PICICA: "Dia 29 de novembro é a data de sua morte. Morreu aos 64 anos, em 1999. O Plínio, ou melhor, a obra desse cara, é uma das coisas mais
bonitas que eu já vi. É crua, viva, cheia de sangue e onda batendo na
pedra. Plínio Marcos consegue te levar para vários lugares, fantasia,
notícias da tevê, memórias, cheiros e sabores. Pelo menos é assim que eu
sinto quando um escritor me faz repensar meu tempo, o contemporâneo
transformado em arte."
Uma reportagem maldita (Querô), romance de 1976, de Plínio Marcos
para ler ouvindo:
Aguilar e Banda Performática – Pichadores Anarquistas
- Tem alguma doença?
- Acho que todas.
- É possível. Mas, também pode ser que seja sujeira e fome só. Quem é o responsável por você?
- Ninguém.
Querô e “um porco capado”.
Plínio Marcos apareceu na minha vida quando fui morar em São Paulo, em 2006, casada com o fotógrafo Eduardo Barrox, idealizador dos jornais Café Literário e Jornal da Praça.
Esses jornais eram distribuídos a partir do Espaço Plínio Marcos, uma
barraca de livros e eventos, na Feira de Artes da Praça Benedito
Calixto, em Pinheiros, São Paulo, e que ainda resiste. Até então, eu
nunca tinha ouvido falar no nome dele. O tempo passou, saí da feira, de
São Paulo e organizando mais uma vez uma mudança, me vejo com os braços
cheios de livros, do Plínio.- Acho que todas.
- É possível. Mas, também pode ser que seja sujeira e fome só. Quem é o responsável por você?
- Ninguém.
Querô e “um porco capado”.
Por que ele é o primeiro da lista de escritores brasileiros? Se eu te falar que foi por uma dessas razões intuitivas, você acreditaria? A partir do momento em que decidi fazer esta coluna intercalada por um escritor estrangeiro e outro brasileiro, uma voz (uma delas, pois eu tenho várias dentro da minha cabeça) me sussurrava o nome Plínio Marcos.
Dia 29 de novembro é a data de sua morte. Morreu aos 64 anos, em 1999. O Plínio, ou melhor, a obra desse cara, é uma das coisas mais bonitas que eu já vi. É crua, viva, cheia de sangue e onda batendo na pedra. Plínio Marcos consegue te levar para vários lugares, fantasia, notícias da tevê, memórias, cheiros e sabores. Pelo menos é assim que eu sinto quando um escritor me faz repensar meu tempo, o contemporâneo transformado em arte.
Plínio, um santista, iniciado por Patrícia Galvão, jornalista e escritora – AVE PAGU! – não estudou; foi funileiro, jogador de futebol na juvenil da Portuguesa Santista, serviu na Aeronáutica, foi palhaço Frajola, trabalhou em rádio e televisão. Mas foi o circo, desde os 16 anos, que lhe rendeu a bagagem para o resto da vida, provavelmente – e aqui é uma avaliação particular – a ferramenta que permitiu que ele lidasse com a ditadura e o boicote. Plínio Marcos era um marginal de responsa.
Pagu, em 1958, precisava de alguém pra substituir um ator da peça infantil Pluft, o Fantasminha. O convite era pra estreiar no dia seguinte e Plínio foi. Lá conheceu Pagu e como ele mesmo diz “ficamos amigos de infância”. Nessa época, convivendo com esse grupo de intelectuais, Plínio participou de reuniões em que Geraldo Ferraz, jornalista e marido de Pagu, lia peças teatrais. “A gente ficava ouvindo a Pagu falar e aquilo nos despertava para ler, para estudar.” Tudo isso em Santos (SP).
Mas vamos ao livro. Liguei para um amigo ator e comentei que ia escrever sobre Querô, o primeiro romance do Plínio Marcos. – Romance, mas o Plínio não escreveu romance, só peça de teatro. – Tá, mas a Edições Símbolo imprimiu a obra como romance. Estamos falando da 2ª edição sem data (para o meu desespero). O livro foi publicado em 1976.
Então temos nosso primeiro problema. Querô é um romance ou uma peça de teatro? Ou é uma novela? O livro tem 98 páginas. A gronga toda tá aí. Também tentei falar com algumas pessoas que conviveram com o Plínio, mas as pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer e morrer. E melhor deixar pra lá. Talvez a resposta para a minha pergunta seja essa: o livro impresso e sem mais quás-quás-quás.
Querô é rico pela linguagem da rua, do porto, regional. Você quer saber o que é ser regional a ponto de se tornar universal, então leia o livro, ou melhor, leia Plínio Marcos. A obra desse andarilho, desse loque, é a cara do Brasil – a cara do Brasil dos anos 1950, dos anos 1970 e do século XXI. Não importa quanto tempo passe. Como disse o próprio dramaturgo, ator e camelô, em entrevista para Jô Soares, em 1988, “continua atual não pelo mérito da peça, mas por culpa do país que não evolui. Nunca. Então a peça fica valendo e se continuar, vira um clássico.” E todo mundo ri no programa. Alguém me explica a piada porque, pra mim, essa constatação é uma catástrofe.
Conforme lia o livro, o que passava pela minha cabeça era: será que se alguém escrevesse hoje alguma coisa parecida, será que o falso moralismo, o politicamente correto, censurariam a obra?
“(…) Juro que aquele veado enfeitado, pintado e tudo era a coisa mais escrota que já vi na vida. A bosta da bosta. A coisa mais bosta do mundo. Puta coisa fedida! Porém, entre o medo de ser preso e o veado, fiquei com ele.”
E o veado acaba surrado, caído ensanguentado pelo quarto enfeitado. Querô não xinga só o veado, xinga a mãe, o negro, a polícia, com exceção de Pai Bilu, Gina e a mina do terreiro que ele tava paquerando. De resto, Querô passa a navalha na cara de um por um, sem dó nem piedade.
Provavelmente se existisse – hoje – outro Plínio Marcos, também seria marginal e tivesse que virar camelô, fazer malabares com fogo em semáforos para ganhar a vida. Há de se ter poesia e talento até na miséria! Ou a gente nasce de bunda virada pra Lua ou nasce cagado de arara. Aqui, na fudidolândia, cada um cuida do seu próprio cu senão amanhece cadáver. Cadáver sem dono, alma sem missa, defunto barato, sem ninguém pra estrilar e sem porra nenhuma.
No Youtube você pode ver o ator Plínio Marcos na novela lendária Beto Rockfeller, na extinta TV Tupi. A mesma Tupi que Plínio conta que só pagava o salário de quatro em quatro meses, quase uma merreca. Plínio era um tipo de cara consciente das mazelas de sua época e consciente do que lhe era mais caro: a dignidade. Vivia de maneira coerente com seus princípios, custasse o que custasse. E custou muito.
Falar de Querô ou de qualquer outra obra de Plínio Marcos é falar do Brasil, da política brasileira, da sociedade, da mídia, da miséria bem característica nossa. A miséria espiritual. A entrevista concedida ao Jô Soares é o melhor exemplo. O humorista tem a oportunidade, em vários momentos, de se aprofundar sobre a censura quando Plínio diz “porque hoje a censura não é a Polícia Federal, é a mídia” e quando declara “eu nunca fiz nada pra agradar as pessoas” sobre ficar sem emprego. Muito menos quando fala da produção marginal ignorada pela mídia a ponto de um crítico falar mal de uma peça sem nem mesmo tê-la visto. A PORRA DA MESQUINHARIA HUMANA É O CAOS POÉTICO DESTE PAÍS! E Jô segue com bordões e clichês pobres como “o povo tem fome de cultura”, e tudo que se lembra são as anedotas que todo ser humano tem para contar.
A Revista Status, na edição 33 de 1977, publicou uma entrevista feita por Walter Negrão com o escritor (segue trecho):
Status: Mas muita gente imagina que o Querô, personagem principal e marginal do seu livro Reportagem Maldita, é você mesmo, que aquela é a sua história da época em que foi bandido.
Plínio: É mentira. Eu
era chegado à boêmia. Jogava bola, andava misturado com a curriola.
Parava em cabaré. Mas não era bandido. Muito pelo contrário. Eu queria
ser artista, não queria ser bandido. Eu andava por lá, conhecia todo
mundo, porque ficava no cais de Santos e os cabarés eram no cais, não
queria trabalhar no pesado. No cais que tinha trabalho eu queria ser o
malandro.
De fato, as respostas que queria para Querô estão nas obras desse santo, desse artista marginal, que nunca esperneou contra a condição que a sociedade o impôs. Ele vivia a rua e olhava no olho das pessoas, nunca se esquivou do desconhecido, do medo e do beco escuro. E sim, Querô é um romance premiado pela Associação dos Críticos de São Paulo, você pode confirmar isso pela própria boca do dramaturgo. Como você pode confirmar também a doçura e a educação que permeiam o pensamento burguês quando o assunto é o ser humano. – Sim, senhores, serviremos vinho da melhor qualidade, antes passarei no meu cabeleireiro e farei uma lista de citações e teóricos que podem dialogar com o tema desta peça com um certo peso machista.
Parafraseando Plínio Marcos, ele é um cara que não fez obra, ele resistiu, cercado de intelectuais em um país subdesenvolvido – marginais de classe média querendo ganhar status através da cultura. Glória, glória aos festivais de literatura internacionais em um país em que – até hoje – não vende livro em banca. (Veja só, até a banca de revista está entrando em extinção)
Plínio era pobre, vendeu sua obra como camelô pelas ruas de São Paulo, passou a vida lutando por uma causa justa pelo povo brasileiro. Foi artista na sua totalidade, sem estudo, sem nenhum luxo, sem regalias, sem privilégios. Querô, assim como tantos outros personagens de Plínio Marcos, são imortais porque não é um simulacro. É escrito por um homem que olhou a vida de frente e de peito aberto sem se esconder da morte.
Pagu morreu, Plínio Marcos morreu, Eduardo Barrox morreu, os jornais que me levaram até o Plínio não existem mais, mas Querô vive mais do que nunca nas escolas públicas, na periferia, em cadeias, em esquinas de ruas mal iluminadas. A diferença é que hoje o número de meninos Querô espalhados pelo Brasil é muito maior do que na década de 1970. Constatar a imortalidade desse personagem deveria ser motivo suficiente para um presidente da República declarar estado de calamidade. Mas é claro que, no cu, gaivota que não vão fazer isso. Vai aparecer um monte de cara do gibi pra escrever um monte de história mal-escrita dos Querô perdido nessas quebradas do mundaréu só pra você se sentir mais protegido e vitorioso aí no teu sofá com a morte dolorosa e lenta de tantas crianças e jovens desse país chamado Brasil. Mas se eu fosse você, ô branquelo, se ligava porque os Querô hoje tão tudo armado e, pelo que eu ouvi dizer, eles tão planejando tomar a cidade na calada da noite. Vai quê!
Uma reportagem maldita (Querô) foi publicado em 1976. A edição lida para esta coluna é a 2ª, da Edições Símbolo, São Paulo (SP).
Mais sobre
Plínio Marcos, sítio oficial: http://www.pliniomarcos.com/
Enciclopédia Itaú Cultural, teatro:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biografia&cd_verbete=830
Os palhaços Clerouak e Maria Lulú: https://www.facebook.com/pages/Cia-Clerouak-e-Maria-Lulu/444570355564840
Querô, filme de Carlos Cortêz (2007): http://www.youtube.com/watch?v=ZNxAuy94nDA
Aguilar e Banda Performática: https://www.facebook.com/BandaPerformatica?fref=ts
Pagu: http://www.pagu.com.br/blog/home/
Fonte: Umbigo das Coisas
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