PICICA: "Grande crítica esta, de Pedro Henrique Gomes,
sobre a palma deste ano. A mim também assaltou logo nos primeiros
minutos os insistentes e invasivos closes sobre as atrizes. Aqui, o
crítico soube construir um sentido sobre essa violência, a violência
de que a imagem é capaz de intensificar (sem sublimações). Um filme
bárbaro, árabe no sentido forte da palavra: "Não é de um peso
escatológico que podemos falar sem por um olho no imaginário
cinematográfico. O rosto aparece não com a pretensão de alcançar e
esquadrinhar a dimensão do espírito, como nos closes que Dreyer realiza
em A Paixão de Joana D’arc. A aproximação violenta da face, para
Kechiche, vai resolver outra porção de situações, dramas e conflitos."" (Bruno Cava)
Azul é a Cor Mais Quente
Que sejam os sentimentos que tragam os acontecimentos. Não o contrário. (Robert Bresson)
Azul é a Cor Mais Quente
é um cinema da força. É sobre ser atirado numa história em que não
precisamos acompanhar as coisas desde o início, mas podemos, afinal,
para que a sinceridade da câmera nos tome conta, abandoná-la antes do
fim. Ver os passos libertos de Adèle, no plano último, é resultado de
algo que pacientemente as imagens do filme
vão nos ensinando a experenciar. Mas antes é preciso engolir qualquer
pretensão de caricatura das relações que se estabelecem, deixar de lado a
ideia de “realismo”, de introspecção, de construção de personagem para
corresponder a expectativas particulares. A vida de Adèle, que se
anuncia no título original, é um indício perigoso demais para que nos
enganemos quanto as próprias intenções do filme. Não há nada a
desvendar. Abdellatif Kechiche vai dizer, ou vai mostrar, que cada plano
é um mundo, não pode haver espaço para precipitações. Aí podemos
começar.
É de uma violência assustadora a forma pela qual o espectador é levado a olhar. O rosto de Adèle, mas não só, ocupa quase toda a extensão do plano (do quadro, do écran)
sem dele fugir, ela está ali em sua própria sensibilidade, deixando
vazar coisas que talvez nem saiba que lhe estejam escapando (como pedia a
ideologia bressoniana na relação com o elenco). Isso não ocorre
por arbitrariedades. Não pode haver coisa tal que não assuma essa
potência: ela é toda corporificada na intensidade mesma que Kechiche
quer marcar e acentuar em seu filme. Ora, é assim que ele filma o primeiro encontro,
sintetizado naquela expressão engasgada de Adèle (Adèle Exarchopoulos)
ao ver Emma (Léa Seydoux) pela primeira vez na rua (um suspiro súbito,
uma paralisação do cenário, um espaço onde todo um cinema de contração e
expansão se anuncia). Depois, o encontro numa festa, a longa conversa à
mesa do bar, filmada, é preciso dizer, na maior das honestidades (plano
e contraplano, muitos cortes, detalhes dos rostos salientes, música ao
fundo ditando um ritmo, estabelecendo uma fruição). Azul é a Cor Mais Quente
é erigido não tanto através da extensão dos planos, mas sim da
“largura” das cenas. Nesse sentido, Kechiche é o contrário de um Bruno
Dumont (ou, se esticarmos ainda mais a corda, de um Brisseau), por
exemplo, este mais interessado na exploração contínua dos planos distribuídos em poucos cenários.
Sem a interdição baziniana do
plano, ele recorta esboços da vida particular de sua personagem sem
negar ao cinema uma de suas sangrias: a possibilidade fundamental de
aderir a um gesto estético que pretende encontrar diretamente a pele,
transitar entre a agressividade e o carinho, o susto e o oxigênio que
retorna, depois de purificado, aos pulmões. Também nesse sentido, do
toque, da carne, do sexo, do ritmo impingido de experiências que vemos
estourar na tela, seria
muito pouco reduzir o filme a qualquer especificidade, pior ainda se for
àquela externa ao material bruto que irrompe na tela. É inclusive nos
intervalos que muito pode acontecer, nas elipses que acentuam uma
passagem brusca de um estado a outro. Basta observarmos como aquela Adèle é uma diferença em relação à
de antes. Kechiche opera uma atmosfera repleta de perigos, escolhe os
caminhos mais duros para narrar. Como bom pensador de imagens, só
poderia nos deixar com aquela última imagem assustadora, desoladora, no
entanto bastante vívida, pois parece saber muito bem que a boa história
deve ter o direito de gozar seu próprio fim e pode, também ela,
corromper os orgulhos do espectador, e aí então recomeçar. Neste cinema
só há espaço para o perdão simplesmente por inexistir o pecado possível.
Antes do plano derradeiro, no entanto, há a primeira relação de carne com Emma (e antes ainda um breve encontro
com um rapaz da escola), a descoberta fantasmática do gozo, depois o
corpo destroçado, impassível, plenamente corrigido da vulgaridade social
que lhe querem impor os que a cercam na escola, em casa. Também há esse
corte ferino de um tempo que resvala na tela, que vai transpor a
passagem da menina Adèle do início a certo amadurecimento conforme as
experiências se acumulam. Mas esse processo de maturação é um golpe de
cinema (cirurgicamente cinematográfico), pois é no soluçar da montagem,
com aquelas elipses que ora marcam uma passagem longa de tempo, ora
apenas avançam a ação presente, que Kechiche permite que sua personagem
tenha, enfim, uma vida.
Não é de um peso escatológico que
podemos falar sem por um olho no imaginário cinematográfico. O rosto
aparece não com a pretensão de alcançar e esquadrinhar a dimensão do espírito, como nos closes que Dreyer realiza em A Paixão de Joana D’arc.
A aproximação violenta da face, para Kechiche, vai resolver outra
porção de situações, dramas e conflitos. O rosto é o “lugar” do corpo
que contém todos os sentidos humanos, ali onde não é possível, ou é pelo
menos tanto mais difícil, fugir à verdade. Apesar do caráter
menos teológico, a câmera de Kechiche funciona como uma espécie de
confessionário, mas não aquele que mostra ou que revela um absurdo, mas
que deixa mostrar – deixa ver, a ver. A isso Adèle reage, decerto
instintivamente, como o romantismo reagiu aos neoclássicos a certa
altura do século XIX: esmagada a face e, depois dela, o corpo, resta
então deixar a imagem soltar o seu grito. O corpo, ou a política dele:
“tema” desde sempre cinematográfico, anterior inclusive a própria
invenção e posterior consolidação do aparelho (ou seja, do cinematógrafo
lumieriano), maldito objeto para onde nossos olhares sempre tornaram a vingar o desejo – na escultura, na pintura, na fotografia, depois no cinema.
É interessante notar que a curta fase da
vida de Adèle que vemos é precisamente uma síntese de experiências,
choques, traições, desejos, hesitações, silêncios, passos em falso,
portanto de movimentos delicados, tensões acentuadas, mas que são
entrecortados pela montagem que de invisível nada tem. Mas voltemos ao
rosto. Essa é, e não poderia deixar de ser, uma polêmica de ordem
estética, ética: um filme fundado no rosto é sempre uma discussão sobre a
violência da imagem, de sua natureza, de sua revelação.
(La Vie d’Adele, França, 2013) De
Abdellatif Kechiche. Com Léa Seydoux, Adèle Exarchopoulos, Salim
Kechiouche, Aurélien Recoing, Catherine Salée, Benjamin Siksou, Mona
Walravens, Alma Jodorowsky.
Fonte: Tudo é Crítica
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