dezembro 28, 2013

"Para uma definição ontológica de esquerda e direita", por Silvio Pedrosa

PICICA: "O quê, ao fim e ao cabo, importa, a fim de que se possa retirar todas as implicações das atitudes da(s) esquerda(s) diante da teleologia do comum (em nada aparentada a qualquer movimento dialético) é, de fato, o modo pelo qual elas se articulam para fazer com que esse movimento se realize segundo uma perspectiva da organização imanente do poder constituinte, e não da ordem transcendente do poder constituído³, construindo uma democracia cada vez mais multitudinária, participativa e aberta. Diante dos desafios que a contemporaneidade coloca em marcha, ser de esquerda, mais do que nunca, é estar dentro dos movimentos, lá onde se pode produzir diferença qualitativa entre o antes e o depois, lá onde como afirma Negri é possível distinguir entre diferença e repetição." 




Para uma definição ontológica de esquerda e direita


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Ontologia política nas ruas do Brasil em 2013
 
O historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva publicou uma boa contribuição ao debate sobre a questão a respeito do quê é ‘ser de esquerda hoje?’ no site Carta Maior, cujo título é “A ‘esquerda’, o mapa e a montanha”. Nele, por vários ângulos, o autor fustiga a questão sobre como se (re)configuram as clivagens ideológicas no mundo contemporâneo – mais especificamente no mundo pós-queda do muro de Berlim que o autor identifica, diferenciando-se da maioria dos analistas de esquerda disponíveis no colunismo político nacional, não como momento da instauração de uma crise da esquerda, mas como momento de libertação do stalinismo e do socialismo real. Ao longo do exercício, o autor fornece alguns critérios para a atualização da díade que emergiu do ‘grande salão da assembleia’ na Revolução Francesa.

Inicialmente, caracteriza ‘direita’ e ‘esquerda’ por diferentes perspectivas diante do fluxo do tempo: a direita definir-se-ia por uma postura refratária a mudanças na ordem, no estado de coisas vigente numa determinada época. Segundo o historiador, ‘a direita teme o futuro, teme mudanças, odeia transformações. Por que? Porque sabe que o futuro é contra ela, não lhes será favorável e, acima de tudo, é incerto e mesmo desconhecido.’ Reconhecendo a multiplicidade de posições possíveis, Teixeira da Silva aponta, entretanto, para um ‘ponto comum’ entre as diversas esquerdas, que “em oposição à direita’” acreditam que “a sociedade se move, se transforma, se aprimora”. O autor, então, continua afirmando que o perguntar-se pela existência da esquerda “é perguntar se ainda acreditamos na mudança” e conclui que não existe uma “essencialidade de esquerda”, mas, sim, “a busca e a aceitação da mudança, [a ideia] que a sociedade se transforma e que o futuro será sempre melhor se quisermos lutar por isso”, a esquerda sendo, para concluir, “uma cartografia do futuro”.

A intervenção de Francisco Carlos é, sem dúvida, distinta da maioria das análises disponíveis no mainstream do debate político em curso no país por colocar a questão não apenas em termos sócio-políticos – como, por exemplo, os que seguem os critérios de aposta na liberdade (direita) e na igualdade (esquerda) como é o traço distintivo da díade proposta por Norberto Bobbio – e partidários – que insistem na polarização situação-oposição, PT-PSDB como elemento de clivagem fundamental do espectro ideológico brasileiro, critério que, não raro, resvala no governismo, no ufanismo e, mesmo, no stalinismo-, mas, ao estabelecer ‘esquerda’ e ‘direita’ como atitudes diante do tempo, em tomá-la em suas implicações ontológicas. É, portanto, nesse terreno que gostaríamos de aduzir alguns comentários.

A chave para entender a posição do autor nos parece, ao mesmo tempo, a chave que torna relativamente problemática a caracterização da ontologia política proposta. A expressão ‘cartografia do futuro’, implicando o contínuo mapeamento dos processos e temas de mudança nas sociedades se apresenta, a um só tempo, como o melhor insight do texto e o elemento que expõe a fragilidade da concepção de esquerda proposta: a ideia mesma de ‘futuro’. Pois, ao fim e ao cabo, o ‘futuro’ não existe. Para utilizar a metáfora proposta pelo autor: não há pico de montanha a ser alcançado. O quê existe é o porvir no qual se desenrolam as lutas. Esse, entretanto, não é um problema terminológico menor, mas atravessa toda a estrutura da argumentação de Teixeira da Silva, cujo argumento da confiança na mudança da sociedade como traço definidor da esquerda perpassa todo o texto, a direita desejando a mudança apenas por ocasião de reações a processos de mudança inicialmente desencadeados, ou seja, reativamente.

Qual o problema central desse critério? Ele não corresponde às esquerdas ou aos vários ramos da direita em suas manifestações concretas, mas corresponde a seus tipos ideais (que não estão errados enquanto se restringem à tentativa de traçar uma big picture, mas que naufragam diante das idiossincrasias políticas do terreno material das lutas). Nem a direita, na atualidade, se define através de uma recusa irrestrita da mudança, nem a esquerda se move apenas por intenso entusiasmo depositado na esperança de um futuro. A aceleração das mudanças sociais, políticas e institucionais nas últimas quatro décadas não foi fruto de uma bem-sucedida ofensiva política da direita que apostou na mudança, numa nova ordem social e política, no neo-liberalismo contra o estado de bem estar social e ordem que emergiu do pós-II guerra? E a postura conservadora de variados governos e mesmo partidos de esquerda ao longo das últimas décadas, cedendo ao ideário neoliberal como norte de condução de suas políticas, não insinua que o problema é outro que não estritamente a mudança?
Assim, se certamente a atitude diante da mudança ou, mais amplamente, do tempo é decisiva para uma definição ontológica de esquerda e direita, o modo como distinguimos esse abrir-se ao porvir deve ser mais refinado para que consigamos estabelecer clivagens que apurem de forma mais detalhada a díade. E nesse ponto cabe remeter a um aforismo d’O crepúsculo dos ídolos de Nietzsche:

Sussurrado no ouvido dos conservadores. — O que antes não se sabia, o que hoje se sabe, se poderia saber — uma reversão, um retorno, em qualquer sentido e grau, não é absolutamente possível. Nós, fisiólogos, ao menos sabemos isso. Mas todos os sacerdotes e moralistas acreditaram nisso — eles quiseram levar a humanidade a uma medida anterior de virtude, ‘aparafusá-la’ de volta. (…) 
Mesmo os políticos imitaram nisso os pregadores da virtude: também hoje há partidos que sonham, como objetivo, que todas as coisas andem para trás como caranguejos. Mas ninguém é livre para ser caranguejo. Não adianta: há que ir adiante, passo a passo adiante na décadence (– eis a minha definição do moderno ‘progresso’…). Pode-se estorvar esse desenvolvimento e, mediante esse estorvo, represar, recolher, tornar mais veemente e súbita a degenerescência mesma: mais não é possível fazer. –”¹

O modo como Nietzsche define sua concepção do “moderno ‘progresso’” é o movimento da própria modernidade que, como assinalou Marx, faz desmanchar tudo aquilo que é sólido no ar. Ora, a emergência tanto do par esquerda-direita, quanto da consciência histórica que se articula em torno da noção de progresso, são manifestações próprias da modernidade. O quê se deve questionar a partir dessa constatação e do aforismo nietzschiano é que a realização da mudança está para além dos desejos e mesmo das possibilidades tanto da esquerda, quanto da direita. O quê, de fato, lhes cabe é a tentativa de ‘estorvar… represar, recolher’, como assinala Nietzsche em relação aos conservadores,  ou acelerar o movimento das mudanças, a gestão do ritmo segundo o qual o novo irrompe, desgarrando-se do velho.

Não é, portanto, por questão de filigranas terminológicas que questionamos a ideia de futuro, mas por quê nela se cristaliza toda a estrutura argumentativa da exposição. O movimento que impele ao futuro, como o vento que carrega o angelus novus de Walter Benjamin, ao progresso é inexorável. A flecha do tempo foi lançada e não está em questão, por conseguinte, se ela será ou não disparada. O quê se coloca ao alcance dos sujeitos é, antes, o porvir enquanto instante, enquanto borda do tempo que se abre na desmedida onde somos capazes de criar novos mundos, novos valores, onde se dá a produção do comum. Estamos na ponta da seta.

Direita e esquerda, então, se distinguem pelo modo como se posicionam diante da desmedida, o momento mesmo em que o fluxo do tempo transborda no porvir, criando o novo. À criação de novos valores, de novos espaços de democracia, enfim, do comum, como respondem ‘esquerda’ e ‘direita’ em termos ontológicos? A direita opera sempre pela tentativa de controle e a instituição de uma medida que faça canalizar a produção do comum sob o signo da exploração parasitária pelo consórcio estado-mercado. As esquerdas, entretanto, já provaram ser capazes de atitudes distintas diante daquilo que poderíamos chamar de governo do porvir, embora não poucas das suas versões já tenham similarmente à direita, contribuindo para aquilo que Antonio Negri chama de “mercado mundial do transcendentalismo parasitário”. É nesse ponto que, segundo ele, “o futuro se opõe ao porvir; a estatística, ao kairòs; a repetição, à diferença.”²

É nesse sentido, portanto, que podemos falar em ‘esquerda conservadora’ e, dar o passo necessário: perguntar-se pela validade da díade direita-esquerda diante do fracasso não apenas do socialismo real, mas mesmo das experiências democráticas na Europa e na América Latina. Essa pergunta, todavia, não está corretamente endereçada, pois o quê cabe questionar, de fato, não é a substância mesma da divisão, mas seus modos de ser, pois aquilo que está hoje em questão não é a esquerda como essência, o quê sequer existe (e nesse ponto Teixeira da Silva acerta em cheio), mas a experiência concreta das esquerdas. A ontologia política, desde o ponto de vista da esquerda, é, por definição, materialista. E nesse ponto, embora sejam inegáveis os fracassos da esquerda institucional, tampouco é possível não perceber que mais do que o encerramento da própria divisão, o quê acontece na atualidade é a emergência de uma nova esquerda capaz de enfrentar o problema do ritmo do tempo desde uma perspectiva do (auto-)governo do comum e da desmedida e não do controle, do comando capitalista.

O quê, ao fim e ao cabo, importa, a fim de que se possa retirar todas as implicações das atitudes da(s) esquerda(s) diante da teleologia do comum (em nada aparentada a qualquer movimento dialético) é, de fato, o modo pelo qual elas se articulam para fazer com que esse movimento se realize segundo uma perspectiva da organização imanente do poder constituinte, e não da ordem transcendente do poder constituído³, construindo uma democracia cada vez mais multitudinária, participativa e aberta. Diante dos desafios que a contemporaneidade coloca em marcha, ser de esquerda, mais do que nunca, é estar dentro dos movimentos, lá onde se pode produzir diferença qualitativa entre o antes e o depois, lá onde como afirma Negri é possível distinguir entre diferença e repetição.


1. Friedrich Nietzsche, O crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo, IX, § 43, pp. 92-93.


2. Antonio Negri, Kairòs, Alma Venus, Multitudo – nove lições ensinadas a mim mesmo, p. 131.


3. Para a distinção entre ordem e organização: “Pela ordem do ser, da verdade, ou da sociedade, entendo a estrutura imposta como necessária e eterna desde cima, de fora da cena material das forças; utilizo organização, por outro lado, para designar a coordenação e acumulação dos encontros acidentais (no sentido filosófico, i.e., não necessário) e desenvolvimentos desde baixo, do interior do campo imanente de forças. Em outras palavras, não concebo a organização como projeto de desenvolvimento ou como a visão projetada de uma avant-garde, mas sim como uma criação imanente ou a composição de uma relação de consistência e coordenação. Nesse sentido, a organização, a composição de forças criativas, é sempre uma arte.” Cf. Michael Hardt, Gilles Deleuze – um aprendizado em filosofia, p. 17.

Fonte: O lado esquerdo do possível

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