dezembro 11, 2013

"68, noves fora zero?", por Ivone Benedetti

PICICA: "O buraco é mais fundo: muitas das propostas de 68 ou não foram entendidas ou foram cooptadas pelos oponentes e adaptadas aos seus interesses. Mas nem sempre isso fica muito claro.

Em nível mais infraestrutural alguns autores têm se debruçado sobre essa questão, como Boltanski e Chiapello em Novo espírito do capitalismo (Editora WMF Martins Fontes, trad. minha). Para eles, as críticas que aquela geração fez ao sistema capitalista acabaram sendo açambarcadas pelo próprio capital. Isto porque, segundo dizem esses autores, eram críticas “artísticas”, incapazes de ir às bases profundas do sistema. Ou, nas palavras de Anselm Jappe (Crédito à morte, Hedra, S.Paulo, 2013, trad. Robson J.F. de Oliveira), “na maior parte dos casos, a contestação cultural considerava como traços essenciais da sociedade capitalista aquilo que não passava de elementos arcaicos ou anacrônicos herdados de suas fases anteriores” (elementos arcaicos ou anacrônicos que interessava ao próprio capital eliminar). Por exemplo: o anseio por desvinculação, desapego e liberdade, enraizando-se nas mentalidades, pôde ser “atendido” mais facilmente pelo capital na forma de falta de vínculos estreitos entre empregador e empregado, de substituição da perspectiva de carreira e ascensão pela estrutura de “projetos” (findos os quais, o trabalhador fica “disponível” para outro projeto), de formação de redes e de terceirização, com muito maior campo para o corte de custos nas folhas de pagamento, enfraquecimento dos sindicatos, desarticulação dos movimentos reivindicatórios, aumento do desemprego (claro que agravado pela recente crise), facilidade de contratação temporária etc. De quem o maior benefício?" 

68, noves fora zero?


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Este texto é um pequeno inventário de espantos com os desdobramentos pelos quais passaram algumas ideias que, se não surgiram em 1968, pelo menos ganharam corpo e alma nos movimentos libertários que varreram o mundo naquele ano.

Sexo e prostituição

Em 30 de outubro de 2013, Anne Zelensky (Presidente da Liga do direito das mulheres), em artigo publicado no jornal Le Monde, lançava um alerta público contra um manifesto que ainda nem havia sido publicado: sua publicação ocorreria em outro periódico, chamado Causeur, no mês de novembro. O slogan desse manifesto seria (e foi) touche pas à ma pute, que poderia ser traduzido como não toque na minha puta, ou, mais idiomaticamente, tire a mão da minha puta. Esse título foi calcado no slogan de um movimento criado em 1984, o SOS Racisme, que diz touche pas à mon pote (gravado na palma de uma mão amarela), cuja tradução, na mesma linha da anterior, poderia ser tire a mão do meu chapa. Rompido o sigilo, estragada a surpresa, Causeur adiantou a referida publicação para 31 de outubro, já que o manifesto podia ser lido em todos os meios de comunicação, menos nele, onde diziam que estaria só depois de alguns dias. Esse tal manifesto foi assinado por 343 autodenominados salauds, masculino de salopes, numa paródia de outro manifesto bem anterior, publicado em 1971, na esteira dos movimentos libertários de 1968, com a assinatura de 343 mulheres (algumas das quais muito ilustres) que assim se autodenominavam: exigiam elas a descriminalização do aborto, confessando já terem praticado algum na vida. Salope é palavra que pode ter muitas traduções, mas nesse contexto é possível usar vadia, termo já bastante conhecido e corrente em diversos movimentos sociais, com conotação pseudoautodepreciativa. Já salaud, originalmente porco, no sentido de sujo, estaria hoje mais para o nosso sem-vergonha, obsceno, ou quem sabe escroto, safado, cafajeste.

Pois bem, qual o objetivo do manifesto dos salauds? O objetivo é contestar um projeto de lei (aprovado, aliás, em 04/12/2013) que deverá multar os clientes de prostitutas, com a finalidade de coibir a prostituição. Os 343 signatários defendem o direito de frequentá-las abertamente, sem restrições nem punições.

No artigo, Anne Zelensky revolta-se com os salauds. Diz ela, entre outras coisas (e é isso o que me interessa aqui): que filiação pode haver entre nós, as “salopes”, que reivindicávamos a liberdade proibida de dispor de nosso corpo, e esses “salauds” que reivindicam hoje a liberdade de dispor, contra remuneração e sem penalidade, do corpo de algumas mulheres? No primeiro caso, trata-se de eliminar uma opressão; no segundo, de trazê-la de volta. E isso em nome do mesmo conceito: liberdade.

Há muita coisa pitoresca e interessante nesse caso do manifesto (já nem digo da lei, no mínimo esdrúxula, numa época em que tantas mulheres se valem de garotos de programa para preencherem seus vazios): pitoresco é, por exemplo, que, em vez de combaterem o projeto de lei pelo que ele teria de inócuo e inútil (os brasileiros teriam feito isso, sabedores de que uma lei dessas nunca pegaria), os franceses esperneiam em nome de uma noção universal: o direito à liberdade.

Mas volto ao argumento de Zelensky. Segundo ela, as salopes queriam ter a liberdade de usar o próprio corpo como bem entendessem, ao passo que os salauds de hoje querem ter a liberdade de usar o corpo alheio como bem entendem. Mas não é isso o que eles estão dizendo. O espírito do que dizem é que querem usar seu próprio corpo (seus “prazeres e desejos”) como bem entendem, e, se as parceiras fizerem sexo pago de livre e espontânea vontade, qual o problema? Dizem também: amamos a liberdade, a literatura e a intimidade. E quando o Estado se mete em nosso sexo, as três estão em perigo (note-se que, simbolicamente, eles falam o tempo todo em nome de coisas elevadas). Afirmam que essa lei é uma repressão disfarçada de luta feminista.

Portanto, querendo “usar o próprio corpo” como bem entendem, salopes e salauds se insurgem contra aquilo que impeça esse “uso”, e tudo o que impede alguém de fazer o que bem entende se chama repressão. Esse é o ponto comum dos dois manifestos, é isso o que configura o segundo como paródia do primeiro, confirmando a famosa frase de Marx, aquela de que a história se repete… etc. etc.
Passando por cima de todas as dificuldades implicadas na oposição entre próprio e alheio nesse caso (por exemplo, se a argumentação dos salauds esbarra no fato de que o livre uso do próprio corpo inclui a participação do corpo alheio contra pagamento, a das salopes deixa de considerar que, em última análise, a liberdade sobre o corpo próprio implica a exclusão de um corpo alheio, para não dizer estranho: o do feto), e não tencionando discutir no mérito o aborto e a prostituição, quero deixar claro que meu intuito é analisar os pontos fracos das argumentações e as contorções necessárias para, em defesa dos próprios interesses, arregimentar um advogado poderoso: a noção unanimemente positiva, pelo menos no Ocidente, de liberdade.

Os defensores do livre trânsito entre prostitutas afirmam que os movimentos feministas se tornaram repressivos. E essa tese é endossada por (quem diria?) uma mulher, Elisabeth Lévy (redatora-chefe do jornal Causeur), que, num artigo de 11 de novembro publicado também no jornal Le Monde, diz, mais ou menos, que a luta feminista, na origem alegre e descontraída, agora ficou beata e puritana. Concluo do que ela diz que, se o conceito de luta feminista resvalou para a repressão santarrona, não é de espantar que a palavra liberdade tenha virado bandeira do lado contrário, ou seja, dos machos, para não dizer machistas.

Terreno escorregadio! Nele, uma coisa pode derrapar para a direita ou para a esquerda, incessantemente. Em outras palavras, as noções morais, éticas, políticas e congêneres muitas vezes estão ao mesmo tempo em vários pontos de seu espectro de significações, dependendo de quem as use. O que permanece fixo é a palavra, é o nome, o substantivo que designa a noção ou o adjetivo que qualifica uma coisa. Já a coisa ou a noção só na aparência é a mesma. Se a noção, escorregando, mudasse também de nome, tudo pareceria normal: um nome diferente mostraria que teria havido uma mudança. Mas nem sempre é isso o que acontece. Em geral, um mesmo nome sobrevive a toda a sequência de mudanças e escorregões pelo qual a ideia passa, de modo que após um percurso de maior ou menor duração todos soletram o mesmo nome, mas declinam ideias diferentes, sem perceberem que, na queda, a coisa se emborcou. A noção de liberdade é típica.

O caso dos manifestos de salauds e salopes deixa bem claro que o trajeto desse conceito de liberdade começou por volta de 1968 e desemboca agora num pântano de contradições e paradoxos, a tal ponto que as revolucionárias de antanho são hoje qualificadas de puritanas, santarronas e repressivas.

Aí, três hipóteses: ou as ideias defendidas em 68 não foram bem entendidas, ou foram abocanhadas pelos opositores para proveito próprio ou suas defensoras de fato mudaram e se tornaram “reacionárias”. Não me parece fácil a solução. Talvez as três hipóteses sejam verdadeiras. Uma coisa é inegável: havia em 1968 uma expectativa difusa de que o sexo livre acabaria com o sexo pago. Pura ilusão de quem não pensa o ser humano e a sociedade de classes em todas as suas dimensões. Como se vê hoje, o sexo livre não só não aboliu a prostituição como convive com ela em perfeita promiscuidade. Por outro lado, a facilidade com que foi adotada a ideia de liberação do sexo só pode mostrar que no fim da década de 60 as mentalidades estavam prontas para acatá-la, e o que se deu não foi exatamente uma revolução, mas a superação de um momento histórico que continha em si dados já obsoletos, que seriam superados de qualquer modo. Hoje o status quo assimilou com naturalidade essa liberação, fazendo dela mais uma de suas mercadorias. A ponto de se poder falar em defesa da prostituição em nome da liberdade individual de usá-la e praticá-la. Interessante embate de duas visões que o tempo inverteu especularmente.

Ainda a liberdade

Sempre existe a possibilidade de se abrir um abismo entre as ideias e sua expressão, graças às ambiguidades do discurso. Exemplo interessante é o da frase É proibido proibir, nascida também na França por volta de 1968. Consta que teria sido criação do ator Jean Yanne, com intuitos mais ou menos cômicos: no original, Il est interdit d’interdire. Fora do contexto irônico em que Jean Yanne costumava circular, a frase foi pichada nos muros de 68 e se tornou um slogan daquela geração libertária. Frase manhosa, foi levada a sério pelos jovens de então, que acharam bonito proibir os outros de proibir. De proibir o quê? A falta de objeto dá a entender que o uso do verbo é absoluto, ou seja, estigmatiza-se o simples ato de proibir. Mas se o ato de proibir é estigmatizado, por que não seria malvisto o ato de proibir proibir? A intenção no caso seria obter um positivo da justaposição de dois negativos. Por aqui deu certo.

Enfim, as interpretações são tão ricas que — quase posso jurar — Jean Yanne teve mesmo o intuito de tirar proveito das ambiguidades que a frase admite. Aí algumas observações, não originais decerto. Em primeiro lugar, em quem era seduzido pela ideia de proibir de proibir parece estranha a sedução, hoje, de proibir alguma coisa, ainda que essa coisa seja a prostituição. Mas, como proibir qualquer coisa já é demonstrar ou reivindicar autoridade, mesmo que se proíba proibir, talvez aí se encontre um fio invisível a ligar o contestador de 68 a quem hoje deseja uma lei que proíba a prostituição pelo meio torto de multar os seus usuários. Não é de se descartar essa possibilidade, ou seja, a do autoritarismo embutido e enrustido naqueles libertários. Mas talvez o pessoal de 68, que burro não era, captasse esse paradoxo e o pusesse na conta da ironia. Em segundo lugar, quem proibir de proibir também poderá, como extensão, proibir de proibir proibir… e assim por diante. A autorreferencialidade aí é uma armadilha.

Por aqui se fez uma canção com esse refrão. De resto, ele servia como luva à realidade da arte brasileira, esmagada pela censura, quando o único modo de dizer sim era dizer não ao não.

Virgindade

Quando a geração de 68 chutou o pau da barraca, tinha a intenção de demolir uma sociedade que não lhe permitia a expansão da libido. O amor livre, mais que praticado até, era reivindicado. Sua premissa era a destruição do tabu da virgindade, e se ele demorava tanto a cair, então que se arrombassem as portas: as mulheres começaram a ir para a cama quando e com quem bem entendessem, e as famílias que aceitassem. Naquele momento era constante nas conversas femininas a discussão dos limites que separariam o amor livre da promiscuidade. Para muitas estava claro que a expressão amor livre implica amor, que promiscuidade era outra coisa. Para algumas não era fácil a distinção. Já então começou a haver promiscuidade com o nome de amor livre. E, embora parecesse tão difícil derrubar o tabu da virgindade, houve um momento em que ele ruiu. As famílias tinham dado a impressão de ser mais irredutíveis do que de fato eram, de modo que já na década de 70, no Brasil, poucas mulheres chegavam virgens ao casamento.

As causas e os resultados de toda essa transformação não foram tão simples quanto se imaginava, não cabe aqui sequer aflorar tudo o que rodeou essa impressionante mudança de mentalidade. Mas houve, sim, um resultado inesperado que a geração de 68 jamais imaginaria: a supervalorização da virgindade. Como explicar de outro modo o fato de alguém leiloar a sua (como está fazendo certa jovem nos últimos tempos) e até encontrar quem dê lances altíssimos? Imprevisível para os defensores do amor livre de 1968 era que um valor moral, então considerado decadente, acabasse por atingir elevadíssimo valor pecuniário, que um hímen viesse a ser negociado como mercadoria, submetido à lei de oferta e procura que rege os mercados.

O que o pessoal de 68 não esperava nem desejava era que o capital fagocitasse os seus antípodas e os digerisse, mercadejando as fezes.

Linguagem

Na época eu começava o curso de Letras na FFCLUSP (era essa a sigla então) e me encantava com tudo o que viesse adornado da palavra liberdade. Por isso, para mim, caíram como sopa no mel, no ano de 1968, as primeiras aulas com Izidoro Blikstein. O curso de linguística, que até então tinha sido um estudo da origem, do desenvolvimento e da evolução das línguas, foi por ele revolucionado na minha vida e na de muitos. A antiga visão diacrônica começou a nos parecer superada, diante do alto significado da visão saussuriana sincrônica dos estudos da linguagem. É bem verdade que aquilo tudo me parecia às vezes puro bom senso com ares de teoria, mas talvez por isso mesmo me agradava. A noção de arbitrariedade do signo, sem dúvida intuída, mas nunca antes sistematicamente estudada, casou-se bem com nossa vontade de dizer ao mundo que tudo é instituído por vontade humana, tudo é convencional, devendo-se assim alijar da arena qualquer aceno de criação divina. Daí à contestação das regras gramaticais foi um passo. Surgiam desse modo os libertários da língua: a imposição de regras é arrogante, não é lícito impor ao povo algo que para ele é estranho, não faz parte de seu universo, não foi criação dele. Algo que ele repele. Algo que o discrimina.

De fato, eram bem arrogantes muitos dos que expunham e impunham usos como se eles tivessem sido paridos do cérebro de algum Zeus-Camões. Quem duvidar pode folhear um livro instrutivo, Dicionário de questões vernáculas, do falecido professor Napoleão Mendes de Almeida: era com aquele espírito que muitos tratavam as dificuldades gramaticais do português. Que a bronca dos novos fosse canalizada para tais pessoas e seu desrespeito, normal. Mas não foi bem assim que tudo aconteceu. Foi depois da interiorização das concepções (relativamente) novas acerca da coisa linguística que alguns se sentiram armados para combater um tipo de atitude difusamente arrogante, que antes não era bem distinguida nem, portanto, condenada. Isso significa que o fato desencadeador da condenação não foi a arrogância alheia e a intenção própria de defender os prejudicados, mas sim uma nova concepção do instrumento que servia de pretexto para a arrogância.

As coisas se desenrolaram aos poucos, até que a certa altura se começou a falar em preconceito linguístico. Já tive a oportunidade de dizer em outro lugar que o preconceito é na verdade social, que a língua é apenas uma de suas modalidades de manifestação (não das menos importantes), que quem se concentra nela está tomando o meio pelo fim, está assumindo postura idealista, subjetivista, diante de um fato social objetivo.

A ideologização que se seguiu a esse impulso libertário inicial foi responsável por um daqueles deslizamentos de que falei acima, ao tratar da noção de liberdade. Porque, em vez do estudo sereno dos fenômenos linguísticos e sociais implicados, o que se teve foi a espinafração sistemática das pessoas — consideradas retrógradas — que acreditam nos benefícios da observância de uma norma convencional qualquer, ou que não se alinhem com os defensores da preeminência ilimitada do uso geralmente falado e informal sobre os usos mais formais.

O idealismo (como atitude filosófica, notar bem) de certos estudiosos, já desde o fim da década de 60, gerou um tipo de militância ao longo das últimas décadas, que incorreu em algumas fragilidades.

Na defesa da aceitação de alguns usos menos ortodoxos, há até quem alegue que os “cultos” já infringem certas regras há muito tempo, e, como sempre foi adotado o uso dos “cultos” como padrão, podemos aceitar tranquilamente tais infrações, como por exemplo o uso de ter por haver e o do pronome reto em lugar do oblíquo, coisas até o momento confinadas ao registro familiar, coloquial. Sem me estender sobre a inesperada adoção de um critério tradicional (o do uso padrão dos “cultos”) por parte de quem abomina critérios tradicionais, passo aos problemas dessa argumentação.

O primeiro deles é a confusão entre culto e hegemônico, também fruto de uma análise idealista da realidade: ou seja, ganham título de nobreza alguns usos que na verdade são adotados por uma classe financeiramente poderosa, no caso a classe média ascendente do Sudeste brasileiro. E de onde essa classe trouxe esses usos? De sua origem popular, não muito distante. Ocorre que essa classe, como tal (e como classe ela é considerada por quem defende seus usos), nunca foi e parece não pretender ser culta, abomina qualquer coisa que não seja puro entretenimento, não lê, não produz cultura e em seu histórico não tem exatamente como característica o conhecimento sequer superficial da arte, do pensamento e da literatura que no Ocidente foram sendo gerados vagarosa e trabalhosamente num longo processo de meditações, elucubrações e pesquisas que começou quando o primeiro grego resolveu abrir a boca. Em suma, não é culta. Classe que na atualidade está fechando um ciclo ascensional iniciado com imigrantes de todos os naipes que por aqui arribaram a partir do fim do século XIX. Classe que sempre considerou o diploma universitário simples meio de ascensão e status. É desse modo, portanto, que o movimento que começou como defesa dos oprimidos contra a arrogância normativa acaba agora como defesa dos usos linguísticos de uma classe hegemônica. Cai a máscara: os movimentos libertários da década de 60 do século passado nada mais eram que lutas da pequena burguesia por objetivos que eram seus, e não dos “discriminados” da língua. Não faltou quem apontasse essa distorção e não faltaram cegos para não ver.

O segundo problema é que, em língua, a aceitação de uma infração sempre implica a institucionalização dessa mesma infração como norma. É uma questão de tempo. A quem tem aversão à “norma” deveria ser desagradável imaginar esse tipo de coisa. Acredito até que haja anarquistas da língua, como os há na política, mas o falante comum não costuma ser anarquista, não costuma ser anômico. Prefere normas, sejam elas quais forem, ainda que antinormas arrependidas. Então abraça a infração de ontem porque hoje ela já tem foros de lei: alguma autoridade disse que poderia ser adotada.

Por fim, quem acaso prefere os usos de uma classe hegemônica (chamada erroneamente de culta) e pretere os da classe não hegemônica (usos considerados inaceitáveis, como o emprego do verbo no singular com sujeito no plural) já fez sua escolha ideológica. Questão de foco.

Esse escorregão foi bem perverso. O que aconteceu? Aconteceu que da legítima defesa do direito de dignidade de quem não domina um campo do conhecimento resvalou-se para a condescendência em relação ao desconhecedor e ao desconhecimento. À atual estagnação cultural essa condescendência talvez não seja estranha. Claro, não se pode desconhecer o estrago provocado por reformas safadas e pelo descaso generalizado em relação ao sistema educacional, a partir da ditadura (bem que a geração de 68 lutou contra isso), mas digamos que essa condescendência acaba por jogar mais lenha na fogueira.

Outra ramificação bom-mocista dessa história é o hábito de evitar palavras menos corriqueiras e construções menos simplórias, a qualquer custo, mesmo que a precisão semântica saia arranhada. Isso é frequente na edição de livros, na redação de jornais, enfim, nos meios de comunicação em geral. A palavra “esquisita”, que poderia ser uma boa oportunidade de contato com o novo, é posta fora de cena, é obscena. Como se o indivíduo que compra um livro já não estivesse de antemão interessado pelo desconhecido.  Quando inevitável, a palavra menos comum precisa ser explicada: mil vezes por dia a Globo é capaz de “definir” doloso e culposo. O telespectador e o leitor são tratados como crianças. Na era da internet, ninguém desconfia que quem tem acesso a um livro ou a uma tevê em HD tem meios de acesso a um dicionário digital qualquer, assim como sabe buscar ruas no google maps, chamar táxis pelo celular, mandar fotos de Miami para a família…

Sonegar repertórios: nisso se transformou a luta contra a arrogância. Desse modo, por caminhos tortuosos, se em 68 se falava em universalização do saber, hoje o que se tem é a rasteirização dos conhecimentos.

Trabalho

O buraco é mais fundo: muitas das propostas de 68 ou não foram entendidas ou foram cooptadas pelos oponentes e adaptadas aos seus interesses. Mas nem sempre isso fica muito claro.

Em nível mais infraestrutural alguns autores têm se debruçado sobre essa questão, como Boltanski e Chiapello em Novo espírito do capitalismo (Editora WMF Martins Fontes, trad. minha). Para eles, as críticas que aquela geração fez ao sistema capitalista acabaram sendo açambarcadas pelo próprio capital. Isto porque, segundo dizem esses autores, eram críticas “artísticas”, incapazes de ir às bases profundas do sistema. Ou, nas palavras de Anselm Jappe (Crédito à morte, Hedra, S.Paulo, 2013, trad. Robson J.F. de Oliveira), “na maior parte dos casos, a contestação cultural considerava como traços essenciais da sociedade capitalista aquilo que não passava de elementos arcaicos ou anacrônicos herdados de suas fases anteriores” (elementos arcaicos ou anacrônicos que interessava ao próprio capital eliminar). Por exemplo: o anseio por desvinculação, desapego e liberdade, enraizando-se nas mentalidades, pôde ser “atendido” mais facilmente pelo capital na forma de falta de vínculos estreitos entre empregador e empregado, de substituição da perspectiva de carreira e ascensão pela estrutura de “projetos” (findos os quais, o trabalhador fica “disponível” para outro projeto), de formação de redes e de terceirização, com muito maior campo para o corte de custos nas folhas de pagamento, enfraquecimento dos sindicatos, desarticulação dos movimentos reivindicatórios, aumento do desemprego (claro que agravado pela recente crise), facilidade de contratação temporária etc. De quem o maior benefício?

Quem estiver interessado poderá buscar tais ideias nessas publicações.

Concluindo, quando a liberdade é tomada como valor absoluto e irrestrito, refratário a limites, valor poliédrico e por isso inapreensível, quando a vitória de ideais libertários é capaz de abrir as portas para a mercantilização e a criação de condições para o lucro, quando a universalização da cultura dá lugar à massificação, é tempo de perplexidade. Agora que aquela geração aborda a sétima década de vida, parece chegado o momento de puxar o saldo. Pois para muitos, no balanço da trajetória de vida não entram só dados existenciais, mas também ideais políticos e de construção de um mundo melhor. E muitos desses ideais, se antes pareciam inquestionáveis, agora andam bem irreconhecíveis.
 
 

Sobre o autor



Ivone Benedetti

Ivone Benedetti nasceu em São Paulo, é doutora em Letras pela USP e tradutora desde 1987. Em 2009 estreou como ficcionista, lançando o romance Immaculada, pela WMF Martins Fontes, que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010, categoria estreante. Em 2011 lançou o livro de contos "Tenho um cavalo alfaraz", também pela WMF Martins Fontes. Tem contos publicados na revista Cult e no jornal Rascunho, assim como nas revistas eletrônicas Musa Rara e Cronópios. Site oficial: www.ivonecbenedetti.com.br Blog: ivonecbenedetti.wordpress.com

Fonte: Umbigo das Coisas

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