PICICA: "Os companheiros italianos do Commonware publicam mais este
editorial sobre o estado das lutas na situação de crise, precarização
generalizada e agitação social na Europa. A difícil transposição da
composição social para a composição política, seus nódulos políticos e
tarefas organizativas desafiam quem pesquisa nas lutas e para as lutas,
recolocando problemas, hipóteses e apostas. Na conjuntura, o editoral
traça um paralelo elucidador sobre as questões que aparecem seja nas
revoltas da Ucrânia, nos levantes italianos dos “forconi” (pequenos
empreendedores, comerciantes, artesãos, microempresas, agricultores
familiares etc) e nas jornadas brasileiras de junho a outubro. É
sintomático que, nos três casos, parte dos movimentos se apressa em
acusar o caráter reacionário e protofascista das agitações, sem
sondar-lhes tendências positivas por dentro da composição social. Sem
assumir o difícil trabalho de implicação e organização, propriamente
militante e marxiano, capaz de extrapolá-las na direção da autonomia, da
luta de classe, da desejada transformação do estado de coisas. Sempre
segundo o movimento real de antagonismos e reinvenção que já existem,
ainda que em estado disperso ou embrionário. (N.E.)"
O céu em desordem se abateu sobre a terra
14/12/2013
Por Commonware
Por Commonware, em 10/12 (editorial) | Trad. UniNômade Brasil
Os companheiros italianos do Commonware publicam mais este editorial sobre o estado das lutas na situação de crise, precarização generalizada e agitação social na Europa. A difícil transposição da composição social para a composição política, seus nódulos políticos e tarefas organizativas desafiam quem pesquisa nas lutas e para as lutas, recolocando problemas, hipóteses e apostas. Na conjuntura, o editoral traça um paralelo elucidador sobre as questões que aparecem seja nas revoltas da Ucrânia, nos levantes italianos dos “forconi” (pequenos empreendedores, comerciantes, artesãos, microempresas, agricultores familiares etc) e nas jornadas brasileiras de junho a outubro. É sintomático que, nos três casos, parte dos movimentos se apressa em acusar o caráter reacionário e protofascista das agitações, sem sondar-lhes tendências positivas por dentro da composição social. Sem assumir o difícil trabalho de implicação e organização, propriamente militante e marxiano, capaz de extrapolá-las na direção da autonomia, da luta de classe, da desejada transformação do estado de coisas. Sempre segundo o movimento real de antagonismos e reinvenção que já existem, ainda que em estado disperso ou embrionário. (N.E.)
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0. Existe diferença entre a ideologia e uma ordem do discurso. Tentemos determinar historicamente essa abstração, isto é, que ela seja politicamente útil. A divisão entre “vagabundos” e “empreendedores”, feita pela mídia depois dos protestos do 19 de outubro (19-O), tem evidentemente componentes ideológicos, mas o problema se coloca sobre uma base material constituída pelos processos de segmentação, dentro da composição de classe.
Nesse sentido, uma ordem do discurso organiza os léxicos e as retóricas do poder, ao redor de uma situação concreta. Ela é um dispositivo que faz aparecer como neutros o que, na realidade, são interesses parciais, e como irreversíveis o que, na verdade, depende de relações de forças e que, justamente por isso, pode ser transformado. Assim, não se trata simplesmente de revelar a verdade, mas produzi-la.
1. Um dado concreto para começarmos: como foi sublinhado em nosso debate, na Itália a consistência efetiva dos empreendedores é insignificante. Podemos dizer que se trata de um fenômeno marginal. Mas, nesse caso, o significante vale mais do que o significado, ou seja, aquela reproposição de um léxico meritocrático que, em sua forma originária (aquela que foi um problema real na época do movimento da Onda [1]), não pode mais ser recolocada. Não é mais porque, nesse ínterim, aconteceram outros cinco anos de crises, com o aprofundamento — ou melhor, a irreversível estabilização — dos processos de rebaixamento social e precarização, e o crescimento ulterior da desocupação. As contribuições ao debate ressaltam o fim da lenda do self-made man ou woman: “sob os golpes da austerity, o charme calvinista parece definitivamente solapado”. Enquanto o capitalismo cognitivo, — sempre mais parasitário nos processos de extração de valor, — inverteu a acusação de parasitismo, lançando-a sobre os neets [2], isto é, aqueles que, embora sejam marginalizados pelo discurso, produzem a riqueza social cotidianamente capturada.
Ao se esgotar — pelo menos em números relevantes — a capacidade de o sistema compensar o sacrifício e o trabalho duro daqueles que são considerados “meritórios” acontece, apesar disso, um prolongamento dos processos de estratificação. São estratificadas as posições salariais e ocupacionais, criando novas hierarquias. Estratifica-se, para certas direções, sobretudo, a percepção de status ligada às posições salariais e ocupacionais, — entendendo-se por status, aqui, o conjunto de elementos com que se produz hoje a subjetividade capitalista do trabalho vivo. Quantas vezes ouvimos, durante as mobilizações universitárias, pesquisadores afirmarem não poder entrar em greve porque, para eles, a pesquisa não seria um trabalho, mas sim uma “missão”? E quantas vezes ouvimos precários cognitivos aceitarem condições de hiperexploração, e até mesmo trabalhar de graça, apenas para poder fazer “aquilo que gostam”? Ou, ainda, figuras com um alto título acadêmico lamentando-se ser “tratados como faxineiras”? Não daremos bola agora pro fato que, frequentemente, essas “faixineiras” tenham títulos acadêmicos igualmente altos, o ponto aqui consiste em ressaltar que, na explosão da forma-salário tradicional, o reconhecimento do status cada vez mais se torna um tipo de “salário psicológico”, substituto e compensação de uma parte relevante do salário monetário, e de vez em quando o salário inteiro (há alguns anos, na Universidade de Bolonha, anunciaram contratos de docência a zero euro).
Nesse quadro, acontecem ao mesmo tempo processos de estratificação e homogeneização. O que se homogeneíza é tanto a dependência da economia em relação à força de trabalho singular das redes cooperativas, quanto o empobrecimento como um todo, em termos de renda e capacidade. E também quem não é pobre se torna sempre mais exposto ao risco do empobrecimento. Multiplicam-se histórias de dirigentes e pequenos empreendedores (numa primeira fase, também o gerente das finanças) que se precipitam, de um dia para outro, dos paraísos de renda e lucro à condição inferior da desocupação (a Argentina de 2001 ou a Grécia dos últimos anos descrevem esse contexto em expansão). Tornam-se assim comuns, ao saírem de uma condição de excepcionalidade que, no passado, lhes era prestada por filmes e romances. Paralelamente em que se homogeneíza, no entanto, a força de trabalho se estratifica e é despedaçada. Os dispositivos de segmentação da força de trabalho cognitiva (entendendo-se com esse termo um processo global, em que o saber se torna nevrálgico no trabalho vivo e na acumulação capitalista, na exploração e na cooperação) são sempre menos aderentes às competências reconhecidas formalmente. Antes, a própria qualificação [skill] — suposta unidade de medida da força de trabalho cognitiva — se torna totalmente artificial.
Recentemente, numa linha lotada do metrô de Paris, entrou um jovem francês, com menos de 30 anos, pedindo esmolas. Ao fazê-lo, recitou seu próprio currículo: títulos acadêmicos, diplomas, láureas, competências reconhecidas. Na crise, a meritocracia assume uma imagem grotesca e dramática, as qualificações não servem — se é que alguma vez serviram — para demonstrar ser merecedor de caridade. Quando se diz sucateamento do General Intellect não se está usando apenas uma metáfora. Assim, depois que o ex-prefeito de Nova Iorque aconselhou aos jovens que, sem belas expectativas, abandonem os estudos e se dediquem a aprender um ofício, por exemplo aquele hidráulico, Carlo Petrini — símbolo da boa consciência de esquerda — festeja num recente número de L´Expresso, sob o título enfático “Green University”, o crescimento de matrículas na faculdade de agricultura. Finalmente, os jovens retornaram à Mãe Terra! Voltamo-nos, sim, porém, cheios de saberes, conjugando assim tradições e inovações. Pouco vale, para os amantes bipartidários do politicamente correto que, por trás das empresas multinacionais que elogiam o ritmo lento, existam formas de exploração que nada devem em relação àquelas do ritmo rápido. Isso demonstra que saberes e cognitivações são hoje paradigmas e fios condutores também para processos de parcial “reindustrialização“. Não se trata, assim, de um mero retorno à indústria, manufatureira ou agrícola, mas sim a multiplicação de dispositivos de banalização de consciências e dos papéis produtivos funcionais, para aumentar a hierarquização, e dessa maneira realizar exatamente o sucateamento do trabalho cognitivo. Aquele jovem no vagão do metrô parisiense, altamente qualificado e sem salários, nos fala então, sem retórica, sobre a condição do trabalho vivo contemporâneo.
2. Do ponto de vista dos dispositivos de estratificação, é uma tarefa relativamente simples mostrar como eles repousam sobre processos globais de empobrecimento, rebaixamento social e ataque às condições de vida do que numa época era definido como “classe média”. Do ponto de vista político, é muito mais difícil compor, numa direção radicalmente diferente, os sujeitos que na crise aparecem simultaneamente aglutinados e disjuntos. Vimos isso também nas narrativas pós-19-O, desta vez dentro de parte dos movimentos. Se, neste caso, é reproduzida, talvez de modo inconsciente, a retórica que opõe “fracassados” e “criativos”, os primeiros — ocupantes de casas, imigrantes, jovens das periferias — se exprimem de maneira rude e buscam satisfazer suas próprias necessidades sobre o plano local, enquanto os outros se nutrem da tecnopolítica e têm uma vocação imediatamente europeia. Nesse afastamento dos pés, correspondem obviamente específicas figuras do trabalho, que vão desde o proletariado no future ao cognitariado não reconhecido por sua própria capacidade.
Parecem-nos que essas narrativas sejam o fruto envenenado de uma obsessão que, há tempos, aponta o declínio da centralidade do operário-massa e a dificuldade do operário social em encarnar-se nos processos de luta e organização, o que circunda a nossa reflexão e prática política: a pesquisa do sujeito central, ou melhor — e de maneira especular — a ânsia de reiterar que ele não existe mais. Seria hora de abandoná-lo. É verdade, a pesquisa contínua de um sujeito central arrisca não levar adequadamente em conta as mutações do trabalho, subjetivas e não somente “objetivas”. Se, ademais, isso se torna uma operação de laboratório na ausência daquelas lutas ou movimentos concretos, com o que aqueles sujeitos se expressam, arrisca também repropor uma identidade problemática entre composição técnica e política, — como se a segunda fosse uma moldagem superior da primeira. Por outro lado, contudo, devemos estar muito atentos para não cair na armadilha oposta, aquela em que a heterogeneidade do trabalho vivo não permite mais processos de recomposição (que é, conceitual e politicamente, uma coisa totalmente diversa da homogeneização). Esta imagem nos conduz à clássica noite em que todos os gatos são pardos, em que não existem diferenciais de potência entre as lutas e os sujeitos que as encarnam.
Quando propomos “desempacotar” a precariedade, pretendíamos isto: por um lado, evitar uma imagem homogênea do precariado, analisando os dispositivos de segmentação que o atravessam e continuamente o modificam; por outro lado, imaginar como — a partir desta realidade — seja possível destruir esses dispositivos e construir espaços comuns de subjetivação. As hierarquias técnicas da força de trabalho não podem ser combatidas revertendo-as simetricamente em hierarquias políticas (para o que as figuras centrais nos processos de acumulação se tornem automaticamente aquelas centrais nas lutas), nem as abstraindo ideologicamente, imaginando destarte um plano de horizontalidade naturalmente segmentado do capital e, portanto, simplesmente a restaurar-se. As hierarquias políticas, — ou seja, os diferentes potenciais de incidência dentro e contra os processos de valorização capitalista, — não dependem meramente da condição objetiva, mas antes de tudo da força subjetiva, ou melhor: da possibilidade constituinte e de ruptura que os sujeitos coletivos praticam, a partir de suas próprias inscrições produtivas e reprodutivas.
3. Nos últimos meses, a dimensão “espúria” que tivemos a seu tempo identificamos como característica do caráter conflitivo crescente na crise se amplificou. Aquela característica se torna agora bastarda e contraditória: na Ucrânia existem, entre os muitos, os ultranacionalistas que erguem barricadas pela Europa; na Itália os “forconi” — quer dizer, os comerciantes, trabalhadores autônomos dos transportes (ex.: caminhoneiros), pequenos agricultores, artesãos, uma classe média de profissionais e pequenos empreendedores tradicionais ou familiares, todos duramente atingidos pela crise e a dívida, e a quem se juntaram em algumas praças de luta do 9 de Dezembro (9-D): estudantes, precários, jovens das periferias, às vezes imigrantes, talvez com bandeiras da Itália em séquito, enquanto havia bem poucos ou quase nenhum trabalhador subordinado — usam práticas e linguagens dos movimentos para reivindicações frequentemente corporativas e, para alguns, com cheiro reacionário.
As categorias de leitura tradicionais arriscam aqui de ser enganadoras: ou melhor, possam talvez funcionar para descrever a situação, certamente não para transformá-la (sobre a exigência de compreender os ditos “forconi” desde o seu nascimento na Sicília, leia-se o artigo fruto de investigação militante por Giorgio Martinico e Melina Tomasi). Estaremos reassegurados das nossas identidades ao estampar “fascista” à “sublevação” do 9-D, mas a consequência que devemos logicamente trazer é que existe uma fração significativa da classe média socialmente rebaixada ou em vias de empobrecimento, e mais em geral o “homem endividado”, que adota como válvula de escape o reacionarismo. Assim como, a propósito do Movimento Cinco Estrelas, se retinha que os precários de primeira geração encontrassem em bloco no populismo a sua própria forma específica de subjetivação, ou seja, que o niilismo individual fosse o destino inevitável daqueles de segunda geração. Ainda outra vez, retorna a contraposição entre uma elite de “criativos” e uma massa de “escória” (que, aliás, como o 9-D demonstra, usa a rede e as novas tecnologias tão bem e talvez em modo mais eficaz do que os demais). Mas se assim fosse, o que fazer? Refugiar-se defendendo resíduos marginais constitucionais democráticos, cometendo assim o mesmo erro trágico que consentiu ao fascismo impor-se há quase um século?
Se, em vez disso, como cremos, nesta situação não é possível orientar-se com aquelas bússolas enferrujadas, devemos levar em conta que tudo isso provavelmente se trata de fragmentos de sociedade que, sem ter no momento a capacidade de sair de seu próprio ser fragmentado, inicia contudo a afirmar que “não pagaremos caro, não pagaremos tudo”. Não é, de fato, suficiente, e nos falhariam. E os traços inquietantes estão ali, debaixo de nossos olhos: não só a presença de organizações de direita, mas sobretudo o risco que cada fragmento coloque a culpa e desconte sua insatisfação e desejo de mudar de vida sobre o outro, um sobre o outro tendencialmente até aquele que está mais embaixo. Na crise, a composição de classe é mais do que nunca monstruosa. Mas atrás da estética filosófica do conceito, devemos enfrentar a nós mesmos com a aspereza malditamente material do monstro. E dentro de seu corpo, impuro por definição, achar e construir os filhos subjetivos em torno do que amarrar as linhas de uma nova composição.
Gostaríamos que os movimentos viessem armados e prontos, como Iemanjá da cabeça de Xangô; mas se — como estamos tentando fazer passo a passo — nos deparamos com a insurgência no Brasil, evento que muitos se apressaram em celebrar, mas poucos em conhecer em seu desenvolvimento, encontramos possibilidades e problemas comuns. É aqui dentro que o “trabalho da marmota” pode e deve achar seus túneis e percursos. Sobre o 19-O, não estamos simplesmente festejando a sua emergência à luz, mas estamos dizendo, sim, que escavamos na direção certa. A estrada é ainda longa e tortuosa. E, todavia, o nosso esforço deve ser aquele de ver de relance perfis e tendências dos movimentos, que vêm por dentro das lutas do presente. Por exemplo, as cinco jornadas de Gênova nos dizem com clareza que também reivindicações aparentemente de categoria assumem imediatamente um caráter metropolitano, ali onde a “empresarialização” e a financeirização dos serviços (independentemente de seu estatuto jurídico: público ou privado) constituem um aspecto comum da cidade contemporânea. Devemos, portanto, partir das coisas que já existem, enquanto fornecem sinais ainda precários, instáveis e ambíguos.
Existem somente belas palavras? Karim, vanguarda de luta no porto seco de Bolonha, recentemente escreveu uma postagem no Facebook para comentar a foto dos piquetes contínuos que bloqueiam o sistema da logística: “Juro a vocês que o diretor do Arco Spedizioni descarrega e carrega as caixas a -2 graus Celsius, enquanto os trabalhadores se aquecem, fazem um churrasco e escutam a música. Não é isto o comunismo?”Temos verdadeiramente uma grande necessidade de continuar a aprender, com humildade, as extraordinárias lições cotidianas que vêm das lutas e do ódio de classe.
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NOTAS DO TRADUTOR:
[1] – Movimento na Itália contra os partidos, os sindicatos e a política tradicional, na base da composição do que viria a ser o Movimento Cinco Estrelas (Cinque Stelle), que conquistou o primeiro lugar nas últimas eleições parlamentares e fez o atual primeiro-ministro Beppe Grillo.
[2] - Sigla para Not on Employment, Education or Training, isto é: não envolvido em emprego, educação ou treinamento.
Tradutor: Bruno Cava.
Divulgue na rede
Fonte: Universidade Nômade
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