PICICA: "É muito importante relembrar o seguinte ponto: as
UPPs são apenas parte de um problema maior, que toma as estratégias de
“segurança” interna e externa às fronteiras nacionais do país como
frente pioneira de expansão do “Brasil-potência”. A solução militar para
os tensionamentos sócioespaciais das metrópoles brasileiras, bem como a
crescente presença brasileira em “missões de paz” no exterior, partem
de um mesmo exercício: a construção de um “inimigo” comum entre as
agendas da “segurança nacional” e da “segurança pública”. Tal exercício
funciona como uma espécie de “ligadura” entre a geopolítica em sua face
interna e externa, transformando as cidades brasileiras em verdadeiros
“laboratórios” para manobras militares a serem usadas no exterior e
vice-versa. Chamo atenção, em primeiro lugar, para o uso crescente das
FAs nas chamadas operações de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO). Em
2008, o Ministério da Defesa publicou a Estratégia Nacional de Defesa –
documento responsável por delinear, em linhas gerais, o planejamento
das FAs para os próximos anos. Através dele, o governo versa sobre uma
série de pontos, entre os quais sua intenção em reforçar o uso dos
quadros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica em operações de
contra-insurgência interna. É preocupante o formato organizativo que
algumas divisões militares brasileiras assumem – como a 11ª Brigada de
Infantaria Leve (GLO) de Campinas. Contando com 7.000 homens, a brigada é
atualmente a principal unidade operacional militar que está sendo
preparada para combater, por incrível que pareça, os próprios
brasileiros! Além dela, chamo a atenção para a formação de grupamentos
policiais especiais utilizados em diferentes situações, que espelham
iniciativas de contra-insurgência operadas fora das fronteiras
brasileiras. Além das UPPs, temos hoje a Força Nacional de Segurança
Pública (FNSP), que atua como uma polícia nacional responsável pela
ocupação militar preventiva de territórios estratégicos para o Estado.
Seu uso recente, a título de exemplo, como força auxiliar na realização
de “megaeventos” como a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da
Paz, ou ainda para garantir o prosseguimento de vultuosas obras de
infra-estrutura – como a da usina de Belo Monte, não são fatos
absolutamente gratuitos. É possível, ademais, observar também a
construção de novos dispositivos jurídico-legais que não só permitem
legalmente a operacionalização de tais ações, como a própria punição
para crimes até então inexistentes no código penal. A recente aprovação
no congresso da lei que tipica o crime de “terrorismo” é sintomática
neste sentido.
Por tudo isso colocado acima, seria possível falarmos
então em uma desmilitarização das polícias, ou mesmo da “segurança
pública” no Brasil? Até que ponto tal crítica – ainda que legítima,
encontra-se de certa forma mal colocada, dado o papel importantíssimo
que a militarização desempenha nos interesses geopolíticos internos e
externos brasileiros? No tocante a este tema, não se pode perder de
vista os sérios limites impostos – no contexto de expansão do
capitalismo (semi) periférico brasileiro – em desmilitarizar um Estado
onde a própria militarização é uma das condições fundamentais para sua
realização enquanto projeto (sub)imperialista de “potência”. Cabe aqui
por fim uma pergunta inevitável: quem seriam então os “insurgentes”
ou, ao olhos do Estado e das forças policiais, quem seriam os “inimigos”
do “Brasil-potência” do século XXI? No campo mas sobretudo nas
cidades, a resposta para esta pergunta parece tornar-se cada vez mais
clara, principalmente para os espíritos mais atentos, capazes de
perceber para onde vão os tiros de chumbo ou de borracha desferidos pelo
“desenvolvimento”."
UPPs: breves notas sobre geopolítica e o falso problema da militarização das polícias
Texto de Eduardo Rodrigues (professor, mestre
em Geografia e militante do Grupo de Educação Popular (GEP) do Morro da
Providência/RJ)
Muito tem se falado e discutido até agora sobre o
programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro.
Após cinco anos da chamada “pacificação” de favelas, o discurso (quase)
hegemônico de apoio ao programa parece enfim encontrar sinais de
desgaste. Motivos para isso não faltam. O caso do pedreiro Amarildo de
Souza – assassinado dentro da Rocinha em julho deste ano, foi somente
uma em meio às inúmeras denúncias de brutalidade e corrupção praticadas
pelos policiais das UPPs. Não obstante, um dos principais objetivos do
programa – pautado pela retomada do controle territorial estatal das
favelas, vem sendo colocado sistematicamente em xeque pela permanência
não só do comércio varejista de drogas nesses locais, como também pelo
próprio controle territorial armado operado explicitamente por
traficantes em áreas supostamente “pacificadas”. Além destes fatores,
estudos recentes trazem alguns outros elementos importantíssimos para o
debate, ao demonstrar como a “pacificação” funciona como um dos pilares
do atual modelo “empreendedorista” de gestão do espaço urbano carioca.
Seja através da conjugação de processos como especulação imobiliária,
gentrificação ou regularização autoritária da economia das favelas, ou
mesmo pela sua dimensão enquanto controle disciplinar e biopolítico dos
favelados, as UPPs condensam processos que vão muito além de um mero
mecanismo de “segurança” para a realização da Copa de 2014 e dos Jogos
Olímpicos de 2016. Se os “megaventos” criaram condições mais propícias
para a operacionalização do projeto, eles, de forma alguma, encerram os
objetivos da “paz”.
Este pequeno texto, no entanto, não objetiva
debruçar-se sobre os pontos expostos acima. Gostaria, por outro lado, de
apontar, em linhas gerais, um outro problema, que diz respeito aos
moldes cada vez mais geopolíticos que a “segurança” das cidades
vêm adquirindo. Dentro deste quadro, as UPPs são apenas uma parte de um
problema consideravelmente maior, que articula processos que se operam
em escalas para além do território das favelas já ocupadas pela polícia.
Já há algumas décadas, percebemos um movimento de
crescente alinhamento entre as preocupações no campo da “segurança
nacional” e na “segurança pública” em diversos países, sobretudo no
Brasil. Desde o período da ditadura civil-militar brasileira (1964 –
1985), questões ligadas ao corolário da “segurança nacional” encontram
desdobramentos explícitos em questões ligadas à “segurança” das cidades.
A maneira de operar das Forças Armadas (FAs) – pautada pela delimitação
clara de um “inimigo” a ser combatido, sempre apareceu como um espectro
verde-oliva a rondar o modus operandi das forças policiais em
nosso país. Mesmo não sendo uma invenção da ditadura, os militares
aprofundaram o processo de militarização da polícia, ao transformar cada
batalhão policial num braço da repressão política aos “comunistas
subversivos” da guerrilha rural e principalmente urbana. Nunca é demais
lembrar que durante os períodos de maior agudização do regime – através
da promulgação do AI-5 em 1968 e da Lei de Segurança Nacional em 1969, a
articulação entre as facetas interna e externa da “segurança” serviu
não só como base jurídico-legal para desbaratar os grupos da guerrilha
brasileira, como também – já nesta época – para criminalizar e prender
diversos militantes ligados ao movimento de resistência às remoções de
favelas cariocas. Seja no âmbito das FAs ou das próprias forças
policiais brasileiras, a categoria “inimigo” sempre foi usada como
mecanismo calibrado por uma ponderação de cunho ideológico, que está
sujeita a estereótipos e preconceitos sobre aquilo que seria o
comportamento desejável/indesejável de determinados indivíduos. Tal fato
é um dispositivo poderosíssimo a ser usado para justificar não só o uso
e “abuso” das FAs, como também das próprias forças policiais em nosso
cotidiano.
De qualquer forma, a ideia de “inimigo” ligado ao
ideário do Comunismo – tão comum no discurso e nas estratégias de
contra-insurgência dos militares durante o período da ditadura, vai
passar gradativamente para o lado da criminalidade ordinária nas décadas
seguintes. Não por acaso, as favelas passaram a ser o local, ou melhor,
o espaço habitado pelos novos “inimigos” a serem combatidos pelas
forças policiais. Se antes siglas como VPR, VAR-Palmares, ALN ou MR-8
faziam parte do horizonte de preocupações das agências de inteligência
nacional, novas siglas como CV, ADA, TCP ou PCC irão assumir essa
posição gradualmente. Se no passado as ações da polícia se centravam na
descoberta e destruição de “aparelhos” da guerrilha, agora elas serão
direcionadas para a violação de barracos nas favelas em busca de
traficantes de drogas. Não é exagero afirmar que na visão das atuais
instituições policiais, que ainda se encontram imbuídas do espírito da
antiga Doutrina da Segurança Nacional, cada favela se transforme em um
novo e potencial “Araguaia”. E, não obstante, o crescente uso das
próprias FAs em operações em favelas é outro sintoma cabal do problema
exposto acima – inclusive como forças de apoio à polícia no atual
processo de “pacificação”.
Nos dias de hoje, quando encontramos um país
atravessado por Copa, Olimpíadas, Bolsa-Família, “nova classe média” e
pela retomada de um projeto (sub)imperialista tupiniquim, as coisas são,
todavia, significativamente mais complexas. A militarização das favelas
cariocas não pode ser tomada como um processo descolado do atual
contexto político-econômico experimentado pelo Brasil e pelo Rio, nem
muito menos se limitar aos inúmeros (e legítimos) problemas que isso
traz para a vida de todos os favelados.
O programa das UPPs, é importante sublinhar, se
configura hoje como um importante mecanismo no campo da “segurança”,
articulado com o atual modelo de desenvolvimento escolhido pelo Brasil e
desdobrado no Rio de Janeiro do petróleo e dos “megaeventos”. Uma
leitura possível do processo de “pacificação” aponta para a seguinte
premissa: a militarização das polícias, ou mesmo da “segurança pública” num sentido mais amplo, torna-se hoje condição necessária para garantir o funcionamento do atual modelo de desenvolvimento sócio-econômico-cultural do país. Em
outras palavras, militarizar e policializar são verbos que transitam
até o seara da “integração” dos pobres (e não só dos pobres
brasileiros!) ao corolário do “Brasil-potência”, ou seja, a de um Brasil
que cresce economicamente com base em vultuosos investimentos em
infraestrutura e em mecanismos de ampliação do crédito/consumo,
alimentado pelo aumento da produção de bens industriais, agrícolas e do
volume das exportações para todo o mundo.
Deriva daí um problema fundamentalmente geopolítico:
a tentativa de inserção diferenciada do Brasil na atual ordem
capitalista mundial. Este movimento possui desdobramentos claros no
campo da “segurança” em duas frentes complementares. Em primeiro lugar,
no plano interno, a ocupação policial permanente das favelas garante o
funcionamento de diferentes processos como a formalização econômica e
fundiária dos moradores, cobrança de serviços básicos como água e luz,
como também a transformação dos morros na nova fronteira de expansão de
bens e serviços não só do capital privado e imobliário, como de novas
subjetividades, de um novo ethos para uma favela
geohistoricamente negada enquanto parte integrante do tecido urbano
carioca. Militarizar aqui significa garantir condições suficientes de
captura e transformação violenta do favelado enquanto indivíduo mais
“útil”, ou mesmo “civilizado” pela pedagogia do capital. Já no plano
externo, as UPPs abrem caminho para o desenvolvimento de novas
ferramentas de controle a serviço das ambições (sub)imperialistas
brasileiras, em especial na sua área de influência geopolítica por
excelência: o Atlântico Sul. O Brasil hoje participa direta e
indiretamente de inúmeras “missões de paz” nesta região, com destaque
para a campanha no Haiti operada desde 2004 (MINUSTAH). Junto com as
FAs, percebe-se também um movimento paralelo de expansão da influência
brasileira nesta região através de suas transnacionais como a Petrobrás,
Odebrecht, Vale, Aracruz celulose, entre outras. É
preciso ter em mente que qualquer projeto geopolítico de dominação não
pode prescindir do uso das FAs. E o caso brasileiro, por sua vez, não
foge a regra: entre 2003 e 2012, os gastos do governo federal no
orçamento para “Defesa” obtiveram um aumento de 55,9%, enquanto no
período anterior, compreendido entre 1995 e 2002, o aumento foi de 29,3%. Neste
contexto de reaparelhamento das FAs, oficializou-se, desde julho de
2013, uma parceria entre o governo haitiano e o governo fluminense para
“exportar” o modelo de “pacificação” de favelas para aquele país. A
ideia é substituir gradualmente os militares pelo policiamento de
proximidade à la brasileira, nos mesmos moldes das favelas daqui.
Além disso, em abril do mesmo ano, a própria ONU já havia sinalizado a
intenção de levar a experiência brasileira do Haiti para a República
Democrática do Congo. As Nações Unidas convidaram o general de divisão
brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz (chefe da MINUSTAH entre 2007 e
2009), para comandar uma nova “missão de paz” no Congo: a MONUSCO.
Nunca é demais lembrar que parte do contingente das FAs utilizado na
fase inicial de “pacificação” do Complexo do Alemão, em 2010, havia
participado previamente da MINUSTAH. A justificativa para o uso dos
militares na ocasião era aproveitar a experiência das FAs em manobras
militares neste formato, uma vez que, no Haiti, os fuzileiros navais
brasileiros realizaram inúmeras ações em favelas. A UPP, neste sentido,
funciona também como mais um dos nós que reforçam o entrelaçamento entre
as estratégias e preocupações nos campos da “segurança nacional” e da
“segurança pública” dos Estados.
É muito importante relembrar o seguinte ponto: as
UPPs são apenas parte de um problema maior, que toma as estratégias de
“segurança” interna e externa às fronteiras nacionais do país como
frente pioneira de expansão do “Brasil-potência”. A solução militar para
os tensionamentos sócioespaciais das metrópoles brasileiras, bem como a
crescente presença brasileira em “missões de paz” no exterior, partem
de um mesmo exercício: a construção de um “inimigo” comum entre as
agendas da “segurança nacional” e da “segurança pública”. Tal exercício
funciona como uma espécie de “ligadura” entre a geopolítica em sua face
interna e externa, transformando as cidades brasileiras em verdadeiros
“laboratórios” para manobras militares a serem usadas no exterior e
vice-versa. Chamo atenção, em primeiro lugar, para o uso crescente das
FAs nas chamadas operações de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO). Em
2008, o Ministério da Defesa publicou a Estratégia Nacional de Defesa –
documento responsável por delinear, em linhas gerais, o planejamento
das FAs para os próximos anos. Através dele, o governo versa sobre uma
série de pontos, entre os quais sua intenção em reforçar o uso dos
quadros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica em operações de
contra-insurgência interna. É preocupante o formato organizativo que
algumas divisões militares brasileiras assumem – como a 11ª Brigada de
Infantaria Leve (GLO) de Campinas. Contando com 7.000 homens, a brigada é
atualmente a principal unidade operacional militar que está sendo
preparada para combater, por incrível que pareça, os próprios
brasileiros! Além dela, chamo a atenção para a formação de grupamentos
policiais especiais utilizados em diferentes situações, que espelham
iniciativas de contra-insurgência operadas fora das fronteiras
brasileiras. Além das UPPs, temos hoje a Força Nacional de Segurança
Pública (FNSP), que atua como uma polícia nacional responsável pela
ocupação militar preventiva de territórios estratégicos para o Estado.
Seu uso recente, a título de exemplo, como força auxiliar na realização
de “megaeventos” como a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da
Paz, ou ainda para garantir o prosseguimento de vultuosas obras de
infra-estrutura – como a da usina de Belo Monte, não são fatos
absolutamente gratuitos. É possível, ademais, observar também a
construção de novos dispositivos jurídico-legais que não só permitem
legalmente a operacionalização de tais ações, como a própria punição
para crimes até então inexistentes no código penal. A recente aprovação
no congresso da lei que tipica o crime de “terrorismo” é sintomática
neste sentido.
Por tudo isso colocado acima, seria possível falarmos
então em uma desmilitarização das polícias, ou mesmo da “segurança
pública” no Brasil? Até que ponto tal crítica – ainda que legítima,
encontra-se de certa forma mal colocada, dado o papel importantíssimo
que a militarização desempenha nos interesses geopolíticos internos e
externos brasileiros? No tocante a este tema, não se pode perder de
vista os sérios limites impostos – no contexto de expansão do
capitalismo (semi) periférico brasileiro – em desmilitarizar um Estado
onde a própria militarização é uma das condições fundamentais para sua
realização enquanto projeto (sub)imperialista de “potência”. Cabe aqui
por fim uma pergunta inevitável: quem seriam então os “insurgentes”
ou, ao olhos do Estado e das forças policiais, quem seriam os “inimigos”
do “Brasil-potência” do século XXI? No campo mas sobretudo nas
cidades, a resposta para esta pergunta parece tornar-se cada vez mais
clara, principalmente para os espíritos mais atentos, capazes de
perceber para onde vão os tiros de chumbo ou de borracha desferidos pelo
“desenvolvimento”.
Como referência sobre o problema aqui trabalhado,
indico dois excelentes artigos – com um formato mais acadêmico, que
complementam e aprofundam alguns pontos deste pequeno texto informativo:
Fonte: Capitalismo em desencanto
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