dezembro 21, 2013

"“O neoliberalismo é...”. Entrevista com Premesh Lalu" (IHU)

PICICA: "As primeiras eleições multirraciais na África do Sul colocaram um ponto final a quase 50 anos de apartheid (1948-1994). Com mais de 60% dos votos, o Congresso Nacional Africano (ANC) venceu as eleições e designou Nelson Mandela (foto) como presidente. A grande negociação iniciada na época concentrou-se na modalidade da democracia, na unificação da África do Sul e na desracialização da sociedade. Sobre esse fundamento legal, a Comissão da Verdade e da Reconciliação agiu como uma justiça restaurativa, contra as violações dos direitos humanos. A utopia de Mandela era alcançar a reconciliação nacional: que a África do Sul pertencesse a todos os que ali vivem, negros e brancos.



No entanto, há problemas profundos que o pós-apartheid não conseguiu resolver. A grande negociação tentou “satisfazer a sociedade, mas sem incomodar o capital”, assinalou Premesh Lalu em uma entrevista ao semanário Cash. Convidado pelo Programa de Estudos Sul Global da Universidade de General San Martin (Unsam), o diretor do Centro de Pesquisas em Humanidades da Universidade da Província Ocidental do Cabo fez fortes críticas ao pós-apartheid e advertiu sobre as questões estruturais que ficaram pendentes. Fundamentalmente, a consolidação da racialização no âmbito econômico e a falta de um debate público com vistas a politizar uma grande parte da população, que manifesta uma profunda frustração."


“O neoliberalismo é...”. Entrevista com Premesh Lalu

As primeiras eleições multirraciais na África do Sul colocaram um ponto final a quase 50 anos de apartheid (1948-1994). Com mais de 60% dos votos, o Congresso Nacional Africano (ANC) venceu as eleições e designou Nelson Mandela (foto) como presidente. A grande negociação iniciada na época concentrou-se na modalidade da democracia, na unificação da África do Sul e na desracialização da sociedade. Sobre esse fundamento legal, a Comissão da Verdade e da Reconciliação agiu como uma justiça restaurativa, contra as violações dos direitos humanos. A utopia de Mandela era alcançar a reconciliação nacional: que a África do Sul pertencesse a todos os que ali vivem, negros e brancos.

Fonte: http://bit.ly/19VRZyr
No entanto, há problemas profundos que o pós-apartheid não conseguiu resolver. A grande negociação tentou “satisfazer a sociedade, mas sem incomodar o capital”, assinalou Premesh Lalu em uma entrevista ao semanário Cash. Convidado pelo Programa de Estudos Sul Global da Universidade de General San Martin (Unsam), o diretor do Centro de Pesquisas em Humanidades da Universidade da Província Ocidental do Cabo fez fortes críticas ao pós-apartheid e advertiu sobre as questões estruturais que ficaram pendentes. Fundamentalmente, a consolidação da racialização no âmbito econômico e a falta de um debate público com vistas a politizar uma grande parte da população, que manifesta uma profunda frustração.

A entrevista é de Natalia Aruguete e publicada no jornal argentino Página/12, 15-12-2013. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Que questões acredita que não foram resolvidas na África do Sul, particularmente no âmbito econômico, depois do apartheid?

O apartheid foi pensado como um projeto econômico que definia a distribuição do trabalho em diversos setores da economia. A exploração mineral na África do Sul sempre dependeu do sistema de trabalho migrante. Não apenas da migração das zonas rurais para as urbanas dentro da África do Sul, mas de pessoas que vinham da região Sul da África para trabalhar nas minas de ouro. Houve, além disso, momentos de industrialização massiva e industrialização secundária. Inclusive, a urbanização massiva anterior e posterior à Segunda Guerra Mundial funcionou paralelamente ao desenvolvimento do setor industrial na África do Sul. A agricultura, por sua vez, foi historicamente o âmbito de reivindicação sobre a distribuição do trabalho. Quando se pensa na história da África do Sul, pensa-se em como o apartheid funcionou como mecanismo econômico. No entanto, as lutas contra o apartheid não focaram no problema da economia.

Onde colocaram o foco?

A negociação que aconteceu em 1990 girou em torno da questão do establishment político. O grande debate orientou-se para a Assembleia Constitucional, para a modalidade da democracia e do sistema eleitoral. Estabeleceu-se uma base legal e nesse marco surgiu a Comissão da Verdade e da Reconciliação (que agiu como uma justiça restaurativa, onde testemunharam as pessoas identificadas como vítimas de violações graves dos direitos humanos). Algumas das dificuldades não resolvidas pela Comissão da Verdade e da Reconciliação fazem parte central do pós-apartheid.

A que questões está se referindo?

No marco da negociação não houve lugar para debates sobre a problemática econômica. A questão foi resolvida de maneira separada da grande negociação, e esteve subordinada aos interesses internacionais da exploração mineral.

Por que foi negociada de forma separada?

Porque o ANC (Congresso Nacional Africano) entrou nessa negociação com a convicção de que concretizaria a ideia – inclusive na “Carta da Liberdade” (Freedom Charter) – de que a África do Sul pertence a todos os que ali vivem, negros ou brancos. E se mobilizaram em torno de um projeto político com vistas a desracializar a sociedade.

Em que consistiu este projeto?

Tentaram juntar as diferentes peças do quebra-cabeça, satisfazer a sociedade, mas sem incomodar o capital. Procuraram que a dinâmica política – uma política de desracialização – liderasse a relação entre o Estado e as instituições. Mas o terreno econômico segue completamente racializado.

Que consequências trouxe em termos de equidade econômica e social?

Durante a presidência de (Nelson) Mandela (1994-1999) tentou-se avançar no projeto de empoderamento da economia negra. Isso significava que havia emergido uma nova elite. Mas as discrepâncias eram enormes e a luta por este empoderamento foi visto de uma forma limitada, apontou-se apenas um pequeno setor da classe média negra em ascensão. Por isso, creio que essa tentativa de empoderamento da economia negra foi certamente inefetivo.

Por que acredita que o pós-apartheid esbarrou nessas limitações?

Penso que houve três coisas que não aconteceram depois de 1994. A primeira é que não houve uma negociação entre o Estado e as instituições. O apartheid não foi apenas um projeto de repressão do Estado; também funcionou em nível das instituições: desde as escolas até as universidades passando pelos hospitais; suas infraestruturas multiplicaram-se através de uma ramificação racial.

Qual é a segunda questão não resolvida?

Que a esfera econômica criou um campo de privilégios muito particular. Esperava-se que a recomposição posterior a 1994 iniciasse um processo de desaprendizagem desse privilégio, mas não foi bem assim. Na realidade, o setor econômico consolidou-se e fechou-se em si mesmo.

Em que se evidenciaram os privilégios em nível econômico?

Por exemplo, quando o Estado tentou promover o empoderamento da economia negra, no mercado argumentou-se que se tratava de um racismo às avessas. Há uma terceira questão; durante a luta contra o apartheid, houve vastas redes de movimentos políticos nas cidades, que com o tempo se tornaram cascas burocráticas. Tinham ambições e desejos, e um programa sobre algumas questões econômicas enfrentando cláusulas criadas pelo Estado. Mas não é possível fazer parte de um movimento de massas e passar para o processo de negociação ao mesmo tempo. Esses processos foram se esvaziando durante a tentativa de criar um novo conceito de pertença nacional no marco do projeto do pós-apartheid.

Neoliberalismo

Quão estrutural é a problemática que observa na África do Sul?

Penso em uma estrutura de relações de raça e de política racial. Deste ponto de vista, o neoliberalismo é visto de maneira diferente. Não se trata de uma racionalidade econômica externa que tem efeitos sobre a população. O neoliberalismo é, em si mesmo, um elemento constitutivo que mantém a dinâmica racial das coisas.

Qual a sua opinião sobre o Brics como possível aliança alternativa? Que efeitos teria para a África do Sul?

As iniciativas que vimos através do Brics abarcam muitas formas, mas creio que todas confluem para uma mesma dinâmica.

A que se refere?

No sentido de produzir um tipo de futuro pós-colonial, algo que creio que ainda é um desejo pendente. Proponho uma forma de pensar que se situe fora do tipo de relações de colonialidade. Por isso, proponho, inclusive, pensar o neoliberalismo de maneira diferente: não situado como uma questão política ou econômica, mas como uma problemática racial. Porque creio que o neoliberalismo está tratando de redefinir a biopolítica. O neoliberalismo é o apartheid do futuro. Em nossos países, o neoliberalismo apóia-se em dinâmicas de governo local, segregação étnica e práticas de exclusão do mundo do trabalho que se asssemelham a modelos de décadas passadas.

Acredita que estão dadas as condições na África do Sul para enfrentar este cenário?

No Sul da África tivemos a oportunidade de mudar radicalmente o discurso para a saída do apartheid, mas não o fizemos. Agora a pergunta deve girar em torno do pós-apartheid. Mas não pensando que o primeiro apartheid era uma questão somente sul-africana, mas que foi além. Deve-se estender a discussão à crítica do liberalismo em geral, como uma espécie de teoria da raça e uma tentativa de compor os termos da biopolítica. E creio que é isso que não estamos conseguindo ainda na África do Sul.

Crise mundial

Como a África do Sul enfrentou a crise mundial?

O pressuposto foi lançado recentemente por Pravin Gordon, um ativista que surgiu do ANC que esteve envolvido nas lutas dos anos 1980. Agora é o ministro das Finanças. Ao lado de Gordon estava o ministro anterior das Finanças, Trevor Manuel, que também provém da UDF, um movimento interno de esquerda do ANC. Ambos criaram o Plano Nacional de Desenvolvimento a partir de uma incursão pelo país no qual tentaram ver quais eram as necessidades da África do Sul para ser concebido como um Estado mais democrático, com uma infraestrutura que pudesse sustentar as demandas da população. Os movimentos sindicais, por exemplo, propuseram que esse plano “não era suficiente”. A recessão foi dura e os efeitos vieram tempo depois.

Quais foram os setores mais afetados?

Há uma significativa preocupação com o crescimento do desemprego e o aumento das diferenças entre ricos e pobres. Há poucos anos, foi realizado um estudo no Programa de Pesquisas dos Sindicatos para quantificar quantos anos um operário sul-africano levaria para ganhar o que um CEO sul-africano ganha em um ano. A resposta era ridícula.

Quantos?

Aproximadamente 1.100 anos. O problema é a quantidade de anos de crise acumulada que levamos.

Desde a crise de 2007 ou refere-se aos choques anteriores a esse ano?

Inclusive antes. Os objetivos de ter um crescimento econômico rápido converteram-se em extremamente problemáticos.

Com um alto impacto sobre o mercado de trabalho.

Sim. Nesse sentido, o problema foi o investimento estrangeiro direto, que se converteu em uma grande preocupação para o Estado. Houve debates sobre se o Estado deveria permitir ou não a entrada do Wal-Mart na África do Sul. Essas argumentações prejudicaram a confiança dos investidores. Ao mesmo tempo, há uma enorme insatisfação em diferentes setores da economia. Temos que repensar o que significa para nós o neoliberalismo, especialmente em um lugar como a África do Sul. Não podemos pensá-lo simplesmente a partir de uma racionalidade econômica, mas como uma teoria da raça. E o problema é que isso não foi debatido adequadamente. Esse foi o motivo do início do ANC em 1955: o desejo de desracializar a sociedade, uma visão utópica que significaria gerar uma sociedade baseada na igualdade.


Fonte: Unisinos

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