por outro conjunto de mensagens antes de chegar, para além do
círculo mais restrito dos envolvidos e engajados, aos corações e mentes
do resto das pessoas. Este outro conjunto de mensagem poderá ser
produzido por cidadãos anônimos nas suas redes de comunicação
horizontal, via internet, mas é produzido principalmente pelo jornalismo
industrial. Que usará os seus critérios próprios de seleção e decisão
editorial e realizará a cobertura conforme o interesse do seu modelo
(imaginado) de consumidor, o que normalmente significa que não será
conforme o interesse do grupo manifestante. A manifestação retirada das
ruas para páginas e telas, depois de editadas, reorganizadas como
histórias, estruturadas conforme a machetaria das narrativas
jornalísticas não é nem pode ser a mesma coisa, ter o mesmo sentido e
configurar-se exatamente como a mesma mensagem que interessa ao grupo
portador de reivindicações. Não tem jeito. Estamos em um mundo em que
todos os fatos e eventos são mediados pela cobertura do noticiário, por
que seria diferente no caso de manifestações? Esquecer-se do fato de que
há mediação pode ser o pecado mortal das manifestações de rua.
6. Tem papel decisivo em toda a
manifestação o conceito de política, Estado e democracia que sustenta a
estratégia de comunicação por trás dos protestos, passeatas, obstruções e
ocupações. Um grande problema das manifestações brasileiras consiste na
concepção que compartilham acerca da política (“política é uma
atividade indigna e classista, realizada por canalhas cujo objetivo é a
satisfação dos interesses próprios e que, ademais, empregam a sua
energia para prejudicar os trabalhadores e os pobres”), do Estado
(“estruturalmente um adversário da sociedade, ocupado por governos que
têm recursos infinitos e fazem políticas públicas orientadas
exclusivamente por um fator chamado «vontade política»”) e da democracia
(“democracia é um sistema em que os trabalhadores, os pobres e qualquer
coletivo em que eu esteja têm satisfeitos todos os seus interesses;
democracia verdadeira é um sistema em que organizações sociais governam e
se autorrepresentam ao tempo em que representam o povo”). Os
inconvenientes desses pressupostos são: a) expectativas irrealizáveis
sobre os limites e processos da fazenda pública e dos orçamentos
públicos; b) incompreensão dos processos legislativos, dos procedimentos
de formulação e implantação de políticas públicas e das demais regras
de funcionamento do Estado democrático; c) dificuldade de
estabelecimento de pontes com “o resto da sociedade” e com as
instituições do Estado, uma vez que a parte reivindicante se
autocompreende como sendo o Todo, de fato ou de direito.
7. Organizadores de manifestações em
geral são muito habilidosos na mobilização interna dos afetados pela
situação injusta, na comunicação para dentro do grupo a fim de reforçar o
vínculo interno, para criar uma identidade coletiva e, por fim, com o
objetivo de produzir a indignação moral necessária para por o grupo em
movimento. Mas podem ser um desastre na criação de pontes com os que
estão fora do coletivo, seja com os responsáveis por alterar o
indesejável estado das coisas, seja com aqueles cuja solidariedade seria
essencial para exercer pressão sobre os primeiros ou, ao menos, para
que não fosse exercida pressão em sentido contrário ao que se
reivindica. Aparentemente, quanto mais forte o capital social que torna o
grupo compacto, mais fraco é o capital social que constrói conexões,
que negocia reivindicações e capta benevolência. Assim, grupos compactos
podem estar tão certos da justiça do que reivindicam e de tal modo
imbuídos do furor moral contra injustiça que sofrem que frequentemente
imaginam que podem conseguir satisfazer reivindicações “na marra”, sem
persuasão ou negociação.
8. Manifestantes, da mesma maneira que
atores de muitos outros setores da sociedade, não necessariamente
possuem habilidades ou competências para lidar com os mediadores
profissionais do jornalismo, embora precisem contar com esta mediação e
lidar com ela para conseguir passar a sua mensagem aos seus
destinatários. Produzir mensagens é uma coisa, garantir que ela seja
entregue conforme a intenção de quem a produz é outra, bem diferente.
Outros setores sociais resolveram isso contratando capacidade
profissional de comunicadores (RP, assessores e consultores de
comunicação e imagem, jornalistas, produtores, publicitários) para
cuidar da própria visibilidade e da imagem e reputação que lhes convém
na esfera de visibilidade pública monopolizada pelos campos
profissionais e pelas indústrias da comunicação. Atores da sociedade
civil, principalmente atores de mobilizações sociais que, portanto, são
eventuais e não estáveis (diferentemente das organizações sociais), não
contam com esta ajuda profissionalizada. Por desconhecer a mediação
necessária do noticiário e achar que a mensagem saída “das ruas”
chegará, “desintermediada”, a todos, o manifestante viverá sempre a
grande frustração de não ver o que ele deseja manifestar refletido no
jornal. Para ele, o jornalismo teria uma obrigação moral e uma
capacidade ontológica de refletir as coisas e só não o faz porque
veicula interesses políticos divergentes dos manifestantes. Acontece,
porém, que o jornalismo não é um espelho onde os fatos, eventos e
mensagens produzidas na realidade se refletem integralmente. A cobertura
jornalística é uma produção de narrativas, estruturadas segundo
critérios específicos, em que fatos são editados, mensagens são
reorganizadas e recontextualizadas, discursos e imagens são agrupados e
encaixados, tudo para satisfazer o consumidor modelo de informação
daquele veículo. O jornalismo não é o entregador da mensagem das
manifestações de rua. Não é, nem o pode ser. Todo fato ou mensagem hoje é
mediado pelo jornalismo, não porque os jornalistas sejam perversos e
monopolistas, mas porque é na cobertura do noticiário que as pessoas vão
buscar as informações sobre os fatos do dia.
9. Grupos portadores de reivindicações
que não conseguem ou não desejam construir pontes tendem a se
transformar em coletivos agressivos contra todos os que estão fora deles
e que lhes parece obstáculos. À medida que sentem que não estão sendo
ouvidos pelo destinatário primário das suas reivindicações e/ou que a
sua mensagem não está sendo refletida no noticiário, vão elevando a voz e
radicalizando as atitudes, numa falsa esperança de que se gritar podem
ser, enfim, ouvidos e atendidos. É normal a este ponto iniciar um
processo de transformação do oposto em adversário e do adversário em
inimigo. Formam-se, então, setores mais radicalizados dentro grupo,
dispostos a partir para o confronto, e a causa vai sendo perdida – mesmo
a causa mais justa não consegue prosperar quando passa a ser defendida e
representada publicamente por grupos que são objetos de grande
antipatia social.
10. Na “fase de inimizade”, o primeiro
alvo são os que poderiam resolver a situação adversa que motivou a
reivindicação, os destinatários primários da reivindicação, e tudo o que
pareça a eles associados. Se estes destinatários são os políticos, o
objeto imediato do confronto pode ser o espaço físico ocupado por eles, a
polícia e as instituições públicas e financeiras que constituem o status quo
político e econômico, numa escala crescente de inclusão de alvos. A
segunda classe de alvos podem ser os mediadores profissionais das
narrativas das manifestações – o jornalismo -, uma vez que não entregam a
mensagem que os manifestantes produzem e que, segundo o raciocínio
comum, não o fazem porque são adversários. A terceira classe de alvos é
“o resto da sociedade”, que, segundo o raciocínio dos manifestantes,
precisam de algum modo experimentar na própria carne a opressão e a
frustração dos portadores de reivindicação. Trata-se da “socialização de
transtornos” – se eu sofro, todos têm que sofrer para ver se alguma
coisa muda. Isso cria, paradoxalmente, uma nova classe de pessoas
afetadas por situações injustas ou indesejadas: os afetados por
manifestações.
11. Manifestações eficientes são as que
conseguem ter a sua mensagem entregue ao grande público e que, por esse
meio, consegue persuadi-lo a apoiar o que reivindicam. Manifestações na
escala massiva de participação, raras, tendem a ser forças
incontroláveis na modificação de agendas e políticas e até na alteração
de regulamentações, leis e demais formas de decisão política. Isso
porque, de algum modo, o público em geral se sente representado pelo que
se reivindica e não se sente ameaçado pela satisfação dos interesses
manifestados. Manifestações na escala de multidões e grupos enfrentam
maiores dificuldades porque há mais gente fora do que dentro do
coletivo, de forma que enfrentam dificuldades suplementares para
produzir uma mensagem que, primeiro, chegue ao público e, segundo, que o
convença da justiça da causa defendida. Nesta escala, é preciso cuidar
muito da forma da mensagem, dos vários destinatários a que ela se
destina e, enfim, do modo como operam os mediadores que se colocam entre
os manifestantes e o público em geral.
12. Em todo ciclo de manifestações de rua
há que se levar em conta o fenômeno de psicologia social que podemos
chamar de “fadiga de compaixão”. O público tem uma cota limitada de
compaixão, de empatia na dor e no sofrimento dos outros e, portanto, de
paixão moral para ser despendida com os eventos presentes no noticiário.
Depois de certa duração e de determinada intensidade na solicitação dos
seus sentimentos de compaixão, da sua paixão intelectual e moral, o
público já não tem mais esses sentimentos disponíveis e vai precisar de
um tempo “defeso”, de uma folga na demanda por piedade e engajamento.
Neste período perde-se, inclusive, a capacidade de distinguir uma causa
da outra, uma tragédia da outra, uma reivindicação da outra. É um
período de insensibilidade, cuja velocidade de recuperação vai depender
dos níveis de dispêndio de compaixão que o ciclo anterior de solicitação
de empatia demandou. Desde junho acompanhando manifestações,
aparentemente ninguém aguenta mais ver manifestações no telejornal da
noite e o público já nem é capaz de claramente distinguir uma causa da
outra, todas lhes parecem iguais e dramatizadas num nível histérico de
fogo e quebra-quebra. O público brasileiro chegou a outubro precisando
de uma folga.
*[N.E.] Publicado originalmente na pagina do CEADD – Centro de Estudos Avançados em Democracia Digital da UFBA, http://www.ceadd.com.br/doze-teses-sobre-manifestacoes-de-rua-como-forma-de-comunicacao-politica/ . Nossos agradecimentos ao autor que permitiu a reprodução.
Fonte: Revista Pittacos
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