PICICA: "O levante
desses dias nos mostra que, quando as singularidades cooperam entre si,
se mantendo tais, a multidão se constitui como um outro tipo de classe:
que só existe na luta, não mais pela fusão em um corpo homogêneo, mas
pela amplificação de suas diferenças. A potência da multidão é selvagem:
está em não ter linha, liderança ou organicidade que não seja interna à
sua luta. O bRASIL menor é muito mais potente do que o Brasil Maior. "
Do bolsa família ao levante da multidão (Giuseppe Cocco e Antonio Negri)
Em um artigo publicado em 2005, dissemos que as críticas de direita e de esquerda ao Programa Bolsa Família
(PBF) convergiam porque usavam categorias ultrapassadas. Os dois lados
diziam que era assistencialista e criava dependência. Só a geração de
emprego proporcionaria “emancipação” e essa dependeria da política
econômica. Nós afirmamos que as duas críticas eram erradas por pensarem o
trabalho como emprego. No capitalismo contemporâneo, o trabalho não
envolve mais apenas isso. O próprio chão de fábrica
depende da circulação. A produção implica a mobilização da vida como um
todo, uma mobilização que não é paga. Massificado, apesar de sua
concepção originalmente neoliberal (condicionada e focada), o PBF se
tornou o embrião de uma renda básica, um primeiro reconhecimento das
dimensões produtivas da vida.
Nosso
artigo foi bem recebido. Mas, na realidade, ninguém entendeu suas
implicações sociológicas e políticas. Minguém estava nem aí. Depois do
susto de 2005, veio o grande consenso, amplificado pelas análises
erradas da crise global
de 2007/8 como se fosse um desvio das finanças e não o modo de
funcionar do novo capitalismo. Veio a luz um bicho bizarro de duas
cabeças. Uma delas é a “nova classe
média”: as conquistas em termos de mobilidade social foram inscritas no
regimes discursivo da economia política dos valores de um “Brasil Rico
(porque) Sem Pobreza”. A outra é o Brasil Maior com base na ilusão
neodesenvolvimentista: subsídios para as montadoras, megaeventos,
megaobras e Minha Casa Minha Vida (ao serviço da especulação
imobiliária). Lula/Dilma seriam a reencarnação de Vargas e Eike Batista
do Capital Nacional. O corpo desse bicho esquisito é uma coalizão
partidária ao mesmo tempo ampla e autoindulgente com os sucessos
eleitorais e a festa de investimentos suntuosos. Os índios lutam por
suas reservas, os pobres por suas favelas, os informais por seus
direitos a cidade, os sem terra para a reforma passaram a ser vistos
como estorvos para esse belo projeto de nação, que enfim encontrou sua
política de estado.
De
repente, a terra tremeu! Quando o trabalho implica a mobilização da
vida, há uma mudança radical de sua composição social: estatisticamente,
ela pode aparecer como
conjunto homogêneo de consumidores (para o marketing eleitoral, das
empresas ou da pacificação), mas no plano material, não há nenhuma
classe média. É a composição de um novo tipo de trabalho, que acontece dentro e fora
do emprego, nas redes sociais e de transportes e tem nas
universidades, escolas, museus, serviços e até nas reservas indígenas
suas novas fábricas. O espaço desse trabalho são as redes (virtuais e de
transportes) que desenham o espaço metropolitano, aquele que o Brasil
Maior e seu sistema de transportes destrói. Para a esquerda como um
todo, esses trabalhadores não podem e não sabem lutar, porque não
existem como classe operária. Para quem apenas usa os óculos de seu
marqueteiro, se trata apenas de um fluxo eleitoral.
O levante
desses dias nos mostra que, quando as singularidades cooperam entre si,
se mantendo tais, a multidão se constitui como um outro tipo de classe:
que só existe na luta, não mais pela fusão em um corpo homogêneo, mas
pela amplificação de suas diferenças. A potência da multidão é selvagem:
está em não ter linha, liderança ou organicidade que não seja interna à
sua luta. O bRASIL menor é muito mais potente do que o Brasil Maior.
Fonte: Global Brasil Revista Nômade
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