PICICA: "A
toda sabotagem, a Casa Grande responde com um comando na tentativa de
dobrar a senzala. Mas se o senhor trata a favela como senzala, o pobre
tem a favela como quilombo, isto é, resistência. A favela nasceu das
mãos do pobre, tornando-se território de autoprodução de espaços urbanos
de luta e persistência dos pobres. No quilombo metropolitano, o pobre
não se curva ao senhor, mesmo que o capitão do mato esteja fardado e com
balas no pente, e cria sua música, sua linguagem, sua dança e sua
comunicação. Se antes os escravos dependiam da casa grande para se
alimentar, agora é a Casa Grande que vai ao quilombo se alimentar de sua
produção. É insistindo em sua adversidade que o pobre renova e inova
todos os dias. A sabotagem é sua condição de existência."
Maré: cinco anos sem Mateus
13/12/2013
Por Rociclei Silva
Por Rociclei Silva, UniNômade
O
tempo passou e eu não senti. De agosto a novembro, foram quatro meses
intensos indo à Maré todos os sábados para participar do curso de
comunicação organizado pelo Jornal O Cidadão. A cada sábado um
mundo novo se abria para mim. Conversando com os moradores, andando por
suas ruas e becos, mundos, vidas, culturas se revelavam para mim. Em
todo canto há um conto, uma história a ser contada. Assim fui
descobrindo a Maré por dentro, vendo seus conflitos, contradições, mas
também sua força e sua potência. Entre tantas histórias contadas, uma eu
tinha profundo interesse: a história de Mateus. Mateus Rodrigues, de
apenas oito anos, assassinado em 2008 na Baixa do Sapateiro, favela da
Maré, na porta da sua casa quando saia para comprar pão. O menino foi
morto por um tiro de fuzil disparado por um policial militar.
É sábado, sete de dezembro, lá estou eu indo novamente para Maré, mas desta vez para participar da festa de 14 anos do Jornal O Cidadão
e da conclusão do curso de comunicação comunitária. Antes da festa, um
ato pelos cinco anos sem Mateus. Mateus não foi à única criança vitima
da violência nas favelas, mas é preciso lutar para que outros Mateus não
venha a cair. Além disso, o caso Mateus não pode ser esquecido. Foi
isso que nos motivou a organizar o ato.
Eram
duas da tarde e eu chegava a Maré. Comecei a subir o morro do Timbau.
Ruas cheias, crianças correndo, churrasquinho, cerveja, pagode e funk.
São formas de libertação que aliviam o peso e as dores do corpo e da
alma após uma semana de exploração. A favela transborda alegria e
descontração. No Ceasme me encontro com o pessoal do jornal e saímos
juntos em direção à Baixa do Sapateiro, para irmos ao ato. Em menos de
10 minutos chegávamos ao local, um pequeno largo com uma arvore no
centro, onde já estava o pessoal do movimento Favela Não se Cala
panfletando e distribuindo cartazes com participação ativa das
crianças. Já havia passado várias vezes por aquele local e não sabia que
ali teria sido o cenário da triste história de Mateus.
A
música chamava a atenção dos moradores, que timidamente começaram a
mostrar o rosto, se posicionando na porta de suas casas ou nas janelas.
Os olhares atentos e interessados demonstravam o apoio ao ato, mas o
medo os silenciava. Mesmo sem estar de corpo presente, o tráfico se
impõe e aterroriza. Falar muitas vezes pode custar a vida. Incrível, mas
o poder do tráfico fazia as pessoas esconderem suas identidades.
Naquele momento, uma integrante do movimento Favela Não se Cala
já entrevistava a mãe do Mateus. Já estávamos há uns vinte minutos no
local, quando iniciaram as falas com ativistas, jornalistas,
simpatizantes e professores do pré-vestibular se revezando no microfone.
As falas abordavam desmilitarização da PM, UPP, direitos humanos,
racismo, entre outros temas.
Durante
as falas optei por circular entre as pessoas e observar os moradores e
percebi que havia forte rejeição às máquinas fotográficas e filmadoras, e
decidi guardar meu equipamento e tentar a aproximação. Deu certo,
consegui arrancar algumas palavras dos moradores, que demonstraram
solidariedade à família do Mateus e apoio ao ato. Por um instante,
voltei os olhos para o beco onde reside a família do Mateus e percebi
que a vizinha da família, sentada a porta de sua casa, chorava.
Aproximei-me e perguntei se poderíamos conversar. Ela concordou desde
que eu não tirasse foto e nem filmasse. Suas primeiras palavras foram: ”choro porque Mateus era uma criança muito boa que morreu de forma muito violenta. Nossa vida aqui não tem valor”. Em seguida completou: “A
vida aqui é muito difícil moço. Se a gente não se ajudar fica mais
difícil ainda sobreviver. A gente dá as mãos para unir forças e superar o
sofrimento”.
Enquanto conversávamos, uma senhora de olhar sereno e sorriso simpático
se aproximou e foi descrevendo Mateus nos mínimos detalhes, assim como
seu assassinato. Aquela senhora de voz suave era dona Maria das Graças,
avó do Mateus.
Conversamos por um tempo até que ela chamou uma de suas
filhas e me apresentou. Era Gracilene, mãe do Mateus, que apertou minha
mão, esboçou um sorriso e perguntou: “O senhor quer gravar também?”. Respondi que não e falei que não estava ali para falar da sua dor. Gracilene respondeu: “Querido,
a minha dor nunca vai passar. Aprendi a viver com ela. A dor da morte
do Mateus vai me acompanhar até o resto de minha vida”.
Conversamos por um tempo na porta da sua casa, local onde Mateus
morreu. De repente, somos surpreendidos por um gesto de carinho e
solidariedade de dona Maria das Graças que aparece com uma jarra de café
para as pessoas que estavam no ato. Mesmo com toda dificuldade da
família, ela pensou em todos que ali estavam e demonstrou o amor que
existe nas favelas.
Enquanto
conversava com Gracilene, cerca de 10 crianças brincavam e cantavam na
frente da casa. Sete eram irmãos do Mateus. Pés descalços, não havia
nenhum brinquedo. Mas quem disse que isso era obstáculo para eles.
Sorridentes e alegres se divertiam. Enquanto brincavam, Gracilene pegou o
microfone e agradeceu o ato. Neste momento, as crianças pediram o
microfone e cantaram uma música evangélica em homenagem a Mateus.
Momento sublime, aquelas crianças passavam por cima da pobreza, da
miséria e da dor e homenageavam o irmão no mesmo local onde ele caiu
morto. Que exemplo de força e superação. Pequenos grandes guerreiros a
quem me curvei e abracei todos. O ato praticamente chegava ao fim de
forma mágica e encantadora nas suaves vozes dos irmãos do Mateus.
O
ato chegou ao fim e estávamos caminhando pelas ruas da Baixa do
Sapateiro retornando ao Morro do Timbau. Depois de todo o vivido, não
havia como deixar de refletir naquele exato momento. Pensei comigo:
quando se vive mergulhado numa incomensurável miséria, pobreza, e
violência, toda e qualquer forma de sabotagem é legitima. É na sabotagem
que o pobre escapa, afirma a vida e promove a autovalorização.
A
toda sabotagem, a Casa Grande responde com um comando na tentativa de
dobrar a senzala. Mas se o senhor trata a favela como senzala, o pobre
tem a favela como quilombo, isto é, resistência. A favela nasceu das
mãos do pobre, tornando-se território de autoprodução de espaços urbanos
de luta e persistência dos pobres. No quilombo metropolitano, o pobre
não se curva ao senhor, mesmo que o capitão do mato esteja fardado e com
balas no pente, e cria sua música, sua linguagem, sua dança e sua
comunicação. Se antes os escravos dependiam da casa grande para se
alimentar, agora é a Casa Grande que vai ao quilombo se alimentar de sua
produção. É insistindo em sua adversidade que o pobre renova e inova
todos os dias. A sabotagem é sua condição de existência.
Como bem disse Mandela ”O
corpo humano tem uma enorme capacidade de se adaptar às circunstâncias
difíceis. Descobri que se pode suportar o insuportável, quando se é
capaz de manter o espírito, mesmo quando o corpo te põe à prova.” O que vejo em toda favela é o pobre suportando o insuportável na força e persistência da vida.
No fim da tarde, estávamos de volta ao Morro do Timbau, no Ceasme, para comemorarmos com muita festa os 14 anos do Jornal O Cidadão da Maré.
14 anos de luta fazendo comunicação com e para a favela. Comunicação
que dá voz a favela. Comunicação que é favela por ela mesma. E como
desabafou Gizele Martins (jornalista, ativista e moradora da Maré): da
grande mídia não podemos esperar nada, pois a grande mídia celebra
Mandela, mas é contra as cotas. Celebra Mandela, mas apoia as incursões
da PM na favela. Celebra Mandela, mas acha que bandido bom é bandido
morto. Celebra Mandela, mas
celebra a detenção dos jovens funkeiros no shopping em Vitória. Celebra
Mandela, mas apoia a revista nos ônibus que partem dos subúrbios pra
zona sul e a PM na praia pra “evitar arrastões”. Celebra Mandela, mas é a
favor da redução da maioridade penal. Celebra Mandela, mas acha que o
feriado de dia da Consciência Negra é uma besteira, que devíamos ter uma
“consciência humana”. Celebra Mandela, mas acha que não existe racismo
no Brasil. E eu digo: celebra Mandela e ignora os milhões de Mateus que
caem mortos nas favelas de todo Brasil.
É
senhor de engenho, teu chicote pode fazer a favela chorar, sofrer e
deixar marcas no corpo e na alma, mas nunca fará a favela se dobrar e
cair de joelhos diante de ti. E se a dor ainda castiga o coração, também
renova as forças para lutar pela vida. E enquanto houver vida haverá
luta. Mateus vive em cada coração.
Divulgue na rede
Fonte: Universidade Nômade
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